A capa original de 1976, só com o logo da banda e a da reedição em CD, de 1989. |
“The Modern Lovers
é a minha
banda de rock favorita
de todos os tempos”.
David Berson,
executivo da Warner
“Bem, algumas pessoas
tentam
pegar as meninas/
E são chamados de cuzões/
Isso nunca aconteceria
com Pablo
Picasso”
Jonathan Richman,
da letra de “Pablo Picasso”
Muito tem se falado sobre disco de estreia dos Ramones, o grande marco
inicial daquilo que o mundo pop passou a conhecer como punk-rock e que está
completando dignos 40 anos. Mas quem se embrenha um pouco mais na cena underground norte-americana sabe que
este movimento e sua sonoridade rebelde e anti-establishment – que remetia à simplicidade do rock ‘n’ roll básico
dos anos 50 e a culturas pop apreciadas por uma rapaziada contrária ao modo de
vida padrão da sociedade – vinha sendo alimentado desde meados dos anos 60.
Detroit, Boston, San Francisco e principalmente Nova York concentravam essa
galera criativa e crítica que não admitia que o planeta Terra se configurasse
daquele jeito que se anunciava: Guerra do Vietnã matando inocentes por nada,
crises econômicas mundo afora, ascensão de ditaduras, repressão militar e os
ecos de um inacabado 1968.
Uma das bandas fruto dessa efervescência é a The Modern Lovers. Liderados pelo inventivo Jonathan Richman, o
grupo de Boston estava, assim como o Ramones, tão de saco cheio com o sistema
político e social que seu discurso era, por pura ironia, totalmente apolítico. Nada
de afrontamentos políticos ou denúncia das mazelas sociais. A maneira de
protestarem era falar sobre aquilo que a sociedade não falava ou considerava coisa
de moleque de classe baixa: comer as menininhas do bairro, a falta de grana, se
chapar com a droga mais fuleira que tiver, andar de carro em alta velocidade
(sem ter carro para isso) e paixões raramente retribuídas. Temas que não eram
novidade no mundo jovem mas estavam esquecidos pelos grandes astros que a mídia
havia criado. Com o espírito punk do “faça você mesmo”, o Modern Lovers e os
tresloucados da cena punk revitalizaram tais questões com muita ironia, deboche
e realismo. Nada de carrões, de levar lindas modelos para a cama e
superequipamentos para superespetáculos em superestádios. O negócio era curtir
um pouco daquela merda de vida que tinham, sonhar em comer a garota gostosa do
bairro num motel barato e tocar em garajões fétidos de Nova York – como um em
plena East Village, chamado CBGB. Eram aquilo que viviam e pensavam, e tudo
isso está encapsulado no essencial “The
Modern Lovers”, o qual, assim como o primeiro dos Ramones, também faz
quatro décadas de seu lançamento.
A Modern Lovers mandava ver um som curto e grosso, mas com
inventividade. Sem grandes habilidades técnicas, compunham um rock básico,
vigoroso e pautado na realidade que vivenciavam nas ruas. Riffs magníficos saíam da cabeça do guitarrista e vocalista Richman
e seus parceiros de ensaio e de punheta: Ernie Brooks (baixo), Jerry Harrison
(teclados) e David Robinson (bateria). A produção do mestre underground John Cale avalizava aquele
primeiro trabalho de estúdio da Modern Lovers, cujo título é tão irônico quanto
autocrítico, haja vista que boa parte dos temas que abordavam era, justamente,
a fragilidade e inadequação sexual e afetiva daqueles jovens dentro da
sociedade moderna. Sem grana no bolso e longe de aparentarem os abastados
roqueiros do rock progressivo, astros da época, era difícil ser mais do que um
arremedo de “amante moderno”.
A nasalada e tristonha voz de Richman anuncia o que vem numa contagem
até 6. É “Roadrunner" abrindo o disco, clássico do rock alternativo que a
grande banda do punk britânico, o Sex Pistols, gravaria dois anos depois. Riff marcante e de acorde simples,
apenas três notas. “Roadrunner, roadrunner/ Going faster miles an
hour/ Gonna drive past the Stop 'n' Shop/ With the radio on”, canta Richaman com seu timbre
bonito, algo entre o vocal de Joey Ramone e o de outro contemporâneo deles,
Richard Hell. Bateria suja, guitarra e baixo e bem audíveis. A
sonoridade proposta por Cale junta a secura das garage bands dos anos 60, a irreverência do New York Dolls e a
atmosfera proto-punk do Velvet Underground com uma pitada daquilo que se chamaria anos depois de new wave. Isso muito ajudado pelos
teclados moog de Harrison, numa influência
direta do glam rock, mistura de punk
e pop que este ajudaria a levar para outra banda referencial da cena de Nova
York a qual formaria um ano depois: o Talking Heads.
Como Joey e Hell, Richman, guitarrista e líder da banda, era mais que
um vocalista: era um dos porta-vozes daquela turma. Seus versos muitas vezes
reproduziam as angústias e vontades daqueles jovens deslocados que não queriam
ser certinhos nem hippies: queriam
ser apenas eles mesmos. Com este substrato, Richman é capaz de criar versos
verdadeiramente geniais, formando rimas cantaroláveis e cheias de
expressividade. “Astral Plane” é um exemplo. Rockzão embalado, fala de um rapaz
sozinho em seu quarto, prestes a enlouquecer, pois sente que nunca mais terá a
garota que gosta. Seu desespero é tanto que já está aceitando até encontrá-la
num outro plano imaterial e, digamos, “não-carnal” (“O plano astral para o escuro da noite/ O plano astral ou eu vou
enlouquecer”).
Outro caso é o da clássica “Pablo Picasso”, em que, com criatividade e
atrevimento, engendra uma rima de “asshole”
(“cuzão”, em inglês) com "Picasso". Dentro
da sua classificação estilística, este tipo de rima pode ser considerado como
“rima rica”, quando a combinação é formada por vocábulos de classes gramaticais
distintas entre si. Além desta, a rima de Richman também se enquadra no que se
pode chamar de “rima preciosa”, ou seja, quando se combina em versos palavras de
dois idiomas diferentes. Ele altera a pronúncia da palavra estrangeira para
rimar com outra na língua vernácula da obra (inglês). Nos versos em questão, o
sobrenome do artista plástico espanhol, o substantivo próprio de origem
malaguenha "Picasso", é dito com uma leve distorção no seu último fonema, o que
faz com que se equipare fonética e sintaticamente a “asshole”, um adjetivo originário da linguagem chula. Além disso, a
letra em si é superespirituosa, pois endeusa a figura do autor da Guernica pelo
simples fato de ser um nome público, como se por causa disso jamais ele
passasse pelo vexame de não conseguir pegar as meninas como eles. Pura
inventividade.
Fora a letra, “Pablo Picasso” é um blues ruidoso no melhor estilo
Velvet, roupagem que Cale fez questão de dar ao intensificar a distorção das
guitarras sobre uma base quase de improviso, a exemplo de "The Gift" e
“European Son”. O produtor, inclusive, foi, um ano antes, o primeiro a gravá-la
no clássico álbum “Helen of Troy”, apresentando ao mundo do rock aquele jovem
criativo chamado Jonathan Richman. Com menos distorção mas de levada empolgante,
“Old World”, “Dignified And Old” e “She Cracked” são daquelas gostosas até de
poguear. Todas com um cuidado na linha dos teclados, inteligentemente utilizado
com diferentes texturas por Cale, o que cria atmosferas próprias para as
canções. “She Cracked”, em especial, que fala sobre o ciúme sentido por um
rapaz em relação a uma mulher madura e independente, é outra de refrão
pegajoso, das de cantar em coro com uma galera: “She cracked, I'm sad, but I won't/ She cracked, I'm hurt, you're
right”. O riff é de um
minimalismo quase burro: como uma “Waiting for the Man”, apenas uma nota
sustenta toda a base.
Já na meio-balada “Hospital”, de Harrison, a figura feminina
inatingível a um adolescente pobre do subúrbio está presente de novo: “Às vezes eu não suporto você/ E isso me faz
pensar em mim/ Que eu estou envolvido com você/ Mas eu estou apaixonado por
este poder que você mostra através de seus olhos”. Novo petardo: “Someone I
Care About”, com sua combinação de 4 notas, lembra direto Ramones, mas com um
toque mais apurado por conta da produção de estúdio. Reduzindo o ritmo
novamente, a balada ”Girl Friend” volta a falar sobre as meninas desejadas mas…
sem sucesso. A letra brinca com a sintaxe da palavra em inglês (olha aí Richman
mais uma vez se esmerando na poesia) juntando os dois vocábulos (“girlfriend”, namorada) ou separando-os (“girl friend”, garota amiga, justamente
com o que ele não se contenta, mas não tem coragem de confessar). Nesta, o
teclado soa como piano, dando-lhe um ar ainda mais melancólico.
Mais uma acelerada, “Modern World”, mesmo não sendo das conhecidas, é
um exemplo de rock bem feito: pulsação, melodia de voz eficiente, vocal
honesto, guitarras rasgando sem precisar de excesso de distorção. E a letra é
hilária: o rapaz, querendo convencer a garota a ir para a cama com ele, larga
um papo de que aderiu ao “mundo moderno” e à liberdade sexual. “If you'd share the modern world with me/ With me in love with the
U.S.A. now/ With me in love with the modern world now/ Put down the cigarette/
And share the modern world with me” (Se você quiser compartilhar o mundo
moderno comigo/ Comigo no amor com os EUA agora/ Comigo no amor com o mundo
moderno agora/ Largue o cigarro/ E compartilhe comigo o mundo moderno.”)
O álbum deu luzes à geração punk tanto nos Estados Unidos, como para
Talking Heads, Blondie e Television, quanto na Inglaterra, como Sex Pistols, The Clash, Jam, Buzzcocks e The Stranglers, bandas nas quais se vê claramente
toques da Modern Lovers. Várias outras, inclusive, da leva pós-punk, como The Cure, Gang of Four, Polyrock e P.I.L. beberiam também na fonte de Richman &
Cia. Se os Ramones elevaram a ideologia do “faça você mesmo” ao showbizz, revolucionando para sempre a
música pop, a The Modern Lovers, na mesma época, já dava a mensagem de que, o
importante era fazer por si próprio, sim, mas que havia espaço para refinar um
pouco aquela tosqueira toda.
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A versão em CD lançada pelo selo Rhino em 1989 pode ser considerada a
definitiva deste álbum tão influente. Primeiro, por trazer o remaster das faixas originais do LP, evidenciando
o trabalho inteligente de Cale na mesa de som e o vigor sonoro da banda.
Segundo, porque traz faixas extras que, ao que se percebe, só não entraram na
edição de 1976 por pura falta de espaço no vinil. Estas, aliás, são fruto da
parceria do grupo com outro mestre da subversão, Kim Fowley. Ele produz duas das
melhores músicas do disco: “I’m Straight”, rock de veia blues em que,
hilariamente, um adolescente, fascinado pelo poder que rapaz tem para com as
mulheres, tenta reafirmar sua masculinidade dizendo: “Eu sou hétero” (mais uma vez, uma maravilha de rima rica de
Richman: “But I'm straight/ and I want to
take his place”). Fowley vale-se do expediente de aumentar o microfone do
vocal, fazendo com que se captem os mínimos suspiros. Junto, enche o timbre da
caixa da bateria, que estronda alta. Guitarra e baixo, em escala média, soam,
entretanto, bem audíveis, formando um som orgânico. Alguma semelhança com o
estilo de sonoridade dada por Steve Albini ao Pixies ou Nirvana não é mera coincidência.
A outra assinada por Fowley é a também muito boa: “Government Center”,
que desfecha-o CD num rock de ares de twist
mas que, pela característica da produção (as palmas acompanhando o ritmo, o moog, a marcação no baixo), remete a The
Seeds, The Sonics, The Monks e a outras garage
bands norte-americanas.
FAIXAS:
1. Roadrunner - 4:05
2. Astral Plane - 3:00
3. Old World - 4:03
4. Pablo Picasso - 4:21
5. I'm Straight - 4:18
6. Dignified And Old -
2:29
7. She Cracked - 2:56
8. Hospital (Jerry
Harrison) - 5:35
9. Someone I Care
About - 3:39
10. Girl Friend - 3:54
11. Modern World - 3:43
12. Government Center - 2:03
todas as composições de autoria
de Jonathan Richman, exceto indicada.
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OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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