“Quando terminamos as bases e os
vocais
para aquela leva de músicas,
começamos a ensaiar um material
que poderia render ainda mais um disco,
mas que eu havia composto para o filme.
Quando ‘Little Creatures’ saiu,
eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’.
Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base
para as músicas do filme até o set de filmagens em Dallas
e adicionei um pouco do tempero texano”.
para aquela leva de músicas,
começamos a ensaiar um material
que poderia render ainda mais um disco,
mas que eu havia composto para o filme.
Quando ‘Little Creatures’ saiu,
eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’.
Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base
para as músicas do filme até o set de filmagens em Dallas
e adicionei um pouco do tempero texano”.
David
Byrne,
em seu livro
“Como funciona a música”.
O ano de 1986 é especial para quem pegou o rock dos anos 80. Talvez junto
apenas com o ano anterior (que viu nascerem "Meat is Murder", dos Smiths, "The Head on The Door", do The Cure, e "Psycho Candy", da The Jesus and Mary Chain),
tanto no Brasil quanto fora houve discos essenciais de bem dizer todas as
grandes bandas e artistas da cena pop da época. No cenário internacional, em
especial, muitos se superariam no sexto ano da chamada “década perdida”. Siouxsie and the Banshees poria na praça o sucesso “Tinderbox”, a P.I.L; de John Lydon chegaria ao auge com "Album" e Smiths e New Order estourariam nas
rádios com “The Queen is Dead” e "Brotherhood" respectivamente, para ficar em apenas quatro exemplos. Embora de sonoridades distintas, mesmo que afim em certos
aspectos, o ponto que os unia era o fato de que, já trilhados alguns anos e
discos lançados, todos chegavam naquele momento mais maduros e donos de sua música.
Assim, 1986 trouxe uma culminância de grandes álbuns não por coincidência, mas
por que representou o desenvolvimento artístico da geração vinda do punk.
Essa onda atingiu outra grande banda do final dos 70/início dos 80: o Talking Heads. Liderados pelo talentoso
esquisitão David Byrne, os Heads, surgidos na cena punk nova-iorquina, haviam largado
com o referencial "77", daquele ano, passado pela brilhante trilogia com Brian Eno (“More Songs about Bouildings and Food”/"Fear of Music"/"Remain in Light")
e pelo bom “Sepeaking in Tongues”, além de mais três registros ao vivo. Nesse
transcorrer, atravessaram a virada dos anos 70 para os 80 avançando em estilo e
personalidade. Se no começo, comandados pelo produtor Toni Bongiovi, foi o
proto-punk e, logo em seguida, Eno os tenha empurrado para o experimentalismo
pós-punk e para a world-music, em
“Speaking...”, de 1982, passam a produzir a si próprios e mostram uma intenção
pop-rock mais refinada. Afinal, a criatividade de Byrne, seu principal
compositor, nunca correspondeu exatamente à tosqueira do punk-rock genuíno dos
colegas de CBGB Ramones e Richard Hell. Veio, então, outra joia da safra 1985:
“Little Creatures”, para muitos o melhor trabalho da banda e um dos ápices do
pop-rock dos Estados Unidos. De admirável musicalidade, trazia pelo menos dois hits
marcantes: “Lady Don’t Mind” e “And She Was”. Seriam Byrne & cia. capazes
de superar aquele feito? A resposta veio um ano depois, no fatídico 1986, não
apenas em um disco, mas num até então incomum projeto multimídia: o
disco-filme-livro “True Stories”,
que está completando 30 anos em 2016.
Para a época, o que hoje é comum no showbizz,
em que um artista grava o CD, DVD, videoclipe e um documentário num mesmo
espetáculo sem precisar gastar uma fortuna, foi bem impressionante a ousadia de
Byrne, o verdadeiro “head” do projeto.
Não se via uma proposta naquele formato até então, no máximo os abastados
clipes-filmes de Michael Jackson. Neste, entretanto, de feições quase intimistas,
Byrne, dentro de um mesmo tema, dirigiu um filme, atuou nele, lançou um livro
de fotos e textos e ainda criou de cabo a rabo um disco, componto-o e
produzido-o por inteiro. E mais: tudo de altíssima qualidade! Da turma que
aprendeu com Andy Warhol a transformar produto em arte, Byrne e seus habilidosos companheiros de grupo – a ótima baixista Tina Weymouth, o
competente baterista Chris Frantz e o versátil guitarrista e tecladista Jerry
Harrison – traziam três “produtos culturais” interligados mas independentes
entre si. Pode-se ver o filme e não comprar o disco ou ler o livro e por aí vão
as combinações. Há quem teve o primeiro contato com a obra, por exemplo,
através dos clipes da MTV (de certa forma, um quarto tipo de produto cultural)
e depois ouviu o disco ou assistiu ao filme.
Para se falar sobre as músicas, no entanto, é fundamental que se comece
abordando sobre o filme. Em "Histórias Reais" (tradução nos cinemas no Brasil),
um narrador, encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter a pequena
Virgil, no estado do Texas, em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde
encontra diversos personagens hilários e típicos. Conforme as situações vão se
apresentando, as músicas da trilha vão surgindo. Byrne, escocês radicado nos
EUA, cria um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana
da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas
carregado de perspicácia e ligado à relação emocional do autor com o seu lugar.
Lindamente poético, algo entre o documental e a fantasia, o longa
sintetiza as belezas e as fragilidades do povo do país mais poderoso do mundo.
Como se vê, no filme está a razão do trabalho musical, pois este funciona
como uma trilha sonora que veste a narrativa da história filmada ao mesmo tempo
em que é “apenas” mais um disco de carreira do Talking Heads, seu sétimo de
estúdio. Na seara de avanço de seu próprio estilo, eles repetem acertos do
passado, principalmente de seu trabalho antecessor “Little Creatures”. A
começar, assim como o disco anterior, um pouco por coincidência “True Stories”
também tem dois hits marcantes. O primeiro deles é “Love for Sale”, que o abre.
A letra já denota com humor e distanciamento crítico o caráter pueril e
materialista do ser norte-americano, que põe tudo à venda, até – e
principalmente – o amor. “O amor está
aqui/ Venha e experimente/ Eu tenho amor pra vender”, canta, enquanto, no
clipe, imagens de publicidade pulam na tela em cores vibrantes e kitch. Divertido, o clipe é a própria
cena extraída do filme, numa total interação entre as obras. E que grande
música! A batida lembra a de “Stay up Late”, de “Little...”, só que mais
acelerada, e o riff, memorável, é
daqueles que se reproduz o som com a boca. Pode-se colocá-la na classificação
de perfect pop, músicas de estrutura
perfeita e próprias para tocar no rádio mas que guardam qualidades genuínas de
estilo e composição.
Com uma pegada bastante Brian Eno pela base no órgão, “Puzzlin'
Evidence“ – no filme, a cena de um culto religioso em que se projeta um vídeo
com as maravilhas da tecnologia e do poderio bélico e financeiro yankee – tem o vigor do gospel,
principalmente no refrão, com o coro cantando com Byrne: “Puzzling Evidence/ Done hardened in your heart/ Hardened in your
heart”. Em seu livro “Como Funciona a Música”, de 2012, ele comenta que
compôs as faixas de “Little...” e “True...” praticamente ao mesmo tempo, por
isso as semelhanças entre um e outro. No caso do segundo, o que já se
diferenciava em sua cabeça era a aplicação: seriam músicas para o filme que ainda
pretendia rodar. Assim, já no Texas para inteirar-se das locações, levou
consigo as demos ainda por finalizar e lá teve a ideia de inserir os elementos
mais peculiares do folk
norte-americano, como o acordeom Norteño, a steel
guitar e o coral de igreja
protestante de “Puzzlin'...”.
Durante todo o disco, a bateria de Chris é especialmente amplificada,
ótimo ensinamento pescado da faixa “Television Man”, de “Little...” – resgatada,
porém, de antes, pois já nota-se isso em “Electric Guitar”, de “Fear of Music”,
de 1979. Pois a caribenha “Hey Now” é marcada com essa batida forte,
acompanhada de bongôs e de uma guitarrinha ukelele,
a mesma que faz um solo totalmente no espírito ula-ula. Por conta de seu ritmo e melodia quase lúdicos, no filme,
Byrne a arranjou diferentemente: são crianças, todas com instrumentos
improvisados como pedaços de pau e latas, quem, numa das passagens mais bonitas,
entoam os versos: “I wanna vídeo/ I wanna
rock and roll/ Take me to the shopping mall/ Buy me a rubber ball now”.
“Papa Legba”, das melhores de “True...”, é outra que mostra como a
banda aprendeu consigo própria. A programação eletrônica faz intensificar o
ritmo sincopado da música africana, que começa com percussões típicas do
brasileiro Paulinho da Costa, um craque, e um canto quase tribal extraído por
Byrne. Visível influência dos trabalhos com Eno, principalmente do world-music “Remain in Light”. O tema em
si é lindo: um canto ritualístico do vudu
haitiano (“Papa Legba” significa aquele que serve como intermediário entre
a loa – mundo dos espíritos – e o
homem) que é usado no filme quando o personagem de John Goodman, um homem em
busca de uma carreira como cantor, recorre a esta espécie de pai-de-santo –
vivido pelo cantor Pops Staple, que a canta lindamente. No disco, é Byrne quem
está nos microfones, esbaldando-se em seu vocal rasgado e emotivo.
O segundo lado no formato LP abre com outro hit e outro perfect pop: a sacolejante "Wild
Wild Life", marco dos anos 80 e da música pop internacional. Impossível
ficar parado se estiver tocando numa pista. Além da letra ácida, a canção, bem
como seu clipe, também extraído do filme, é superdivertida, num convite a se assumir
o “lado selvagem”. Várias pessoas, os integrantes da banda e atores, sobem num
palco em um programa de tevê fazendo playback
e interpretando as figuras mais exóticas. O refrão, de versos móveis, é daqueles inesquecíveis de tão naturalmente
cantaroláveis: “Here on this moutain-top/
Oh oh/ I got some wild wild life/ I got some news to tell ya/ Oh oh/ About some
wild wild life...”.
Alegre e ritmada, "Radio Head" lembra a levada das bandinhas
folclóricas europeias (as que migraram para os EUA em várias localidades),
ainda mais pelo uso da gaita-ponto. Mas, claro, com o toque todo dos Heads,
desde a forte batida de Chris, as percussões de Paulinho da Costa –
contribuinte costumaz da banda –, e o vocal aberto de Byrne, perito em criar
refrãos pegajosos, como o desta: “Transmitter!/
Oh! Picking up something good/ Hey, radio head!/ The sound... of a brand-new
world”, “Radio Head” guarda uma curiosidade: é a música em que Byrne se
inspirou num verso de Chico Buarque – de “O último blues”, da trilha do filme
“Ópera do Malandro” – e que, por consequência, inspirou o nome da banda inglesa, que juntou as duas palavras.
A melódica “Dream Operator” – que no filme transcorre numa engraçada
sequência de um desfile, mais bizarro e brega impossível – tem uma bela letra,
a qual versa sobre o eterno estado de sonho em que vivem os norte-americanos: “Todo sonho tem um nome/ E nomes contam a
sua história/ Essa música é o seu sonho/ Você é o operador de sonho”. Algo
nem bom nem ruim: apenas verdadeiro. Outra clássica do álbum, “People Like Us”,
tema-chave do filme, é, assim como “Creatures of Love”, de Little...”, um
típico country-rock, com direito a
guitarra com pedal steele de Tomy
Morrell. Uma verdadeira declaração de amor do estrangeiro Byrne para os EUA,
reverenciando a cultura daquele país e ao mesmo tempo totalmente integrado
nela. Os versos iniciais dizem tudo: “Quando
nasci, em 1950/ Papai não podia comprar muita coisa para nós/ Ele disse:
‘Orgulhe-se do que você é’/ Há algo de especial em pessoas como nós”. E o
refrão, dentro da mesma ideia de “Creatures...”, não deixa por menos,
impelindo-nos a enxergar a alma norte-americana com um olhar mais humano: “Não queremos liberdade/ Não queremos
justiça/ Só queremos alguém para amar”.
De ritmo parecido a outra faixa de “Little...”, “Walk it down”, bem
como a outras daquele álbum no refrão de coro em tom entoado, como “Perfect
World” e “Road to Nowhere” (a ideia vem desde o primeiro trabalho com Eno, em
“The Good Thing”, de 1978), “City of Dreams” desfecha a obra com puro lirismo.
A letra fala da perda de identidade provocada pelas aculturações e dizimações,
algo muito presente na formação de sociedades modernas como a norte-americana: “Os índios tinham uma lenda/ Os espanhóis
viviam para o ouro/ O homem branco veio e os matou/ Mas eles não sabem quem realmente
foram”. Porém, artista sensível como é, Byrne joga luzes otimistas sobre o
futuro daquela nação e suas gentes, tendo como metáfora a pequena Virgil: “Vivemos na cidade dos sonhos/ Nós dirigimos
na estrada de fogo/ Devemos despertar/ E encontrá-la por fim/Lembre-se disso,
nossa cidade favorita”.
Se “True...” deve muito a “Little...”, que lhe serviu de espelho em
vários aspectos, também é fato que o disco de 1986 supera seu antecessor em
completude conceitual, uma vez que conversa o tempo todo com a obra filmada e,
consequentemente, com o trabalho fotográfico posto em páginas. Além do mais, o
sucesso alcançado por “True...”, seja motivado pela mídia televisiva e
radiofônica ou pelas telas do cinema, foi consideravelmente maior de tudo o que
já jamais conseguiriam, tendo em vista que “Wild Wild Life” ficou por 72
semanas no 25º posto da Billbord, melhor posição de uma música da banda nesta
parada. Comparações afora, o fato é que ambos os discos revelam um grupo no auge
de sua capacidade criativa, produzindo música pop sem descuidar das próprias
intenções e aspirações.
Tudo isso está ligado bastantemente à iniciativa de David Byrne que,
com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais o principal compositor e criador
da banda, a ponto de passar a ser o único. Assim, se “True...” é o ápice dos
Heads, também é o começo de seu declínio. A redução paulatina mas permanente da
participação de Chris, Tina e Jerry enfraqueceu-os enquanto conjunto, sufocando
os companheiros de Byrne. O fim estava próximo. Ainda tentaram um sopro de
comunhão, “Naked”, de 1988, mas o mais fraco álbum deles só serviria para
denotar que não tinha mais saída que não a separação de uma das grandes bandas do
pop-rock mundial. Os discos, porém, estão aí até hoje, longe de se datarem e
donos de alguns dos melhores momentos do que se produziu nos anos 80, a tal
“década perdida” – que, aliás, de “perdida” não teve nada em termos de rock.
Basta uma audição de “True Stories” para se certificar de que essa história,
por mais onírica que tenha sido, é real e muito especial.
.............................
O filme “Histórias Reais” tem, aliás, uma trilha sonora própria, a qual
traz temas incidentais. Apenas “Dream Operator”, em versão instrumental
arranjada por Philip Glass (“Glass Operator”), se repete, além da faixa “City
of Steel”, que é, na verdade, a melodia de “People Like Us”, também só com
instrumentos. As outras são de artistas variados, como “Road Song”, da genial
Meredith Monk, “Festa para um Rei Negro” (“Olê
lê/ Olá lá? Pega no ganzê/ Pega no ganzá...”), com a banda brasileira
Eclipse, e a mexicana “Soy de Tejas”, de Steve Jordan, além de seis composições
do próprio Byrne que só se encontram em “Sounds From True Stories”.
*****************
FAIXAS:
1. "Love for Sale"
– 4:30
2. "Puzzlin'
Evidence" – 5:23
3. "Hey Now"
– 3:42
4. "Papa
Legba" – 5:54
5. "Wild Wild
Life" – 3:39
6. "Radio
Head" – 3:14
7. "Dream
Operator" – 4:39
8. "People Like
Us" – 4:26
9. "City of
Dreams" – 5:06
todas as canções compostas por David Byrne.
vídeo de "Wild Wild Life" - Talking Heads
**************
OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues
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