"Idolatrada mãe a quem recorro
toda vez ameaçado pranto
Paraíso São Sebastião
Rei de Janeiro"
Glauber Rocha
De um modo geral, as pessoas, críticos e publicações costumam destacar o álbum "Let's Play That", de 1983, como o grande trabalho de Jards Macalé, que efetivamente é um excelente disco. Mas particularmente, tenho uma especial predileção pelo ótimo "O Q Faço é Música" de 1998.
Dos músicos brasileiros mais criativos, Jards Macalé explora as diversas possibilidades do samba neste disco, indo desde choros, passando por sambas-canção ou experimentando alternativas percussivas. "O Q Faço é Música" é variado, é eclético, é embalado, divertido, é sensacional. "Rei de Janeiro", composta sobre verso de Glauber Rocha, é uma bela exaltação cantada por um coro feminino; "Cidade Lagoa", outra referência ao Rio de Janeiro, cidade natal de Jards, é um samba-de-breque, irônico e debochado, extremamente atual no que se refere às frequentes inundações que acontecem na cidade a cada chuva. O trecho "Essa cidade que ainda é maravilhosa/ Tão cantada em verso e prosa/ Desde o tempo da vovó/ Tem um problema vitalício e renitente/ Qualquer chuva causa enchente/ Não precisa ser toró", dá uma ideia de como era nos anos 50 quando a letra foi escrita, e de como, incrivelmente ainda é hoje.
A inusitada versão de "Blues Suede Shoes' de Carl Perkins, é outro exemplo dessa exploração das possibilidades do samba, onde Jards dá um tratamento chorinho acelerado para o clássico do rock. O resultado é incrível!
A ótima "Favela" traz um retrato físico, antropológico, histórico, social e poético da formação urbana dos morros cariocas, num samba pesado, cheio de cuícas e tiros; "Vapor Barato", parceria de Jards com Wally Salomão, ganha uma versão muito mais melancólica que outras gravadas ao longo dos anos, talvez só perdendo para a dramática interpretação de Gal Costa.
O disco segue com a charmosa "Destino"; a primorosa "Dente no Dente"; o belíssimo tango-chorinho "Mais Um Abraço no Nosso Amigo Radamés"; a parceria com Vinícius de Moraes na ótima "O Mais-que-Perfeito"; a versão para "Unicornio" do cubano Silvio Rodrigues; a adaptação para o "Poema da Rosa" de Becht; e o disco encerra-se com a interessantíssima "Coração do Brasil", uma perfeita combinação letra-música-conceito com um surdo pesado, alto, forte marcando o tempo como se fossem batimentos cardíacos. O coração da bateria, o coração do samba, o coração do sambista. O coração de um artista inquieto, criativo e de uma musicalidade ímpar.
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FAIXAS:
- Rei de Janeiro
- Favela
- Destino
- Terceira Vez
- Cidade Lagoa
- Dente no Dente
- Movimento dos Barcos
- O Mais que Perfeito
- Vapor Barato
- Blues Suede Shoes
- Mais Um Abraço no Nosso Amigo Radamés
- Unicornio
- Mais Uma Luz
- Poema da Rosa
- Um Abraço no Oliveira
- Coração do Brasil
Disco do coração esse ("Coração, ao coração..."). "Favela" tem aquele impressionante solo entre tiros de escopeta e a guitarra do Lanny Gordin. Outra que adoro é "Sim-Não", que letra (se não me engano, Torquato Neto). Mais: "Movimento dos Barcos", que ele já tinha gravado tempo atrás mas que, aqui, ganha um arranjo todo especial do Christóvão Bastos, que mata a pau nos arranjos do disco inteiro. Ainda por cima "Coração do Brasil" Jards delega a função de executar a música para a Velha Guarda da Portela, tipo o que o U2/Brian Eno fizeram com "The Wanderer" no Zooropa com o Johnny Cash.
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