“Quando você escuta a música
tocando sua alma/
E sente em seu coração e cresce e cresce/
E vem daquele rock
and roll das ruas
e a cura começou”
da
letra de “And the Healing Has Begun”
Tem uma cena do filme “The Last Waltz” (“O Último Concerto de Rock” no
Brasil), de Martin Scorsese, que define o irlandês Van Morrison, autor do disco que é um dos favoritos totais aqui da
casa: “Into the Music”, de 1979.
Após cantar seu sucesso “Caravan” com The Band, o guitarrista do grupo, Robbie
Robertson, olha para a plateia e diz: “Van the Man”. É exatamente isso que Van
Morrison é: THE MAN! Um irlandês baixinho, arretado, irritado, brigão, xarope,
malão mesmo. Mas quando compõe e abre a boca pra cantar, todo mundo esquece
estas “qualidades” e se delicia com a música em estado puro que se derrama
daquele corpinho. Mas nem sempre foi assim.
Durante os anos 60, ele surgiu liderando o grupo Them, que fez muito
sucesso com “Gloria”. Quando o empresário começou a dar palpites, Van partiu
pra carreira solo, que começou lá em cima com o cultuado "Astral Weeks", em 1968,
e seguiu com "Moondance", dois anos depois
(ambos perfilados aqui no blog como ÁLBUNS FUNDAMENTAIS). Na segunda
metade dos anos 70, entretanto, ele passava por um momento de reflexão profunda
da sua carreira musical e se voltando – como todo irlandês, aliás – para a
religião e o amor a Deus. Após gravar “Veedon Fleece”, em 1974, ficou três anos
fora dos estúdios e dos palcos. Ao voltar, fez um disco chamado “A Period of Transition”,
que era exatamente isso. No ano seguinte, ensaiou uma volta à velha forma com
“Wavelength”, mas ainda não era aquele disco que se esperava de uma figura
mítica como ele. Isto só aconteceu em 1979 com “Into the Music”, não por acaso
uma brincadeira e trocadilho com uma de suas canções mais conhecidas, “Into the
Mystic”. Ao lado de seu fiel escudeiro, o baixista David Hayes, mais a
violinista Tony Marcus e a dupla extraordinária Pee Wee Ellis (ex-James Brown)
no saxofone e Mark Isham nos trompetes, teclados e arranjos, entre outros, Van
reuniu um grupo de canções que louvam a Deus, ao poder curador da música e, é
claro, às mulheres, todas embaladas em blues,
folk, R&B, soul e muito mais.
Tudo começa com “Bright Side of the Road”, um country com levada R&B, onde brilham a harmônica de Van, o
violino de Marcus e os backing vocals
de Katie Kissoon. Na letra, Van diz à mulher amada que “Do final escuro da rua/ ao lado iluminado da estrada/ seremos amantes
novamente/ no lado iluminado da estrada/ Querida vem comigo/ me ajuda a
repartir este peso?”.
Ao começar o disco com um discurso “profano”, Van se retrata com “o
homem” em “Full Force Gale” cantando: “Como
uma tempestade a toda força/ eu fui erguido novamente/ eu fui erguido pelo
Senhor/ E não importa por onde eu ande/ Vou encontrar meu caminho de volta pra
casa/ Vou sempre voltar para o Senhor”. Esta letra de entrega à religião é
carregada pela slide guitar de Ry Cooder e o naipe de sopros fazendo aquele clima soul music.
Em “Steppin' Out Queen”, Van volta a conversar com uma mulher afirmando
que ela pode “Passar seu batom/ se
maquiar/ Às vezes você está vivendo num sonho/ e então cai fora rainha”. Na
verdade, Van quer convencê-la a “vir para
o jardim e olhar as flores”, ao invés de sair pra rua. O naipe de sopros
toca um tema irresistível, daqueles de ficar assobiando o dia inteiro.
“Troubadours” traz o penny
whistle (flautim irlandês) de Robin Williamson, um dos fundadores da
Incredible String Band. Van fala sobre os trovadores e sua música que “trazia as pessoas que vem de longe e vem de
perto/ para ouvir os trovadores”. Mais adiante, afirma que “eles vem cantando canções de amor e cavalheirismo
dos tempos antigos”. Ellis e Isham também ganham solos nesta canção, que
trata do poder curativo da música.
Já “Rolling Hills” traz a influência da música celta que Van ouviu a
vida inteira em Belfast. E volta o discurso místico: “Entre as colinas ondulantes/ Eu vivo minha vida com ele/ Oh eu vivo
minha vida com ele/ entre as colinas ondulantes/ Eu leio minha Bíblia quieto/
Oh eu leio minha Bíblia quieto/ entre as colinas ondulantes”.
Pra fechar o Lado 1, um exemplo bem claro do que se poderia chamar de soul music na versão de Van Morrison:
“You Make Me Feel So Free”. Como as letras são ambíguas durante todo o disco,
Van pode estar se referindo a uma mulher ou à música: “Algumas pessoas passam a vida correndo em círculos/ sempre atrás de um
pássaro exótico/ eu prefiro gastar meu tempo apenas ouvindo algo muito
especial/ que nunca ouvi/ Gosto de ter uma canção nova pra cantar, outro show
ou algum lugar totalmente diferente para ficar/ mas baby, você me faz sentir
muito livre”. Quem é “baby”? A
música, uma mulher, o Deus? Faça sua escolha. O saxofonista Pee Wee Ellis deve
ter lembrado dos seus tempos com os JBs, pois seu solo tem todas aquelas
características dos melhores trabalhos de James Brown. E o pianista Mark Jordan
brinca com o jazz de New Orleans e a sonoridade de Professor Longhair e Dr.
John.
Abrindo o lado 2 do LP, mais uma ode, agora explícita, a uma mulher,
“Angeliou”, um anjo em forma de fêmea. O encontro aconteceu “no mês de maio/ na cidade de Paris”.
Tony Marcus faz misérias com seu mandolin e violino, enquanto Mark Jordan faz
um tema ao piano que lembra aquelas peças para cravo de Bach. Ao abrir seu
coração para Angeliou, ele afirma que “caminhando
numa rua quem poderia imaginar que seria tocado por uma total estranha, não eu/
Mas quando você veio até a mim aquele dia e contou sua história/ Lembrou muito
de mim mesmo/ Não foi o que você disse mas a maneira como pareceu a mim/ sobre
uma busca e uma jornada como a minha”. Nesta canção, Van faz o que se
tornou uma marca registrada de suas interpretações, o ad-lib ou a improvisação em cima da letra e do tema da música, bem
ao estilo jazzístico, mudando o andamento e o tempo. À medida que avança,
“Angeliou” vai se transformando numa balada R&B.
Este estilo interpretativo chega ao auge na próxima música, “And the
Healing Has Begun”. O título diz tudo: “E a cura começou”. A cura através da
música. Com a batida de Peter van Hooke beirando a soul music e a violinista Tony Marcus tomando as rédeas dos solos
nas suas mãos, Van se transporta a um nirvana musical cantando: “Quando você escuta a música tocando sua
alma/ E sente em seu coração e cresce e cresce/ E vem daquele rock and roll das ruas e a cura começou”. E se sua
cura não começar ao ouvir esta música, pode crer que está muito doente!
Depois deste orgasmo musical, Van, expert
em dinâmica de um disco, baixa a bola. Tudo recomeça com a única música que não
foi composta por ele neste disco: “It's All in the Game”, que ganhou letra de
Carl Sigman em 1951 em cima de uma melodia composta 40 anos antes por Charles
Dawes, que foi vice-presidente dos Estados Unidos. Foi sucesso pop no final dos
anos 50 com Tommy Edwards, um cantor de R&B. A curiosidade é que Van usa
esta canção como um veículo para desaguar em outra composição sua, “You Know
What They're Writing About”. Esta sim explicando a quem porventura não tenha
entendido ainda o poder mágico da música e suas curas. Ele abre esta canção
sussurrando: “Você sabe sobre o que eles
estão compondo/ É uma coisa chamada amor através dos tempos/ Te faz ter vontade
de chorar às vezes/ Te faz ter vontade de deitar e morrer às vezes/ Te anima às
vezes/ Mas quando tu entendes, te levanta o astral”. No final, os sopros de
Pee Wee Ellis e Mark Isham fazem um tema, enquanto Van canta “quero te encontrar/ você está aí?”. O
resto da banda se esbalda até a canção ir morrendo aos poucos.
Um final apoteótico para “Into the Music” que, segundo ele, representa
a volta à música. Esta busca incessante de Van Morrison pelo amor da musa, por
Deus e pela cura dos males através da música continua até hoje. Recentemente,
ele lançou um disco cujo título diz absolutamente tudo: “Born to Sing: No Plan
B”, ou seja, “Nascido para cantar: sem Plano B”.
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FAIXAS:
1. "Bright Side
of the Road" – 3:47
2. "Full Force
Gale" – 3:14
3. "Stepping Out
Queen" – 5:28
4. "Troubadours"
– 4:41
5. "Rolling
Hills" – 2:53
6. "You Make Me
Feel So Free" – 4:09
7. "Angeliou"
– 6:48
8. "And the
Healing Has Begun" – 7:59
9. "It's All In
The Game" (Charles Dawes/Carl Sigman) – 4:39
10. "You Know
What They're Writing About" – 6:10
todas as composições de autoria
de Van Morrison, exceto indicada
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OUÇA O DISCO:
por Paulo Moreira
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