"Em algum lugar entre Roberto Carlos,
Rita Lee e Syd Barret,
Júpiter sente seu corpo derreter,
visita planetas e conversa com seres imaginários.
'Loki' é elogio.”
Alexandre Matias,
revista Rolling Stone Brasil
Flávio Basso é visto por muitos, por setores da crítica
especializada, principalmente, como um músico de extremo talento, arrojado e
inventivo, um multi-instrumentista de mão cheia. Um de seus álbuns, “Plastic
Soda” (Trama, 1999), totalmente escrito, produzido, arranjado e executado por
ele, chegou a ser premiado, em 2000, como o melhor disco do ano pela Associação
Paulista de Críticos de Arte (APCA), recebendo também o Prêmio Açorianos,
concedido pela Secretaria de Estado da Cultura/RS. Em votação feita por cerca
de 50 músicos, críticos, jornalistas e produtores musicais, para a revista
Aplauso, publicada em 2007, “A Sétima
Efervescência”, seu primeiro álbum solo, foi eleito o melhor álbum da
história do rock gaúcho. O mesmo disco foi eleito também pela revista Rolling
Stone Brasil (n. 13, outubro de 2007, p. 127) como um dos 100 melhores álbuns
brasileiros de todos os tempos, figurando na 96º posição. Na ocasião, assim se
pronunciou a revista:
“Um raio lisérgico
atingiu a cabeça do ex-Cascavelletes Flávio Basso nos anos 1990 e ele reuniu
diferentes pontas soltas pelo rock – Jovem Guarda, mod, garagem e psicodelia –
em um disco forte, coeso e chapado. Começa com “Um Lugar do Caralho”, um Cavalo-de-Tróia que não prepara o ouvinte
para a chuva Technicolor de referências que flutuam ao redor do compositor como
alucinações sorridentes. Em algum lugar entre Roberto Carlos, Rita Lee e Syd Barret, Júpiter sente seu corpo derreter, visita planetas e conversa com seres imaginários.
“Loki” é elogio”.
Aqui, duas abordagens sobre Flávio Basso, o Júpiter Maçã, que trazem à luz sua
representatividade e complexidade dentro da cena musical rock gaúcha e
brasileira.
Estrangeirismos,
fantasias e complexidade de Júpiter Maçã
O texto do jornalista Alex Antunes, publicado no portal
Yahoo! Notícias, em 23/12/2015, abordando a morte de Flávio Basso, músico
gaúcho conhecido como Júpiter Maçã, se caracteriza, sobretudo, por sua
pronunciada pessoalidade. Dizendo-se fã do álbum “Hisscivilization”, lançado em
2002, declarando admiração por certas composições do artista recém-falecido,
Antunes também menciona o amigo pessoal Cisco Vasques – produtor audiovisual
com quem Júpiter havia trabalhado –, refere-se à própria timeline como plataforma de acesso ao mundo e, de quebra, utiliza
Rogério Skylab como recurso para fazer um autoelogio sutil, o trampolim de um
pequeno panfleto classista.
O escrito, no entanto, para além do tom auto-centrado,
possui outras características interessantes: é cheio de sinuosidades,
insinuações e implicâncias. Por trás delas – ou junto delas – encontram-se
distintos julgamentos de valor, nunca explicitados ou assumidos com franqueza.
A começar pelo próprio título: “O crepúsculo do Zé Louquinho”, infantil,
brincalhão e jocoso, numa primeira leitura, depreciativo e desrespeitoso, numa
segunda passada de olhos.
Antunes reclama cautela quanto ao uso abusivo da expressão
“gênio” para definir Basso, vida e obra. É um alerta, sem dúvida, apropriado.
Muito embora se esqueça de considerar aí, nesse flagrante exagero retórico, o
impacto da notícia da morte e o próprio carinho que, assim, mal elaborado, se
manifesta publicamente, no calor do momento. De todo modo, reconhece, trata-se
de um músico “talentoso” e inspiradíssimo. Ou seja: Antunes considerou mais
eloquente a imprecisão do que a espontaneidade dos admiradores de Júpiter Maçã.
Para ele, o músico falecido seria, em realidade, mais “chapado e folclórico” do
que propriamente “genial”.
Aponta então uma razão adicional pela qual “estranhou” as
narrativas e os depoimentos que atravessavam, em profusão, naquele momento, sua
timeline: o “fator Gainsbourg”, isto
é, a capacidade de certos artistas provocarem maior comoção, serem melhor
acolhidos, por sua base de fãs, depois que morrem.
São considerações tão problemáticas quanto provocativas. Por
um lado, servem ao necessário debate público sobre a figura e o legado musical
de Júpiter Maçã. Por outro, contudo, são afirmações frágeis, que escondem
vieses e limitações pessoais, limitações de perspectiva.
Obviamente, não se pode estipular com clareza a linha
divisória entre a “genialidade” e a “chapação”, o caráter “folclórico”
atribuído ao gaúcho Basso. Não é uma distinção fácil de ser feita, afinal de
contas. Ao entendê-lo e ao enunciá-lo como “genial”, os fãs poderiam ter em
mente, justamente – talvez tivessem em mente, de fato – os momentos em que,
para eles, um criador “chapado” ganhou corpo, alçando-se muito acima de
qualquer expectativa média ou qualquer previsibilidade que se pudesse ter. O
terreno da música pop, mais do que qualquer outro campo de produção artística,
é ideal para que proliferem embaralhamentos (bem como epifanias) deste tipo. A
rigor, em se tratando de Júpiter Maçã, é extremamente difícil separar com
clareza tais personificações (o “gênio”, o “folclórico” e o “chapado”). A não
ser que se queira, deliberadamente, mais do que enfrentar a complexidade viçosa
que ele carrega, produzir insinuações e desacreditações sutis a respeito dela.
É o que faz Antunes. Desse modo, Júpiter resulta, no mínimo, como um tipo
suspeito.
E há mais. Trata-se de focar, num tom crítico e severo, o
“comportamento abusivo do gênio incompreendido, como um todo”. Aqui, através de
outra definição vaga e inespecífica, sugere-se algo sobre a conivência
necrófila dos fãs e o apego dos gaúchos aos “mitos datadões do rock” clássico.
Em outros termos, está se falando sobre perversidade e culpabilização dos fãs
(assim equiparáveis, num extremo radicalíssimo, à criminalização do próprio
músico, exigida conforme episódio relatado [ou melhor: insinuado, apenas, sem o
devido trato jornalístico]). Está se falando ainda sobre a desatualização dos
gaúchos, presos em clichês trágicos e românticos, incapazes de ceder diante do
curso natural e incorrigível da história (leia-se: as mãos do mercado). Júpiter
Maçã deveria ter se tornado Cidadão Instigado, assevera Antunes.
Ou seja: são avaliações muito parciais, muito
auto-centradas, que advogam para si uma centralidade e uma razão centralizadora
incapazes, em última instância, de dar conta das mutações descentralizadoras,
da criação policêntrica, do exercício de dissolução de núcleos de poder e força
estética que marcaram, permanentemente, a trajetória de Flávio Basso. Numa
pérola, Alex Antunes chega a dizer que Basso “não estava se embatendo com nada
real”, parecendo não reconhecer que este suposto ente imaginário, esta fantasia
doente, tirou-lhe, por fim, a vida real de que gozava. É o caso raro de uma
irrealidade mortal.
O artigo termina abruptamente. Deixa-nos a sensação de que
faltou complementar o argumento, assinar a pintura, assumindo-lhe, a ferro e
fogo, a autoria. Esta falta parece o produto de um recuo político e estratégico
– jogadas ao ar, como já estão, as insinuações. E Júpiter Maçã, claro, “pode
ser considerado vítima de uma doença, a da adição a substâncias”. Ponto. Assim
como Alex Antunes pode não saber exatamente o que fala. Ou pode também não
querer dizê-lo integralmente, talvez por razões pessoais, razões que
desconhecemos, que não podem ser ditas ou ouvidas; talvez por simples (e
inconfessável) respeito ao morto, aos estrangeirismos, às fantasias e à
complexidade da vida que ele deixou.
Júpiter Maçã em Porto
Alegre*
Flávio Basso foi uma das figuras mais controversas da música
jovem feita no Rio Grande do Sul nos últimos trinta anos. É também um dos
maiores talentos já vistos na cena local, sem sombra de dúvida. De fato,
notoriedade e controvérsia não lhe faltaram em momento algum. Gostaríamos de
examinar aqui, em função de sua representatividade, o modo como este artista
singularíssimo se traduziu e se deixou traduzir no imaginário da cidade.
O bar Garagem Hermérica, por exemplo, situado na rua Barros
Cassal, entre 1992 e 2013, foi o ambiente (de contatos, bebedeiras, vínculos
afetivos e circulação de informações) no qual "A Sétima Efervescência" (1997),
seu primeiro álbum solo, foi concebido. Por hipótese, pode-se dizer (pode-se
suspeitar, pelo menos) que o Garagem Hermética – em sua primeira fase (cf. Leo
Felipe, 2014) – é justamente o “lugar do caralho”, que ele canta numa de suas
canções mais conhecidas, a música de abertura, o primeiro grande hit do álbum.
“Eu preciso encontrar/
Um lugar legal pra mim dançar/ E me escabelar/ Tem que ter um som legal/ Tem
que ter gente legal/ E ter cerveja barata/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam
mesmo afudê/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas / E super chapadas/ Um
lugar do caralho/ Sozinho pelas ruas de São Paulo/ Eu quero achar alguém pra
mim/ Um alguém tipo assim/ Que goste de beber e falar/ LSD queira tomar/ E curta
Syd Barrett e os Beatles/ Um lugar e um alguém/ Que tornarão-me mais feliz/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas e super chapadas/ Um lugar do caralho/
Lugar do caralho.”
No entanto, para encontrarmos Porto Alegre inscrita na obra
de Júpiter Maçã, não devemos procurá-la explicitada, límpida e fácil,
prontamente exposta nas letras das composições. Do ponto de vista referencial,
acreditando-se então em sua carga denotativa, “Um Lugar do Caralho” narra
buscas noturnas e aventuras lisérgicas paulistanas. É a cidade de São Paulo que
funciona como um campo de ações, no qual anunciam-se algumas vontades e emerge
uma pequena série de referências simbólicas (que são também referências
anímicas). Porto-alegrense, no caso, é a coloquialidade, o repertório de gírias
e o sotaque empregados.
Convém lembrar que o rótulo “rock gaúcho”, como disseram
Humberto Keske e Lidiani Lehnen (2012), antes de indicar uma procedência
geográfica, indica um certo acento, um certo dialeto – um dialeto gaúcho, dizem
os autores –, alguma insularidade, “moldada entre o conservadorismo e a
vanguarda cultural” (Keske e Lehnen, 2012, p. 521). “A Sétima Efervescência” é
assim: conservador (pois revivalista) e vanguardista, quase displicente em
relação ao horizonte real em que está imerso. Quase nada é dito sobre Porto
Alegre, sobre a vida em Porto Alegre. A rigor, não há ali nenhum localismo,
nenhum tradicionalismo, nenhuma cultura gaúcha (num sentido folclórico ou
etnográfico, ao menos).
A cidade deixa-se avistar apenas de passagem, numa ou noutra
menção, numa ou noutra estrofe, um tanto lateral e circunstancialmente. É o
caso das canções “Querida Superhist x Mr. Frog” (que diz: “Hey querida, domingo vamos passear lá no Parque da Redenção/ Vamos
viajar”) e “Eu e Minha Ex” (“Eu e
minha ex/ Na tempestade/ Sob o mesmo guarda-chuva/ Pelas alamedas de Porto
Alegre/ Do Mercadão até o Bom Fim”). E isto é tudo. Com exceção de “Canção
para Dormir”, que fala, muito de relance, sobre uma lenda típica da região sul
do Brasil (“Eu acredito em fantasmas/ Em
mula sem cabeça/ Negrinho do Pastoreio”), não há mais nada. Absolutamente
nada. E não faz a menor falta!
Todavia, esta desaparição da cidade do universo temático do
artista se mantém nos quatro discos posteriores? Em linhas gerais, sim. Como
predominância, sim. Os olhos de Júpiter não estão vidrados na cidade. Muito
embora, algumas ocorrências sinalizem certas nuances e/ou variações
importantes. É o caso da
canção “Bridges of Redemption Park”, de “Plastic Soda”, uma bossa nova escrita
como uma crônica afetiva sobre o Parque da Redenção, cuja letra diz: “Brigdes of Redemption Park/ So little/ So
chinese/ So guiding/ So inviting/ There is few Buddhist and Christians/ Some
‘gloomy’/ And people who drop out to see…”.
Mas sua singularidade não reside apenas nisto, no fato de
ser um aparte, uma ilha temática – um retrato de Porto Alegre fazendo-se então
visível –, num conjunto de obsessões e preocupações outras, muito mais
habituais, quase sempre na linha “sexo, drogas e rock and roll”, apresentadas
em tônicas mais ou menos ácidas, conforme o estilo musical invocado. Trata-se
de uma bossa nova cantada em inglês, versando sobre um conhecido parque situado
próximo ao centro da cidade. No entanto, de algum modo, o cenário descrito, em
seu significado e em sua aderência local, é contradito e duplamente
neutralizado, seja pelo idioma (o inglês, língua universal), seja pelo
imaginário construído em torno do gênero (o caráter nacional, não
necessariamente regionalista, da bossa nova).
Mas há outros casos equiparáveis. Um deles é “Casa de
Mamãe”, do álbum “Uma Tarde na Fruteira”. Num trecho, a letra diz o seguinte:
“Olhando os mísseis na
tevê/ Tomando chá/ Tô hospedado na capital/ Com Thalita F. Jones/ Na casa de
mamãe/ Outra vez/ Na casa de mamãe/ Além disso eu nem progredi/ No meu blues
tropicalista/ No meu blues neo-modernista/ Na minha canção mais estereofônica/
Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/
Eu gosto de Porto Alegre.”
É um relato enfático, de tons intimistas e metalinguísticos,
mas que pouco diz verdadeiramente sobre a cidade. Recorrer, portanto, ao
conteúdo manifestado nas letras não é, decididamente, uma boa estratégia. Não
só porque canções como “Casa de Mamãe” e “Bridges of Redemption Park” perfazem
um grupo minoritário, junto com mais duas ou três, mas porque a relação de
Júpiter Maçã com Porto Alegre é mesmo muito mais complexa, podendo ser
decomposta e examinada a partir de várias outras angulações complementares. Em
primeiro lugar, pode-se cotejá-la à trajetória, às fases da carreira do
artista, que vai amadurecendo e se transformando, artisticamente, que vai sendo
reconhecido na medida em que se constitui um mercado midiático (um conjunto de
rádios e espaços de mídia impressa, por exemplo) e a própria cultura do rock local.
* O texto é parte de
um artigo maior e mais desenvolvido, publicado no México, como um capítulo
independente, num volume sobre música e cidade na América Latina. A publicação
saiu no primeiro semestre de 2015. Aqui, alguns pequenos ajustes foram feitos.
A referência correta é: SILVEIRA, Fabrício. Porto Alegre en el espejo partido
de Júpiter Maçã. In: VARGAS, Herom y KARAM, Tanius (eds). De Norte a Sur:
música popular y ciudades en América Latina. Apropiaciones, subjetividades y
reconfiguraciones. Mérida (Yucatán, México): Secretaría de la Cultura y las
Artes de Yucatán, D. R. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, Editorial
Libro Abierto, 2015, p. 347-376. Agradeço a Herom Vargas e Tanius Karam, os
organizadores do livro.
Referências
FELIPE, Leo. A
Fantástica Fábrica. Porto Alegre – RS: Publicatto Editora, 2014.
KESKE, Humberto Ivan; LEHNEN,
Lidiani. Na trilha sonora dos pampas: a batida pesada do rock ‘n’ roll a
la gaúcho. Rio de Janeiro – RJ, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), revista Polêmica, v. 11, n. 3, julho/setembro de 2012, pp. 503-523.
************
FAIXAS:
- "Um Lugar do Caralho" – 4:58
- "As Tortas e as Cucas" – 4:39
- "Querida Superhist x Mr. Frog" – 5:40
- "Pictures and Paintings" – 3:09
- "Eu e Minha Ex" – 5:52
- "Walter Victor" – 3:43
- "As Outras Que Me Querem" – 2:43
- "Sociedades Humanóides Fantásticas" – 6:42
- "O Novo Namorado" – 3:12
- "Miss Lexotan 6mg Garota" – 4:57
- "The Freaking Alice (Hippie Under Groove)" – 5:09
- "Essência Interior" – 7:00
- "Canção Para Dormir" – 3:13
- "A Sétima Efervescência Intergaláctica" – 2:38
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