Pela primeira vez, eu revi meu
passado
e parecia tão inacessível,
e tudo o que eu tinha feito
- mesmo tendo
gravado
neste meio tempo –
parecia tão distante do que eu era agora,
que era a
primeira experiência
que eu já tive na minha vida de nostalgia.”
Robert
Wyatt,
sobre “Shleep”
Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram
à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das
dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas
vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são
semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à
mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu
problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça
genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam
suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade
criativa. Está se falando do inglês Robert
Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais
representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do
final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock
progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de
alta estirpe como Wyatt.
A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft
Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º
de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga,
Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio.
Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as
pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com
dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje
lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar
firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez
inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si
próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição
limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele,
em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais,
tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do
instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza
ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia
(tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”,
de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.
O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma
levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam
esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais,
“Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de
estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua
sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos
trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal
– assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John
Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na
estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações,
seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”,
por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de
projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One
Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o
toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um
elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e
sofreguidão.
“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano
de “The
Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas
–, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The
Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de
Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo
tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia
tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera
muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o
dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O
djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a
intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira
musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do
disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das
gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de
Wyatt.
De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio.
Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram
todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por
isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar
o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a
psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas
do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não
se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e
ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa
proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o
ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente
empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente
aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por
exemplo, respeitam essa ordem).
Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre
vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de
Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como
a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do
acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas
dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu
não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim
mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional.
Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao
microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse
Park”.
“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no
arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos
que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno,
principalmente os de ambient music. Aos
belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante
rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa
do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world
music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de
1979.
“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares:
música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse
propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo
autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional)
mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa – “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica
e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É
recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas
brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado
em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/
Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”
Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado
numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história,
esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere
e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera
faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento
especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul
Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que
encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de
1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e
litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas,
dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a
mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.
Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973,
como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior
álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da
música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado
imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo
Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo
do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão
mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos,
maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio
enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do
acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As
questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem
se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode
confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele
lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps
(Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip
Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh
Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And
Testament - 4:13
6. September The Ninth
(Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt)
- 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt)
- 2:32
9. A Sunday In Madrid
- 4:41
10. Blues In Bob Minor
- 5:46
11. The Whole Point Of
No Return (Paul Weller) - 1:25
todas as composições de Robert Wyatt,
exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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