Curta no Facebook

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2015)



Estão sempre tentando pegar Chico Buarque. Acusações por apoio ao PT, pela não-defesa das biografias não-autorizadas, por trair a ex-mulher, por ser um tiozão que “pega” meninas, pela linhagem nobre dos Buarque de Holanda, por ser “esquerda caviar”, por usar a fama como músico para vender-se como escritor. Até culpá-lo por ter olhos azuis já ouvi algo do tipo. Parece-me salutar e pertinente que, justamente no momento em que se lança o já sucesso de bilheteria “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., aconteça mais um episódio do tipo: a tão noticiada discussão do artista com um passante cujo motivo junta às imbecilidades mencionadas acima mais uma delas: a de Chico ter um apartamento em Paris (!...).

Essa manifestação raivosa e incontida dessa direita burguesa, invejosa e preconceituosa – que, como diz Eric Nepomuceno, saiu do armário, e isso desde os protestos de 2013 –, é mais um dos casos em que se tenta enquadrar Chico e ele sai, se não ileso, íntegro. O filme passa isso: a integridade de um artista cujas bases e conceitos estão profundamente ligadas ao Brasil mais expressivo, seja em suas belezas ou moléstias. Com uma narrativa que intercala depoimentos de amigos e admiradores com as do próprio Chico de dentro de seu maravilhoso AP no Alto Leblon (mais longas que as falas dos outros), traz ricas imagens de arquivo entre fotos e vídeos, algumas surpreendentes pois muito raras, como um trecho da histórica apresentação de “Cotidiano” dele com Caetano Veloso no Teatro Castro Alves (presente no disco ao vivo da dupla de 1972). Igualmente surpresa é o depoimento de Vinícius de Moraes – ao qual eu pelo menos não conhecia – dizendo que o amigo era alguém acima da média.

Chico em um dos depoimentos do filme.
O recorte do documentário é muito bem pensado, pois delimita tanto a quantidade de entrevistados quanto a função narrativa dos mesmos. E olha que teria muita gente interessante para falar sobre Chico! A única parente a depor, por exemplo, é a irmã Miúcha. E chega por aí. Nada de filhos, sobrinhos, genros, outros irmãos. No máximo, os netos, que aparecem tocando com ele sem entrevistas. Afinal, o contexto familiar e a importância da hereditariedade já estão devidamente representados e inseridos. De Marieta Severo – provavelmente convidada e que teve a sensibilidade de não expor a ela e nem ao ex-marido, mas que autorizou que lhe referissem – os próprios registros documentais a trazem naturalmente, seja no encontro com Chico, nos anos 60 (contado pelo saudoso Hugo Carvana), seja nos vídeos e fotos antigos. Ela também é indiretamente mencionada quando Chico fala com franqueza e descomplicarão sobre a solidão dos tempos atuais, embora revele que jamais pensara viver sozinho (“Saí de um casamento de anos achando que virando a esquina ia me casar de novo”, confessa).

Os assuntos, entremeados entre si mas recorrentemente redirecionados à questão da família, são profundos, mas conduzidos pela serenidade de Chico. Ele passa a impressão de literalmente não dever nada a ninguém. Ou melhor, deve, mas a si mesmo, uma vez que o próprio diz que sempre cai na encruzilhada de não se repetir, por mais consagrado que seja aquilo que realizou até então. O negócio dele é se experimentar, aprender, inovar-se – um dos motivos pelos quais caiu tão de cabeça na literatura dos anos 90 para cá. Entra-se, igualmente, em assuntos como política, censura, fracasso, sucesso, memória, Brasil, morte, futebol e paixões. Tudo dito por ele e seus parceiros (Edu LoboTom JobimMaria BethâniaRuy Guerra, entre outros) com leveza e sinceridade, sem superdimensionar nada, porém sabendo-se da grandeza da vida e obra do autor de incontáveis clássicos do cancioneiro brasileiro como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Roda Viva”.

Outro elemento interessante do filme, característico dos documentários de Faria Jr., são as apresentações em estúdio com músicas do autor. Além de muito bem cenografadas e iluminadas, trazem duas com o próprio Chico cantando (“Sinhá”, no começo, e “Paratodos”, no fim) e outras com artistas convidados, como Milton Nascimento, Carminho, Adriana Calcanhoto e Mart’nália. Esses momentos musicais, que provocam obrigatoriamente pausas no fluxo narrativo, não o quebram, entretanto. O que para muitos foi danoso no documentário que o diretor fizera sobre o poetinha (“Vinicius”, 2005), pois incorria justamente nessa instabilidade (quando o expectador estava engrenando na história, vinha uma declamação duvidosa da Camila Morgado pra chatear), em “Chico...” funciona bem, pois os números se integram de algum modo à narrativa. É o que acontece quando Chico está falando sobre a complexidade inconsciente de alguns temas que compôs e, na sequência, vem, na voz de Mônica Salmaso, “Mar e Lua”, canção que explora temas espinhosos como homossexualismo e suicídio. Afora isso, todas as apresentações são muito boas: Milton e a portuguesa Carminho juntos (um arraso em “Sobre todas as coisas”); Calcanhoto e Mart’nália, em um dueto ótimo (“Biscate”); Ney Matogrosso (“As vitrines”), impecável como de costume; Moyseis Marques (“Mambembe”), lindo, uma revelação para mim; e até o “pagodeiro” Péricles (“Estação Derradeira”) mandando bem sobre o especial arranjo do diretor musical do filme e do próprio Chico, Luiz Cláudio Ramos.

Até Péricles se saiu bem interpretando Chico.
Porém, o que realmente conduz todo o filme – sem que o expectador perceba isso de início – é a busca pela essência a que Chico se impõe. Tendo como mote seu último romance, "O Irmão Alemão", no qual ele como protagonista vai à procura das pistas de um filho que seu pai tivera na Alemanha nos anos 30 antes de voltar ao Brasil e se casar com sua mãe, Chico se mostra, chegado à terceira idade, com a consciência daquilo que lhe pertence como indivíduo. Nisso, claro, ao longo do filme, vão se acessando questões da sua hereditariedade e, principalmente, as que se referem a seu pai, como a convivência, a distância emocional e a influência (positiva e negativa) que este exercera sobre ele como pessoa e artista.

A caça a essa “nova velha” história do irmão da Europa, uma reconstrução tão hipotética quanto passivelmente improvável (haja vista que, jogado na aventura da descoberta, poderia não achar nada significativo que lhe fornecesse nexo suficiente), dá um toque muito especial ao longa. Tal como é comum mais na ficção, Faria Jr. (um bom ficcionista) joga com os três níveis básicos do cinema: interno, externo e espectatorial, uma vez que esse elemento, a figura/ideia do irmão (o qual podemos classificar como “interno”) é desconhecido tanto do “protagonista” (Chico, no caso), quanto do espectador, configurando-se num “gancho” gerador de curiosidade e suspense a todos, dentro e fora da tela. Como o grande documentarista Eduardo Coutinho tão bem fizera no clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), em que a busca aos atores de seu filme interrompido nos anos de Ditadura Militar serve de motivo para uma ressignificação metalinguística cuja aleatoriedade imputa-lhe o teor crítico almejado.

Saborosamente biográfico, “Chico...” já seria bom por vários outros fatores – as canções, as histórias engraçadas, a reverência dos colegas e amigos, as identificações que se têm com alguém tão admirável como ele –, mas o “elemento-irmão” é a cereja do bolo. Mal comparando, traz uma sensação semelhante a que tive com o desfecho que Martin Scorsese forjou em “No Direction Home”, sobre Bob Dylan (2005), naquela cena em que se esquece a câmera ligada apontando para o teto no fatídico show no Manchester Free Trade Hall, em 1966. Qualquer ser minimamente normal excluiria aquilo como sendo um erro de gravação. Scorsese, não: com atenção e sensibilidade, resgatou-a e compôs com aquilo o significado mais expressivo e simbólico do filme.

Em respeito aos que ainda não assistiram a “Chico...”, claro, não vou contar exatamente a que me refiro para não estragar a surpresa. Independente disso, contudo, só o fato de contar a história de alguém vivo e em atividade, tanto quanto o de expô-la com sensibilidade e critério, já vale a sessão. O que se confirma é a coerência da obra de Chico, sempre afinada com seu íntimo e consciência, seja na música, no teatro, no cinema ou na literatura. Uma dignidade admirável jamais abalável por um mero ataque verbal nas calçadas da vida. Chico Buarque, o grande artista brasileiro e mundial, é muito maior que essas más-resoluções do brasileiro ignorante e “vira-lata”, o que, sem precisar forçar, o filme deixa muito claro.


trailer oficial "Chico: Um Artista Brasileiro"



Um comentário: