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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

cotidianas #549 - As Ovelhas



O jantar transcorria no costumeiro silêncio. Ninguém levantava os olhos do prato conforme exigia o pai, invariavelmente severo e carrancudo. O menino vez por outra procurva a mãe com o rabo do olho e, descoberto por ela, era silenciosamente repreendido com um gesto de cabeça quase imperceptível para que voltasse à comida e evitasse, aí sim, uma reprimenda de verdade por parte do pai. O homem, rosto duro, marcado pelas dificuldades que a vida lhe dera comia avidamente segurando a colher como se fosse a pá que manejava todos os dias no pátio, metendo a comida na boca como se enchesse um buraco de terra e sem sequer sentir o gosto do alimento. Em meio à sequência de colheradas, estancou com o braço à meia altura da boca. Arregalou os olhos. Deixou cair a colher no prato. Levantou alvoroçado. "As ovelhas", foram as únicas palavras que proferiu. Neste momento o som de uivos que chegara antes aos ouvidos treinados e desconfiados daquele homem quase selvagem, começava a ser ouvido também pela mãe e pelo garoto. Os uivos e latidos  aumentavam. Agora havia barulho de briga, de violência. Todos se entreolharam. O homem, resoluto, dirigiu-se então a um armário e pegou uma espingarda. Olhou para a mulher que compreendeu seu olhar em silêncio. Abriu a porta. Diante da enfurecida tempestade de neve hesitou um instante. Reuniu forças, coragem. Era necessário. Deu um passo já afundando o pé na superfície branca. Ainda praguejou antes de bater a porta às suas costas. "Malditas ovelhas! Deixem meus meninos em paz. Deixem meus meninos em paz.".
Mãe e filho aguardaram à mesa por mais alguns instantes. Vendo que o marido não retornara, a senhora tirou os pratos da mesa e recolheu tudo e pôs então o filho para deitar. Na cama, o cobriu e o beijou levemente na testa. Com os olhos cheios de pavor e interrogação, o garoto perguntou, "Quando é que o papai vai voltar?". Ela se limitou a recomendar carinhosamente, "Durma, durma.", afagando-o por cima do  cobertor. O barulho e os gritos dos animais já haviam cessado fazia mais de uma hora. Pensou no marido. Por mais que tentasse não conseguia ficar triste.




Cly Reis

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