"O esplendor de um navio
marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a
compor a música “Maiden Voyage”
Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais
admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que,
em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente,
chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz
norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade
jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e
arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice
da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao
piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua
estreia como band leader, em 1962,
aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean
Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador.
É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de
1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.
Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que
qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não
apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria
articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências
sonoras. O jazz modal, o be-bop, a
música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela
inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E
a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada
e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo
acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George
Coleman; Freddie Hubbard, no trompete, outro
monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado
pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das
mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.
E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa
de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz
modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos
discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos
harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma
por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros,
enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo
assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem
de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais,
noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro
alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar
num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia
tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo,
quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos
pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E,
por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo
fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo
com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.
Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as
sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente
da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O
seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira
frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os
outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons
em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo.
Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas
sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda
essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da
manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal,
quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia
lhe autoriza.
Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco
anterior de Hancock, seu trompete trazia
um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há
quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões
com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o
clima astral desse passeio musical proposto por
Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama
todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho
de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares:
oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento
do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do
inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada,
adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um
colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética
mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante.
Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma
esfinge ainda a ser totalmente desvendada.
Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the
Hurricane”, hard-bop efervescente, como
o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A
atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e
contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam
acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus
longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num
solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as
ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos
comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de
Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado
chorus da introdução no final.
A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também
a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante,
arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um
breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual
Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos
3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de
Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às
improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre
dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz
lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de
“Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.
O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock
regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia
bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa
em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um
bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade
adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica
maneira de terminar a “viagem inaugural”.
O ano de 1965 foi
de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The
Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage”
certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no
caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50
melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a
permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus
músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois
de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o
músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu,
já estava nadando pelos mares do pós-bop,
do fusion e do funk para mudar
novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como
uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem
volta e com destino à eternidade.
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FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance
todas as canções de autoria de
Herbie Hancock.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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