Uma das coisas mais impressionantes que já presenciei em um show de
música foi numa apresentação de Naná Vasconcelos. Algo tão impressionante que
me leva a relativizar, inclusive, os termos que acabo de usar: “apresentação” e
“show de música”. Não me refiro necessariamente à emoção de assistir a um
artista que se gosta, o que, por si, já causa impressão. Naná foi um deles,
assim como foi Paul McCartney, Gilberto Gil, Morrissey, Maria Bethânia, Helmet, Di Melo, The Cure, Monarco, Primal Scream, Milton Nascimento, e por aí vai. Só
vê-los num palco, gigantes que se tornam – alguns, de baixa estatura como Caetano Veloso ou Vitor Ramil, mas enormes entidades quando cantam –, é um
momento especial.
Refiro-me a outra coisa. Esse show de Naná foi em 2010, no Salão de
Atos da UFRGS, em Porto Alegre. A começar, não havia mais ninguém no palco:
apenas o gênio pernambucano (mais um deles) cujos tambores e percussões foram responsáveis
por virar de ponta-cabeça a música do século XX com sua arte originalmente
universal, forjada no âmago mais recôndito da África negra mas sensivelmente
generoso aos sons de todo o mundo. Tudo que se fala hoje em termos de inclusão,
diversidade, cosmopolitismo e até sustentabilidade estavam presentes desde
sempre na música de Naná. As reminiscências da humanidade estão preservadas em
seus sons, a manifestação inata e orgânica do corpo em movimento também, assim
como entenderam Meredith Monk, os tap dances norte-americanos, Dorival Caymmi, Violeta Parra, os bluesmans do Mississipi.
Pois, por toda essa complexidade – extremamente natural de ser sorvida
e apreciada com a maior das facilidades –, questiono que aquilo tenha sido uma
“apresentação” e necessariamente de “música”. Ele, sozinho no palco, rodeado de
alguns instrumentos percussivos (não muitos), não simplesmente apresentou, mas
experenciou algo a nós, plateia. E não somente um show, o que seria simplório,
mas, por cerca de 1 hora, vivemos um momento de humanidade. Conversou e contou
histórias com a simplicidade contrastante de um tímido acostumado a comandar
públicos há décadas. Mas, principalmente, tocou. Tangeu, atritou, bateu,
produziu sons. Ele e instrumentos eram a mesma coisa. Do mesmo barro.
Independia a nós, que ouvíamos sua arte e certamente, antes de mais nada, a ele próprio, se os sons emanavam do seu aparelho
vocal, do berimbau, da pancada com as mãos em sua própria pele ossuda e
ressonante ou da sua respiração. Ecos, reverberações, estampidos, fala,
raspados, vibrações: tudo de igual origem.
Provavelmente só vira tal integração natureza/homem quando assistira
Monk ano passado, quando esta recolhera o repertório de 50 anos de pesquisas e
aprofundamento de sua “música impermanente”. Com Naná, entretanto, a
comunicação foi maior. Costumaz colaborador de tantos e tantos artistas e
bandas pelo mundo, em realidade não precisava de mais ninguém num palco. Quando
o vi, havia Naná e centenas de outros. Todos dentro dele. Naquele dia, quem teve
a sorte de estar na plateia – e isso certamente ocorria a muitos e em qualquer
lugar que fosse, dada a generosidade de sua arte – teve a chance de
experimentar essa sensação tão natural a nós, humanos, e, curiosamente, tão inacesssada.
Foi quando, para terminar o “encontro” (nego-me a classificar somente
como “show”), Naná convidou a nós da plateia a produzir o som do Rio Amazonas
quando chove... Sim, o som da água, da chuva caindo no rio e na mata! Como um
maestro – ou um mago –, regeu-nos. Sob seu comando emitimos sons guturais e
batíamos palmas acompanhando um ritmo que ele conduzia em gestos. O resultado foi
algo simplesmente transcendente. Estávamos ali, sim, imitando o som da chuva na
selva. Tornamo-nos água naqueles instantes, rumamos direto para àquilo que nos
forma, que nos rege, aquilo que nos compõem em maioria em termos físicos e
espirituais. Vibramos todas nossas moléculas e as harmonizamos no ritmo das
ondas, sob a orientação dos ventos, sob a influência dos astros. Voltamos ao
útero. Sentimos a pureza.
Não sei do restante das pessoas, mas eu nunca mais fui o mesmo a partir
daquele momento. Mesmo que pouco, aquela experiência me mudou para sempre de
alguma maneira, a ponto de, hoje, quando Naná Vasconcelos deixa esse planeta do
qual tanto compreendeu e simbolizou com beleza, lembrar-me justamente desse
episódio. Ele dizia que nunca iria gravar aquilo, pois era uma experiência para
ser vivida. Eu vivi. E virei água como ele.
NANÁ VASCONCELOS
(1944-2016)
por Daniel Rodrigues
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