3x The Fall
por Fabrício Silveira
Mark E. Smith no palco |
Mark E. Smith não envelheceu como um astro do rock.
Envelheceu como um trabalhador comum, numa família suburbana. O modo como se
veste tem um aspecto atemporal. É anacrônico. O corte de cabelo, os fortes
sulcos no rosto, o ar embriagado e o relógio de pulso lhe dão a aparência de um
tio distante, morador de alguma pequena cidade, no interior do estado. Com ele,
o tempo parece dobrar-se, rodopiando, fazendo-se sentir apenas parcialmente,
deixando muita coisa intacta. Impressiona o fato de que o The Fall ainda tenha público, depois
de mais de 35 anos de estrada, experimentações e incessantes trocas de
formação.
Em cinco semanas – em pouco mais de um mês, portanto –, fui
a três shows da banda, na turnê de lançamento do álbum “Sub-Lingual
Tablet” (Norman Records, 2015). Foram três cidades diferentes: Londres,
Liverpool e Manchester, esta última, na catedral ecumênica. Dentre os shows que
vi, foi o melhor, sem dúvida nenhuma. Uma verdadeira comunhão pós-punk. Havia
mais público do que em Liverpool. Havia mais jovens e mais mulheres. Havia
também uma expectativa e uma empolgação muito maiores. É uma audiência adulta,
majoritariamente, de senhores acima dos 50 anos de idade, que se divertem como
crianças no mosh pit, na roda de
pogo.
E tivemos a performance usual de Mr. Smith, falando quase o
tempo todo, utilizando dois ou três microfones, às vezes simultaneamente. A
conversação começa, acelerada, antes mesmo de subir no palco. Não raro, durante
o espetáculo, retira-se da vista de todos, esconde-se atrás das caixas de som,
volta aos camarins, deixando-nos apenas o sermão incessante, feito de longe, na
cadência da música.
Capa do novo disco,
"Sub-Lingual Tablet"
|
Ele costuma caminhar de um lado a outro, importuna os
colegas de banda, empurrando-lhes. Deliberadamente, mexe com as regulagens dos
amplificadores, chuta os pedais de efeitos, intromete-se na execução das
canções, quer se apossar dos instrumentos. Desvia a atenção dos músicos,
pedindo-lhes para que cantem em seu lugar. Quando lhe parece apropriado, agride
os pratos da bateria. Marca o ritmo batendo nas próprias pernas. Morde-se. Faz
caretas. Busca um pouco mais de caos. Entrega um dos microfones para o fã mais
afoito, encontrado ao acaso, na pequena multidão.
Mas qual é o segredo do The Fall? A resposta é simples: é
repetição, a sensação do volume do som, a pulsação e o grave do baixo esmagando
o peito e a permanente elaboração lírica do sr. Smith. Na prática, não há
canto. Não se pode nem mesmo dizer que Mark E. Smith seja um cantor. Ele apenas
sabe como colocar a própria voz. Sabe como utilizá-la. Trabalha num registro
falado e reiterativo. Improvisa. Incorpora o ambiente no discurso que faz.
Interpela o público, chama-o à fala, ao reforço dos bordões, ao canto conjunto.
O performer Mark E. Smith
num dos shows da The Fall
|
A catedral de Manchester dá uma acústica particularíssima à
apresentação. O som é consistente e limpo, sem ecos. Há um enorme pé direito,
que se afunila em distintas torres e cúpulas, acima de nossas cabeças. Estamos
cercados por muitas colunas, um púlpito esculpido em madeira, pequenas capelas
laterais, altares e confessionários, anjos e Gárgulas, estátuas de pedra
maciça. Às 20h30, quando a banda de abertura começou, o sol ainda batia nos
vitrais, projetando múltiplos feixes de luz no interior da nave central.
Uma igreja barroca, que começou a ser construída na Idade
Média e foi seriamente danificada na Segunda Guerra Mundial, agora abriga a
sobrevivência teimosa do pós-punk inglês. Em pé, à contemplação de todos,
diante da pia de batismos, Mark E. Smith abre os braços. Murmura alguma coisa.
De repente, deixa a cabeça cair para a frente, encostando o queixo no peito.
Então suspira. O show está começando.
*resenha publicada originalmente no portal Culturíssima
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