Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim
especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os
sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter
assistido ao documentário “Filme sobre
um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal.
Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir
os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”.
Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de
outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia
cultural recente da cidade.
Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia
competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a
história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no
final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente
toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais
ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional,
cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados
de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo
ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de
toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno
deste.
Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80. |
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário
e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de
1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super
8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que
sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à
consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta
a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural
e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos
anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação
política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família
e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas
origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos
bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o
rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar
uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80,
quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana.
Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como
ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler,
João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).
Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do
cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda),
embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas
dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem
como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita,
mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências
estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos
saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti,
Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos
grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary
Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários
como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto,
deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos
jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).
Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade. |
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da
juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o
pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes,
o hardcore d’Os Replicantes ou o
pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de
Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no
cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da
formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil,
que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a
de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O
negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.
E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente
quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou
culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como
fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim
significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais
moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”,
“desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um
sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua
estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do
município, e isso por causa de muita insistência.
Peninha, ferino e hilário. |
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as
minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos
artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no
comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos
Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia
Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende
o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser
considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo
Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um
momento tão efervescente e interessante na cidade.
Sabemos que não se repetirá.
A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o
cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola.
Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma
engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito
menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente,
não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo
isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso
para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual
injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo,
na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade.
Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo
que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.
No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do
filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa
abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”,
a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o
mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar
narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode
cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo
contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente
como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana
Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são
de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto
Alegre de uma forma ou de outra como eu.
Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão
acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da
infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos
marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando
a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que
apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em
2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.
trailer de "Filme sobre um Bom Fim"
Adoro documentários - Não conheço o cinema argentino.
ResponderExcluirNão é argentino, Ademar. É gaúcho. Muitos gaúchos até acham que o RS é outro país, mas por enquanto, cinema gaúcho ainda é cinema nacional.
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