Curta no Facebook

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

cotidianas #418 - Rorschach



"Um belo gramado cercado por canteiros de flores cortado por um caminho de pedriscos que ao longe dá em um belo e frondoso bosque."
A descrição de uma paisagem tão bucólica e tranquila fez parecer ao médico num primeiro instante que finalmente o paciente apresentava algum progresso no tratamento.
- E neste, o que vê agora? - perguntou o médico puxando outra cartela.
- Um rio. Apenas um rio. Correndo calmo e tranquilo.
Era surpreendente: pela primeira vez desde que chegara àquela instituição, aquele paciente demonstrava algum sinal de avanço, ainda que mínimo, é verdade, mas só o fato de reagir daquela maneira ao teste já era um bom indício, ele que normalmente costumava descrever cenas brutais, assustadoras e revoltantes naqueles testes de Rorschach.
- E agora? - disse o médico mostrando outra.
- Pessoas. Pessoas de roupa branca - e cessou encarando o médico num olhar que parecia misturar doçura com provocação.
Bom, ao médico pareceu outro bom sinal. Pessoas, (referir-se a pessoas de uma forma natural sem atribuir-lhes adjetivos nada agradáveis também parecia interessante) e a cor branca (também era um elemento positivo: poderia significar paz, asseio, neutralidade...). Definitivamente era algo bom. Fez questão de anotar no bloco que tinha à sua frente sobre a mesa.
Tirou mais uma figura borrada da pilha que tinha à sua frente e mostrou ao paciente.
- O que vê?
- Quatro linhas que se encontram no infinito. Uma perspectiva.
O médico virou a figura borrada simétrica para si com um indisfarçável ar de estranheza. Aquilo podia ser qualquer coisa menos o que o paciente descrevera. Mas, enfim, a cabeça de um psicopata não funciona como a das outras pessoas. Começou a interpretar no entanto de outra maneira. Menos positiva agora. E se seu paciente estivesse vislumbrando a morte? Com a caneta já posada verticalmente sobre o papel, acrescentou um ponto de interrogação ao lado da observação sobre o cartão nº6 e sacou outro, apresentando-o, desta vez sem sequer perguntar nada ao paciente que contudo, já entendera a sugestão do gesto e respondeu:
- Uma porta, uma grade, um buraco.
O médico notando a diferença no tom e no conteúdo das impressões anteriores do preso, anoutou e prosseguiu. Avaliaria depois. Não queria tirar conclusões precipitadas. E agora:
- Uma sala. Uma sala pequena. Tem dois homens.
-Seríamos eu e você? - inquiriu o psiquiatra.
- Pode ser. - lacônico.
- Esta sala tem uma mesa no meio? - insistiu.
- Pode ser...
Desconfiado, agora tentando penetrar um pouco mais a fundo no que pensava o interno naquele momento, sacou outra carta:
- E agora, o que vê aqui?
- Uma chave.
- Que tipo de chave?
- Uma caneta.
- Uma caneta?
- Sim.
- Como esta? - quis mostrar a sua para o paciente mas não a encontrou.
- Como esta! - mostrou o preso com ar perigosamente exultante.
A mesma caneta que serviu para ser cravada várias vezes no pescoço do psiquiatra, com uma de suas peças menores, provavelmente a presilha de bolso, serviu para abrir a fechadura.
Depois de ver-se livre da porta, observou rapidamente a profundidade do corredor e o atravessou correndo. No final dele visualizou homens de branco vindo em sua direção. Era muito forte. Não teve problemas em superá-los facilmente. Percorreu outros corredores, desceu as escadas, encontrou outros enfermeiros, esgueirou-se e finalmente estava diante da porta principal. Às suas costas um rio de sangue, à sua frente, um belo gramado cercado por canteiros de flores, cortado por um caminho de pedriscos que, ao longe, daria em um belo e frondoso bosque.


Cly Reis

2 comentários: