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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

cotidianas #352 - Mesa de Verdade



Eles estavam bêbados. A língua enrolava-se antes das palavras terminarem. Os pontos finais confundiam-se com vírgulas, reticências e continuações. As palavras nunca tinham fim. Interrompiam-se forçadas, uma sob as outras, naquela ânsia de gente bêbada de falar sobre o mundo inteiro no espaço de um único pensamento.

-Então tá. – Disse André. O “tá” vibrou pela sua língua. – Sentem aqui e calem a boca. – O jovem estava apoiado em uma pequena mesa de vidro localizada no centro da sala de sua casa. – Essa é a mesa da verdade.

Clara e Ian se acomodaram cada um em um lado da mesa. Em uma espécie de simbiose, uma garrafa de vinho passava de mão em mão, boca em boca, girando as cabeças, entortando as mentes e tornando o mundo um borrão divertido.

"Mesa de Verdade" - RODRIGUES, Daniel
-Que mané mesa da verdade? – Perguntou Clara rindo. Seus cabelos ruivos e suas sardas delicadas ficavam embaçadas no torpor da bebedeira dos amigos.

-Sua mãe vai nos matar se vir a gente bêbados em cima da mesa de vidro dela. – Comentou Ian.

-Ela não tá. Foi jogar bingo ou qualquer uma dessas coisas que ela finge gostar de fazer. – André bateu na mesa com força. – E essa aqui não é a mesa dela. É a mesa da verdade.

Ian fez uma careta ao sentir o álcool atingir seu cérebro. Tudo girava:

-Explica essa tal mesa da verdade. – A palidez de sua pele contrastava com o preto intenso de seu cabelo.

-Agora que vocês estão nela, vocês só podem falar a verdade. – Explicou André.

-Minha vida é um livro aberto. – Comentou Clara.

-Não só a vida. – Retribui Ian.

André caiu na gargalhada:

-Vocês são uns idiotas.

Clara rebateu:

-Você não pode mentir nessa mesa, André.

-Ok. Eu reformulo: Vocês são muito, mas muito idiotas.

A gargalhada foi geral.

-Tá. Vamos começar sério, agora. – André tentava falar de um modo sóbrio e respeitador, mas seus olhos pareciam piscar desordenadamente e isso tirava qualquer seriedade possível da sua fala. – Clara, eu acho que o seu namorado é um idiota. Sua vez.

-André, meu namorado também te acha um idiota.- Ela rebateu com uma piscada meio torta.

-Filho de uma p… – Começou André, antes de ser interrompido por Ian.

-Minha vez. – Como se fosse uma grande surpresa, anunciou. – Eu sou gay.

-Acho que só sua mãe não sabe disso, Ian. Não vale. – Clara curvou-se em direção ao amigo. – Diga algo que a gente realmente não saiba.

-Ok… – Ian já não coordenava pensamentos e palavras de modo perfeito. Os primeiros surgiam e se transformavam em falas sem qualquer controle do menino. – Acho muito sexy quando o André tá saindo da academia.

-Okeeeeeeei. – Disse Clara olhando para um André risonho. – Acho que as coisas estão ficando boas por aqui. Sua vez, André!

André levantou a camisa mostrando um pré-tanquinho:

-Cara, eu sou sexy em qualquer lugar.

-Não pode mentir nessa mesa, André! – Disse Clara.

-Eu disse que você é sexy saindo da academia. – Comentou Ian ainda mais pálido do que o costume. – Mas tudo acaba na hora que você senta pra comer aquele sanduíche de frango com maionese escorrendo!

-HAHAHAHHAHAHAHHA. – Disparou Clara em meio a outro gole de vinho.

-Minha vez, então. – André arrancou a garrafa da mão dela. – Acho sexy quando a Clara veste aquela camisa decotada preta.

-Momento das revelações. – Gritou Ian. – Até eu acharia sexy se eu gostasse de peitos.

-Vocês são uns lindos! – Devolveu Clara fazendo um coração com as mãos.

-Para de nos elogiar e fale a sua verdade! – Berrou André.

-Ok. Eu acho muito sexy quando você usa roupa social. – Disse a menina e, para a surpresa de todos, ela falava com Ian.

-Eu sei, eu sou. – Disse o jovem piscando para a garota. Reparou que a última garrafa de vinho tinha finalmente acabado. – Minha mãe acha que eu deveria namorar você.

-Eu seria uma ótima namorada. – Comentou Clara se deitando no chão e olhando o teto branco e sem vida. A garrafa vazia rolou pelo chão da sala.

André caiu na gargalhada ao ouvir a menina.

-O que foi? – Perguntou ela virando a cabeça na direção dele.

-Nada… Desculpa. Mas é que você não é um exemplo de menina e muito menos de namorada.

-Oh-oh. – Gemeu Ian, escondendo o rosto no meio dos braços cruzados apoiados na mesa.

-Você é meio impulsiva, Clara. – Continuou André. – Não dá pra saber o que você tá pensando de verdade.

-E isso só é problema pra pessoas tipo você, André. – Respondeu ela.

-Tipo, eu?

-É. Que precisam controlar tudo… Que precisam planejar tudo como se estivessem na porra de uma corrida pra ver quem vai ser o vencedor.

-Isso é verdade. – Manifestou-se Ian.

-Do que vocês estão falando?

-Você precisa sempre ganhar. Tirar as notas mais altas, ser o mais popular, ser o mais responsável… – Ian bocejou de forma brincalhona. – Chaaaaaato.

André não levou tão na brincadeira assim:

-Chato é você e suas crises existências.

-Não espero que alguém como você entenda minhas crises. – Ian sequer olhou para o amigo.

-Como eu?! – André encarou Ian de forma raivosa.

-É. Filhinho de papai que tem medo de fugir de qualquer padrão. Você é um roteiro, saca? Tá sempre dentro de um roteirinho, tentando agradar todo mundo… Você não tem cérebro, tem papel com falas pré-definidas na cabeça.

André levantou-se e, cambaleante, caiu sentando no sofá. O dedo de sua mão apontava para Ian:

-Melhor do que me fazer de vítima como você vive fazendo. – E começou a imitar a voz de Ian de um modo zombeteiro. – “Porque minha mãe não me aceita, porque o mundo está contra mim, porque eu não posso ser quem eu sou, porque sou diferente de todo mundo, porque ninguém entende que sou especial…”. – Respirou fundo e continuou. – Cara, você só sente tesão em alguém do mesmo sexo que o seu. Ponto final! – Mas ele não tinha terminado. Apontou agora para Clara. – E você, senhorita rebelde, em cada coisa que você faz ouço um grito “não me olhem, não me olhem!” tão alto só pra todo mundo olhar pra você. Quem vive em um roteiro são vocês, não eu.

-Vai se ferrar. – Clara arrotou e junto emitiu uma cara de nojo. Ninguém entendeu se era para André ou para o próprio arroto. – Você que não tem coragem de sair do padrão que essa porcaria de sociedade impôs. Você não faz nada porque você quer. Joga vôlei porque seu pai pediu. Vai fazer intercâmbio porque sua mãe quer. Quando é que o senhor bundão vai parar de fazer o que os outros querem e fazer o que gosta de verdade? Tudo bem que eu e o Ian fazemos coisas erradas e egoístas, mas fazemos isso porque a gente quer! Você nunca faz nada porque quer. É preciso ser muito homem para ser diferente. Ian é mais macho que você.

-Acho que esse papo acaba por aqui. Vocês são as eternas vítimas da sociedade. – Respondeu André.

Ian levantou-se e falou de forma baixa, mas profundamente irritada para o amigo.

-Sabe o que falta no mundo, André? Capacidade de se botar no lugar dos outros. Você sabe quantas vezes eu beijei um cara na rua, ou demonstrei carinho por um, ou só dei a mão… porque eu queria? Nenhuma. Sabe quantas vezes eu pude fazer o que eu quisesse sem as pessoas ficarem julgando a minha vida como se fosse delas? Nenhuma. Casar, beijar, me pronunciar, ir a igreja, rezar, cantar, me vestir como eu quero… Sabe quantas vezes pude fazer essas coisas sem alguém me dizer que eu estou impondo minha presença e que e eu devo apenas me contentar em fazer tudo isso em casa? Nenhuma. – Ian falava baixo, mas articulava as palavras com uma força tremenda. Respirando ofegante, voltou a sentar-se no chão, apoiado na mesa da verdade.

-Não tô dizendo que as coisas são fáceis pra vocês, tá legal? – André foi até a janela da sala e começou a olhar a rua. Falava mais para si do que para os outros. – Só que não gosto quando vocês desmerecem os meus problemas. – Finalmente voltou a olhar para os amigos. – Minha mãe passou muita merda nessa vida e eu só quero que ela tenha orgulho de mim. O que vocês pensam, caras? Que é fácil? Vocês acham que eu não gostaria de fazer o que eu quisesse, na hora que eu quisesse e dizer foda-se pra sociedade?! Eu queria! Mas minha forma de vencer o mundo é, sei lá, meio que me tornar bom em tudo que o mundo quer! Vocês acham que eu não queria berrar que eu não tenho culpa do meu pai ter sido o canalha que ele foi e que não é justo eu ter que evitar problemas porque minha mãe já sofreu demais na vida? É muito fácil não se importar com os outros, difícil mesmo é se importar com todo mundo.

Um barulho de algo quebrando atingiu feito rasgo o silêncio pós-fala de André. Clara tinha tropeçado e derrubado o vaso de uma mesinha lateral da sala. – Que merda de coisas quebráveis que ficam perto de mim! Caralho! Porra!

Os meninos olharam pra ela sem falar nada.

-O que é? Não posso usar palavões, agora?

-Minha mãe vai me matar. – Comentou André voltando a olhar a rua.

-Foda-se ela! – Resmungou Clara voltando a se sentar no sofá.

-Você precisa falar tantos palavrões, assim? – Questionou Ian, irritado.

-Que que tem?

-As palavras tem um grande poder, Clara.

-Não seja exagerado. – Pediu ela.

-Já te disseram “tenho nojo de você?”. Acho que não. Dói mais que um soco.

Clara se irritou:

-Já te disseram, Ian, coisas do tipo: meninas não devem falar palavrão, não podem beijar mais de um cara por noite e não podem se sapatão? – E começou a falar de um modo mandão, imitando alguém. – Clara, meninas devem ser educadas. Meninas não podem gostar de sexo. Meninas não podem dar pra mais de um cara. Meninas são putas e meninos são pegadores. Meninas não podem rebolar até o chão, não podem usar uma roupa justa e se usarem é porque estão pedindo pra serem assediadas…. – Respirou fundo e olhou para o amigo. – Já te disseram, Ian, que você precisa ser mãe e que só vai ser feliz com um pai de família ao seu lado? – Clara olhou de modo gelante para o amigo. – Acho que não.

-Querem saber? – André veio correndo da janela e subiu no sofá da sua mãe. – Que se foda tudo isso! A gente é ferrado e a gente é muito sortudo por isso.

-Cala a boca, André. – Disse a jovem.

-Pensa bem, Clara. Tem gente que é ferrada e nem sabe disso. Prefiro viver ciente das merdas do que numa ilusão idiota.

-Devemos celebrar, então? – Clara sorriu, achando André engraçado.

-Devemos! Brindar pela vida e por sua falta de sentido, por suas merdas e, claro, pela honra de saborear esse gosto amargo dela todos os dias!

-Pelo menos estamos sentindo algum gosto né? – Comentou Ian amenizando as feições do seu rosto.

-É! Somos fodidos, mas quem disse que pra ser feliz dependemos de coisas boas acontecendo?

– Vamos celebrar as coisas ruins da vida, então! Porra! – Berrou Clara subindo ao lado de André no sofá. – Peguem seus brindes imaginários!

Ian gritou erguendo uma mão vazia ao ar:

-Querem saber? Vocês têm razão! – E subiu no outro sofá. – Pode meter todas as merdas no meu caminho que eu vou tropeçar em todas elas e rir da sua cara ainda assim, ouviu, dona Vida?!

-A gente não liga de ser fodido, Vida! Manda mais! – Gritou Clara.

-Manda mais que a gente aguenta! – Disse Ian fazendo coro. – E se agente não aguentar, a gente não tá nem aí!

-Porque o que a gente quer é sentir tudo! Sua desgraçada! – André gritou para o teto, como se falasse com a Vida.

Depois de brindarem, os três se jogaram no sofá, rindo e ofegantes.

André olhou para os dois amigos antes de dizer:

-O que eu posso falar é que eu amo vocês, caras. Amo vocês por vocês serem quem são. Foda-se o resto! Vocês são meus amigos e eu gosto porque vocês são fodas exatamente do jeito que são.

-Falar isso bêbado não conta muito… – Disse Clara.

-O álcool segue o caminho do meu coração, Clara. – Disse André rindo.

De repente, uma voz esganiçada adentrou no ouvido dos três:

-Mas o que diabos aconteceu aqui? – Era a mãe de André, sentindo o cheiro de álcool circulando pelas correntes de ar e vendo seu precioso vaso chinês estraçalhado no chão.

– A Vida, mãe. Ela nos deixou enjoados. – E André saiu correndo. – Acho que vou vomitar.




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