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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Som Imaginário - “Matança do Porco” (1973)



A capa original, em cima,
e a da reedição de 2003
“Foi uma época de muita coisa.
 Eu voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
 Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
 Você vê que as ideias estavam ali.
Foi a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso


Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world musicWayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy JonesEric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.

Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko (guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário, para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum totalmente instrumental: “Matança do Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo, ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura, maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma obra-prima da música instrumental no Brasil.

“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo, aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão, que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko, ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano, fazendo ressurgir a valsa tristonha.

Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor, Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho; segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um “Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.

A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando. Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade, exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar. Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco, alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental. Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por si.

Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here", ainda mais pela novamente excelente performance de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano, que exercita uma breve introdução (Kyrie e Gloria) enquanto vão entrando aos poucos os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se poderia intitular como “A Preparação”, Credo, e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.

Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia triste (um Benedictus), como uma prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz, foram abatidos. “Quem é animal e quem é gente?”, fica a pergunta.

Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma balada com riff bem rural escrita em parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12 cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz brasileiro puro.

A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003, vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de suicídio.

Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população, quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música, é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue entender o que é dito pelo coração.
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FAIXAS:
01. Armina
02. A3
03. Armina (Vinheta)
04. A n° 2
05. A Matança do Porco
06. Armina (Vinheta 2)
07. Bolero (Tiso/Milton Nascimento/ Robertinho Silva/Tavito/Luis Alves)
08. Mar Azul (Tiso/Alves)
09. Armina (Vinheta 3)
todas as músicas compostas por Wagner Tiso, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:







terça-feira, 26 de março de 2013

cotidianas #212 - Mestre Jonas







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Dentro da baleia mora mestre Jonas,
Desde que completou a maior idade,
A baleia é sua casa, sua cidade,
Dentro dela guarda suas gravatas, seus ternos de linho.

E ele diz que se chama Jonas,
E ele diz que é um santo homem,
E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria,
E ele diz que está comprometido,
E ele diz que assinou papel,
Que vai mantê-lo dentro da baleia,
Até o fim da vida,
Até o fim da vida.

Dentro da baleia a vida é tão mais fácil,
Nada incomoda o silêncio e a paz de Jonas.
Quando o tempo é mal, a tempestade fica de fora,
A baleia é mais segura que um grande navio.

E ele diz que se chama Jonas,
E ele diz que é um santo homem,
E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria,
E ele diz que está comprometido,
E ele diz que assinou papel,
Que vai mantê-lo dentro da baleia,
Até o fim da vida,
Até o fim da vida,
Até subir pro céu.


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letra da música "Mestre Jonas"
(Sá, Rodrix e Guarabyra)

Ouça:
Os Mulheres Negras - "Meste Jonas"

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"Plunct Plact Zum" - Trilha Sonora do Especial da Rede Globo - Vários Artistas (1984)




"Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado e rotulado se quiser voar!!
Pra lua, a taxa é alta
Pro sol, identidade,
Vai já pro seu foguete viajar pelo universo
é preciso o meu carimbo dando, sim sim sim sim
Pluct, Plact, Zummm
Não vai a lugar nenhum"
da letra de "O Carimbador Maluco"



Do tempo em que a Globo produzia especiais infantis de qualidade, alto nível, conteúdo e com grandes nomes. Ah, bons tempos!
Neste Dia da Criança aproveito pra destacar aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS um dos discos  infantis mais celebrados da música brasileira. "Plunct Plact Zum", um especial infantil exibido em 1984 pela Rede Globo de teleisão, apresentava uma espécie de viagem espacial de um grupo de crianças entediadas por não poderem fazer o que queriam e nesta aventura conheciam personagens esquisitos, seres estranhos e planetas diferentes. O programa que trazia grandes nomes da música como Fafá de Belém, Maria Bethânia e Raul Seixas e também atores como Jô Soares e José Vasconcelos em performances musicais divertidíssimas, originou o disco que é uma daquelas lendas da música nacional.
Embora a maioria das músicas tivesse a ver com a aventura das crianças, algumas como a boa "Sereia", de Lulu Santos, na voz gostosa de Fafá de Belém, ou "Brincar de Viver" interpretada magnificamente por Maria Bethânia, mesmo de inegável qualidade e com alguma sugestão a seres e a um imaginário fantástico, se prestavam menos ao projeto. No entanto, o resto, era pura alegria,diversão  e qualidade.
A Gang 90, banda de sucesso naquele início de anos 80, comparecia com a divertidíssima "Será que o King Kong é Macaca?", bem ao seu estilo naquele rockzinho new-wave; igualmente hilária e gostosa era a glutona "Gruta das Formigas" com o pouco conhecido Sérgio Sá; Eduardo Dusek, encarnando o Mestre Malucão, dava uma aula de matemática muito peculiar na ótima "1+1 é Bom Demais"; Zé Rodrix trazia a legal e educativa "Ilha da Higiene"; e a baladinha delicada "Sopa de Jiló", com a então menina Aretha (filha da cantora Vanusa), era provavelemente a mais fraquinha do disco. Ainda tinha Jô Soares cantando a excelente "Planeta Doce", um rock'n roll saboroso e embalado; e José Vasconcelos se vestindo de uma pretensa ranzinice em "Use a Imaginação" para incentivar as crianças a soltar a mente e inventar novas formas de se divertir. Mas o ponto alto mesmo da trilha sonora ficava por conta de "O Carimbador Maluco", uma atuação e interpretação brilhantes de Raul Seixas fazendo as vezes de uma espécie de 'fiscal de alfândega espacial' que ficava dificultando a partida das crianças (é preciso o meu carimbo dando, sim sim sim sim/ Pluct, Plact, Zummm não vai a lugar nenhum"). Um rock descontraído com a marca da irreverência do Maluco Beleza, nesta que, por incrível que pareça, acabou-se tornando uma de suas mais célebres performances dos últimos tempos de carreira.
Um disco infantil que todo o adulto que eu conheço lembra e curte. Quem teve na época, guardou. Quem teve e perdeu, quer recuperar. Quem nunca teve mas lembra das músicas, quer ter. Músicas que mesmo passado o tempo, permanecem na memória e no imaginário de cada um de nós, mesmo tendo nos tornado adultos. Ou ao contrário, talvez coisas como estas sejam o que nos fazem permancer ainda sempre um pouco crianças.
Feliz Dia da Criança pra todos nós.

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FAIXAS:
01- O Carimbador Maluco - Raul Seixas
02- Gruta das Formigas - Sérgio Sá
03- Sereia - Fafá de Belém
04- Será que o King Kong é Macaca - Gang 90 e Absurdetes
05- Sopa de Jiló - Aretha
06- Brincar de Viver - Maria Bethânia
07- Planeta Doce - Jô Soares
08- 1+1 é Bom Demais - Eduardo Dusek
09- Ilha da Higiene - Zé Rodrix
10- Use a Imaginação - Zé Vasconcelos e a Turma do Pirlimpimpim

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Ouça:
Plunct Plact Zum 1984



Cly Reis