“Ouvindo o álbum,
você quase pode
ouvir o som do vento
batendo no seu rosto”.
Jim DeRogatis,
crítico musical
“O Tour (de France) é como a
vida:
uma forma de transe.
E o transe está baseado na repetição.
As máquinas
são perfeitas para criar isso”
Ralf Hütter
Uma das definições do dicionário para "tecnologia" é: "Ciência cujo objeto é a aplicação do
conhecimento técnico e científico para fins práticos". Porém, há
também o entendimento de que tecnologia também é "o conjunto dos termos técnicos de uma arte ou de uma
ciência". Juntando as duas subentende-se: é possível o ser humano
criar arte a partir da tecnologia e vice-versa. Os papéis se confundem nessa
hora.
Neste sentido, é interessante notar que todos os principais marcos da
tecnologia dos últimos 200 anos criadas pela humanidade tenham se tornado
música nas mãos do Kraftwerk. O trem
do medley "Trans-Europe Express"/"Metal on Metal"; o rádio em suas mais diversas
funcionalidades do disco "Radio-Activity"; o automóvel em “Autobahn”; o
telefone em “Telephone Call”. Até a amplificação do som de um átomo eles
forjaram (“Atom”, de “Kraftwerk 2”). Mas mesmo tendo sido responsáveis por
legar à civilização moderna o imaginário dos sons de bits e bites dos computadores
(em "Computer World", de 1981), a tecnologia que realmente encanta a dupla Ralf
Hütter e Florian Schneider, as cabeças geniais do mítico grupo alemão, é a
talvez mais lúdica e esportiva delas: a bicicleta. “Tour
de France Soundtracks”, de 2003, último trabalho da econômica banda
não apenas trabalha este tema como o explora de forma brilhante.
O
passeio sobre duas rodas do Kraftwerk, contudo, começou em 1983, quando
lançaram o single “Tour de France” em homenagem à tradicional competição
ciclística. Uma ode à beleza do ato de pedalar e à interação do homem com a
tecnologia, que traz uma base criada sobre a respiração uma humana, um ritmo
funkeado envolvente e um magistral riff
de teclado em tom alto, colorido. Traços mais do que sonoros e, sim, sensoriais,
que põem o ouvinte a também percorrer as ensolaradas estradas francesas sobre o
selim. De relativo sucesso à época, a faixa deveria fazer parte de um novo
disco, projeto que foi substituído três anos depois por “Electric Café”. “Substituído”
é o termo certo, pois não “descartado”. Duas décadas depois (o que, para os
parâmetros krafterkianos não é um absurdo, haja vista que lançaram nesse
ínterim apenas dois discos, sendo apenas um de inéditas), quando dos 100 anos
da Tour de France, Ralf e Florian desengavetam um projeto comporem uma trilha
sonora para um filme explorando todas as etapas da corrida, desde a preparação
do atleta até o ápice.
O
filme não saiu, mas nem precisava. As músicas substituem qualquer imagem. Ou
melhor: as supõem, as suscitam. A narrativa é tão cinematográfica quanto –
sendo sinfônica ao mesmo tempo. Ao estilo dos temas longos de abertura de
álbuns, uma de suas especialidades (a exemplo de “Boing Boon Tschak”/”Tecno
Pop”/”Music Non-Stop” de “Electric Café”, ou a faixa-título de “Autobahn”), inicia
com um prólogo, que anuncia em notas espaciais, mas não dispersas, frases que
dotarão toda a trilha. Em ritmo de house
music e trazendo uma variação do riff
original, a primeira etapa do tema central entra com a tradicional voz robótica
do VoiceModeler operado por Florian. Isso tudo num charmoso francês, idioma
usado em todas as letras e sentenças faladas. “Étape 2” e “3”, seguem na
mesma batida, agora explorando as variações de textura do trance, mas tendo como base a mesma ideia sonora: os frisos do pneu
da bicicleta girando e promovendo som, num transe. “Chrono”, última desta
primeira parte, intercala momentos instrumentais com os elementos-chave da
temática-base, terminando com o “robô” anunciando que foi dada a largada: “Les coureurs/ Chronométrés/ Pour l'épreuve/
De vérité/ Radio Tour information/ Transmission/ Télévision/ Tour de France…”.
Primeiro ato concluído, pista preparada para o Kraftwerk passear com
sua arte. Desacelerando um pouco a intensidade da pedalada e introduzindo uma
percussão metálica variante e multiforme, “Vitamin” é a primeira dos
preparativos para a corrida – afinal, todo corredor que se preze tem de atentar
ao que manterá a sua máquina em condições de prova. Ralf lê uma sequência de
ingredientes de suplementos (“Adrenalin
endorphin/ Elektrolyt co-enzym/ Carbo-hydrat protein/ A-b-c-d vitamin”), enquanto
teclados cumprem percussão e o grave, pondo acima as texturas e o riff, que também não passa longe do de
“Tour de France”.
Das melhores do disco, “"Aéro Dynamik" retomando a batida da
parte introdutória, é a própria tradução do conceito homem-máquina representado
pelo Kraftwerk desde que surgiram, no final dos anos 60, na industrial
Düsseldorf: o corpo sonoro projetado no espaço como metáfora do movimento humano
vencendo os átomos no ar. “Percussivo e dinâmico”, como define o próprio Ralf. A
letra diz em francês o que é de fácil entendimento a qualquer língua, pois
universal: “Perfection Mekanik/ Materiel
et Technik/ Condition et Physik/ Position et Taktik/ Aero Dinamik”. "Titanium", misto de trance e ambient, acrescenta-lhe uma leve variação rítmica e harmônica,
enfatizando agora o metal extraforte utilizado para a fabricação das
“magrelas”. A percussão torna-se ainda mais metálica, por óbvio, do que em
“Vitamin”.
Das melhores do álbum e da carreira da banda, "Elektro
Kardiogramm", começa dizendo a que veio. Batidas de coração são ouvidas em
um ritmo interessante, rítmico. O ritmo do próprio corpo. E isso não é licença
poética, pois são gravadas dos batimentos cardíacos do próprio Ralf Hütter
enquanto pedalava! E a genialidade não para por aí: este som, orgânico e
científico ao mesmo tempo, é sinterizado eletronicamente ao de uma respiração,
também embalada pelo ciclo da pedalada. O riff,
igualmente na mesma escala que circunscreve o de todas as faixas, é em tempo
3x4. Tudo isso encapsulado por uma batida que acompanha o fluxo sanguíneo, mas
o embala ritmicamente. É de "Elektro Kardiogramm" que saem os versos “Minimum Maximum”, que dariam nome à
turnê e ao disco ao vivo de 2005. Afinal, a verdadeira interação entre homem,
natureza e tecnologia. Como diz o biógrafo da banda, David Buckley, que
considera a faixa um dos pontos altos do disco, é “uma exploração sonora da unidade formada por ciclista e bicicleta,
homem e máquina”.
"La Forme", mais introspectiva, impressiona pelo ar quase
oriental de seu riff de teclados
deslizante. A percussão, só no “chipô” e “bumbo”, igualmente econômica e
nipônica, dão ainda mais classe a esta faixa, a qual remete a obras do passado
da banda, como “Neon Lights” e “Computer Love”. Depois de preparar a forma, vem
a recuperação do corpo. Esta engata com "Régéneration", vinheta
preparatória que faz a ponte entre a última meditação antes de lançar-se na
prova de fato. É chegada a hora da magnífica "Tour de France", tal
qual fora composta em 1983, porém repaginada pela limpeza da sonoridade digital
ainda não alcançada àquela época. Das maiores peças pop de todos os tempos, é o
símbolo e o ápice da ideia de interação homem e tecnologia. Respirações
ofegantes de ciclistas são intensificadas no electrobeat – que retraz a batida pontilhada de “Numbers” –,
enquanto o som de um baixo com slaps
é recriado eletronicamente e os teclados passeiam pela paisagem, transmitindo
cor e liberdade. “Dá quase para sentir o
ácido lático se acumulando nas pernas enquanto a música se desenvolve”,
brinca Buckley numa passagem do livro “Kraftwerk Publikation: a biografia”.
Suave e deslizante, “Tour de France Soundtracks” resgata em parte a
bagagem do grupo criador da eletro music:
a sonoridade elegante e limpa, a valorização do ritmo, a perfeição dos
detalhes, a exploração das texturas sonoras e o conceito globalizado e integral
que pontua toda a obra de menos de 10 álbuns mas de vasta influência na música
moderna. Há quem torça o nariz para este disco, alegando que deixa a desejar em relação
aos trabalhos antológicos do Kraftwerk como “The Man-Machine” e “Trans-Europe
Express”. Talvez um pouco de preconceito pela ausência de Karl Bartos e
Wolfgang Flur, “percussionistas” da formação clássica – substituídos aqui pelos
engenheiros de som (mas que se mostram músicos altamente competentes) Fritz
Hilpert e Henning Schmitz. Quiçá também a vulgarização natural ocorrida pelo
avanço da computação no século XXI (o que, em música, o Kraftwerk é corresponsável
nos últimos 50 anos, diga-se) tenha deixado a impressão de que a banda ficara ultrapassada.
Pensamentos compreensíveis, pois deles sempre se espera o mais do que de
qualquer outro. Soma-se a isso ainda o fato de raramente lançarem alguma coisa,
o que aumenta ainda mais sua mítica e, automaticamente, a cobrança.
Porém,
como disse o jornalista inglês Chris Jones, “se
você (assim como eu) ainda encara o Kraftwerk como uma divindade que deu ao
mundo algumas das mais encantadoras e influentes músicas eletrônicas de todos
os tempos, então vai amar este disco”. Afinal de contas, conclui sabiamente
o designer e fã ardoroso dos alemães Peter Saville: “mesmo um álbum medíocre do Kraftwerk é um trabalho de uma genialidade
sublime”. Caso de “Tour de France Soundtracks”, onde a capacidade
humana opera com a tecnologia a serviço da mais bela arte, seja ela vinda de
seres vivos ou artificiais.
FAIXAS:
1.
"Prologue" (Ralf Hütter/Florian Schneider/Fritz Hilpert) - 0:31
2. "Tour de
France Étape 1" (Hütter/Schneider/HilpertMaxime Schmitt) - 4:27
3. "Tour de
France Étape 2" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 6:41
4. "Tour de
France Étape 3" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:56
5. "Chrono"
(Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:19
6. "Vitamin"
(Hütter/Schneider/Hilpert) - 8:09
7. "Aéro
Dynamik" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 5:04
8.
"Titanium" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 3:21
9. "Elektro
Kardiogramm" (Hütter/Hilpert) - 5:16
10. "La
Forme" (Hütter/Hilpert) - 8:41
11.
"Régéneration" (Hütter/Hilpert) - 1:16
12. "Tour de
France" (Hütter/Schneider/Schmitt/Karl Bartos) - 5:12
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OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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