"A delicadeza visceral de
Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...)
Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do
malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro,
tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a
centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou
até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os
dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha,
outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também
soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade
O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que
proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como
exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o
guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do
alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para
alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De
fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a
ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que
chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de
classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a
música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e
a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como
pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do
justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais
genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente
para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística
definitiva deste Mozart do morro: Cartola.
Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a
consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando
negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a
capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente
nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em
1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67
anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a
isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi
o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a
discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram.
Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos
carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se
entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a
primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira,
época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen
Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às
vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os
estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai
meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo
desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o
descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos
botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia
conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores,
monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante
na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a
partir dali fadado finalmente só aos aplausos.
Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da
vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o
organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos
Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio
mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram
dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música
brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e
protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das
joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes –
“Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia,
1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares,
1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos
gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É
Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas
da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal
dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre
buscou. “Preste atenção querida/ De cada
amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo
que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e
admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo,
assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão
solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.
Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como
mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a
tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas
imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que
só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse
questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos
marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja
vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o
primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom
moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os
versos! “Pois então saiba que não
desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas
canções”.
Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela”
vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de
Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone
inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa
inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos;
Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento
originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino
7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula
de uso poético do idioma lusófono: “Pode
ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama
“rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde
sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.
Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta
por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente
gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro
mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de
um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro
de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de
“Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do
personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/
Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos
versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.
“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de
tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa,
seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra
(En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses
sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura
parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz,
ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade
superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um
Moinho” (e outras composições sui-generis
como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar
como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da
revista Rolling Stone Brasil.
Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não
parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por
Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e
pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da
melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar
algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para
tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado
a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes
de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O
arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o
brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza
literária desses versos: “Queixo-me às
rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume
que roubam de ti, ai”?
“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor
desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente
com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana,
repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista,
no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem
social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa
linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais
um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e
técnica, entre artista e sua arte. “Ai,
essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus
acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão,
compreende porque/ Perdi toda alegria”.
O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão
conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande
riqueza cultural”. Foi nesta época
que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba,
tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e
morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois
primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam
um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da
cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões
socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para
que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como
Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e
Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na
última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e
vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos,
em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E
se a fama chegou até a porta de
Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência,
enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.
FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço
todas as faixas compostas por
Cartola, exceto indicadas.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
Excelente análise do álbum e da arte de Cartola.
ResponderExcluirOuvi por acaso a “Op. 34: Nº14, vocalise- Rachmaninoff” e na hora pensei: Cartola “copiou” daí!
ResponderExcluirMuito parecido.