Costumávamos
jogar bola juntos. Naquela época a internet não era esse leviatã que nos
entorpece e submete. Era apenas um capricho de "burguês". Não me
lembro de alguém ter computador em casa. Nossas vidas aconteciam nas ruas em
torno do nosso condomínio - conjunto habitacional, na verdade. Era perigoso,
obviamente, mas não chegava a ser esse pânico generalizado que se propaga hoje.
Havia chance de levarmos uma bala perdida. A todo o tempo. Mas isso não nos
impedia de correr por todas a vielas de chão batido ou de paralelepípedo. A pé
ou de bicicleta. Esse serviço que filhos de gente rica chamam de
"atividades brincantes" hoje, era apenas nosso cotidiano. E isso
incluía uma bola de futebol. Tudo incluía futebol naquela idade.
Eu levava jeito para a coisa. Ainda levo, modéstia à parte. Apesar, é claro, do físico não ser mais o mesmo, sei como tratar a querida. Já o Fabrício não muito. Ele atacava muito bem no gol. Sério: muito bem! Uma vez desafiamos todos os guris do nosso bloco: ele no gol e eu na linha contra um time de cinco que se revezava. E ganhamos de lavada. O Fabrício ainda era louco. Dava umas pontes no asfalto. Os blocos de apartamento ficavam em torno de uma pequena rótula com um poste e dois transformadores. Essa era a estrutura de todos os condomínios do Ruben Berta, na Zona Norte de Porto Alegre. As goleiras eram de um lado na entrada do núcleo e no outro na garagem de um dos condomínios. E o Binho se atirava na bola sem medo de se esfolar no concreto. Era maluco. Era goleiro.
Nós éramos amigos desde sempre. Ele morava no térreo e eu no segundo andar. Fazíamos tudo juntos. Nossas mães se davam muito bem, pelo que lembro. Nossos pais nem tanto. Suportavam-se, vamos dizer assim. Meu pai, que trabalhava numa gráfica lá pelas bandas da Azenha, não entendia como ele podia ser contra o PT e contra o Olívio Dutra, que havia sido eleito governador do Rio Grande do Sul três anos antes. "Professor, pobre e preto: como pode ser contra quem luta por seus direitos?", repetia meu pai incansavelmente.
As coisas pioraram muito um ano depois. O Lula estava a frente nas pesquisas para a presidência. O mercado econômico virou uma bagunça, ele escreveu a carta de compromisso ao povo brasileiro e meu pai desfez qualquer vínculo que poderia ter com o pai do Fabrício. "Não quero ver você andando com aquele guri! Ouviu bem, Diego?", gritava meu velho. "Mas, pai!, ele é meu amigo!", tentava explicar. Nunca adiantava. Meu coroa estava convicto que aquela família de pretos ainda submissos aos interesses da elite branca não era digna de confiança e afeto. Minha mãe detestou a decisão. Prova disso é que sempre acobertou minhas idas ao apartamento dos vizinhos para jogar Mario Kart no Nintendo 64. O que gerava sérios problemas quando meu pai descobria. Mas essa história não é sobre isso.
As coisas melhoraram quando Lula venceu a eleição. Pude voltar a fazer as coisas normais que um garoto de dez anos fazia: jogar bola e falar de gurias - apesar do Fabrício não levar muito jeito com elas. Não sei se isso acontece hoje em dia. Todos são tão sensíveis. Isso pode ofender e tal. Enfim. Conseguimos voltar a ser amigos. Por pouco tempo, infelizmente. Logo eles se mudaram. O seu Euclides havia sido chamado para ser professor de matemática em uma rede de ensino particular. Conseguiram um apartamento no bairro Rio Branco. "Vendidos", foi a conclusão do meu sábio pai. Era janeiro de 2003 quando vi Fabrício pela última vez. Dias antes Luis Inácio assumia como presidente.
Eu levava jeito para a coisa. Ainda levo, modéstia à parte. Apesar, é claro, do físico não ser mais o mesmo, sei como tratar a querida. Já o Fabrício não muito. Ele atacava muito bem no gol. Sério: muito bem! Uma vez desafiamos todos os guris do nosso bloco: ele no gol e eu na linha contra um time de cinco que se revezava. E ganhamos de lavada. O Fabrício ainda era louco. Dava umas pontes no asfalto. Os blocos de apartamento ficavam em torno de uma pequena rótula com um poste e dois transformadores. Essa era a estrutura de todos os condomínios do Ruben Berta, na Zona Norte de Porto Alegre. As goleiras eram de um lado na entrada do núcleo e no outro na garagem de um dos condomínios. E o Binho se atirava na bola sem medo de se esfolar no concreto. Era maluco. Era goleiro.
Nós éramos amigos desde sempre. Ele morava no térreo e eu no segundo andar. Fazíamos tudo juntos. Nossas mães se davam muito bem, pelo que lembro. Nossos pais nem tanto. Suportavam-se, vamos dizer assim. Meu pai, que trabalhava numa gráfica lá pelas bandas da Azenha, não entendia como ele podia ser contra o PT e contra o Olívio Dutra, que havia sido eleito governador do Rio Grande do Sul três anos antes. "Professor, pobre e preto: como pode ser contra quem luta por seus direitos?", repetia meu pai incansavelmente.
As coisas pioraram muito um ano depois. O Lula estava a frente nas pesquisas para a presidência. O mercado econômico virou uma bagunça, ele escreveu a carta de compromisso ao povo brasileiro e meu pai desfez qualquer vínculo que poderia ter com o pai do Fabrício. "Não quero ver você andando com aquele guri! Ouviu bem, Diego?", gritava meu velho. "Mas, pai!, ele é meu amigo!", tentava explicar. Nunca adiantava. Meu coroa estava convicto que aquela família de pretos ainda submissos aos interesses da elite branca não era digna de confiança e afeto. Minha mãe detestou a decisão. Prova disso é que sempre acobertou minhas idas ao apartamento dos vizinhos para jogar Mario Kart no Nintendo 64. O que gerava sérios problemas quando meu pai descobria. Mas essa história não é sobre isso.
As coisas melhoraram quando Lula venceu a eleição. Pude voltar a fazer as coisas normais que um garoto de dez anos fazia: jogar bola e falar de gurias - apesar do Fabrício não levar muito jeito com elas. Não sei se isso acontece hoje em dia. Todos são tão sensíveis. Isso pode ofender e tal. Enfim. Conseguimos voltar a ser amigos. Por pouco tempo, infelizmente. Logo eles se mudaram. O seu Euclides havia sido chamado para ser professor de matemática em uma rede de ensino particular. Conseguiram um apartamento no bairro Rio Branco. "Vendidos", foi a conclusão do meu sábio pai. Era janeiro de 2003 quando vi Fabrício pela última vez. Dias antes Luis Inácio assumia como presidente.
Os anos
foram bons, até. Meu pai conseguiu uma vaga no sindicato da sua categoria e se
envolveu ainda mais com sua paixão: fazer política. Eu nunca me interessei
muito pelo assunto, confesso. Preferia usar meu tempo para as coisas que uma
pessoa real se importa. Enquanto meu velho queria, me parece, salvar o mundo,
eu me contentava em poder viver de uma maneira saudável nesse mundo. Digo, não
ter problemas físicos ou jurídicos e me divertir um pouco que fosse quando
tinha oportunidade. O fato de eu ficar
mais tempo atrás de mulheres do que integrado aos movimentos que meu pai
sonhava que eu participasse o deixava emputecido. Sempre li as coisas que meu
velho indicava, por mais que ele não as lesse. Algumas faziam sentido. Outras
me nauseavam. E com outras eu apenas ria. Foi uma surpresa quando recebi um
vídeo por mensagem no celular. O breve texto dizia algo como “negro que odeia
negros faz discurso racista na Câmara dos Deputados!”, entre alguns erros de
língua portuguesa. Ri mais uma vez. Já conhecia por experiência as típicas
hipérboles falaciosas da turma do meu pai. A surpresa foi quando abri o vídeo e
vi quem discursava.
Era
Fabrício.
Parecia
até mais velho do que a idade que, se não estou enganado, tinha: 24 anos.
Porém, guardava algumas características que ainda lembravam o garoto que fora
meu amigo há tantos anos atrás. Não tenho paciência para essas coisas, mas
precisei assistir ao vídeo. E foi divertido. Fabrício se tornara uma versão
mais refinada de seu pai. Criticava contundentemente o que chamava de racismo
praticado por negros, a segregação insuflada por aqueles que se diziam
tolerantes ao dividir negros e brancos, pobres e ricos, homossexuais e
heterossexuais, colocando sempre uns contra os outros. Disse que era gay – o
que me surpreendeu muito, confesso -, negro e que veio de uma família pobre,
seria um perfeito estereótipo para as bandeiras quase hegemônicas no debate
cultural brasileiro. Entretanto, se recusava a fazer parte disso porque antes
disso era um ser humano, um indivíduo, e não uma peça de manipulação coletivista
a serviço de um projeto de poder corrupto. Ri. Não por deboche. Longe disso. Ri
porque foi uma expressão de coragem excepcional. A risada derivada da comédia
aconteceu quando os gritos da platéia surgiram no áudio: fascista, racista,
golpista, e alguns outros que faziam ainda menos sentido.
As reações
foram as já esperadas: CUT, UNE, MST e tantos outros grupos se manifestaram
repudiando a fala do meu antigo vizinho. Afirmaram que ele não sabia que era
negro, que era a expressão do racismo no inconsciente coletivo, ele era
subserviente às elites, essa coisa toda. Meu pai estava enfurecido. “Eu disse
que aquela família não prestava! Eu disse!”, repetia incansavelmente no almoço
de domingo. A gritaria não me surpreendeu. Eram reações que já estava
acostumado. Até comigo já houve coisas assim. Como assim um negro que não se
envolve na luta?, tinha que ouvir dos alunos da UFRGS – brancos, diga-se de
passagem – que apareciam na comunidade . Meu caso era ainda pior, já que meu
pai era o digníssimo Nelsinho do Papel.
Surpreendente
foi a reação de todos depois que a notícia que Fabrício estava em coma.
Não se
sabia o motivo. Não se sabia as circunstâncias. Sabia-se apenas que ele havia
sido cruelmente agredido quando retornava para casa, no bairro de São Mateus,
na Zona Leste de São Paulo. O que os grupos que diziam defender as causas das
minorias falaram sobre o caso?
Nada.
Nenhuma
palavra.
Fabrício
estava silenciado. As divergências cessaram. O pensamento discordante não
repercutiu mais. Minha mãe se entristeceu quando comentei o caso com ela. Já o
meu pai não mencionou absolutamente nada. Desisti de vez de me inteirar dos
assuntos do meu velho. Ele continuou cada vez mais intenso na sua pretensa
luta.
Eduardo Dorneles
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