"O dinheiro de Abelardo.
O que troca de dono individual mas não sai da classe.
O que, através da herança ou do roubo, se conserva nas mãos fechadas dos ricos...
Eu te conheço e te identifico, homem recalcado do Brasil!
Produto do clima, da economia escrava e da moral desumana
que faz milhões de onanistas e de pederastas...
Com esse sol e essas mulheres!
Para manter o imperialismo e a família reacionária (...)
Amanhã, quando entrares em posse da tua fortuna,
defenderás também a sagrada instituição da família,
a virgindade e o pudor, para que o dinheiro permaneça
através dos filhos legítimos, numa classe só..."
Abelardo I
É impressionante a quantidade de vezes que nos deparamos com um texto, música, crônica, quadro, peça que nos desperta aquela sensação de que, independente do momento em que tenha sido concebida, continua atualíssimo em seu conteúdo e abordagem crítica em relação à situação brasileira. Talvez isso se dê porque o problema, basicamente, continue o mesmo desde o descobrimento destas terras: uma burguesia vaidosa e egoísta que, cada vez que vê posta em risco sua posição de privilégios, e ameaçada sua perpetuação, dá um jeito de virar a mesa nem que para isso o maior sacrificado tenha que ser exatamente o Brasil. Há muito tempo tinha vontade de conhecer a peça "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, e calhou de, dia desses, ela vir parar em minhas mãos. Ela é mais um destes casos em que a gente não consegue conter a exclamação, "Incrível, o quanto essa peça continua atual!". Escrita em 1933 , ela, incrivelmente, trata dos mesmos temas que afligem a sociedade brasileira nos dias de hoje como se tivesse sido escrita especialmente para esta atual fase pós-impeachment. Empresários inescrupulosos, oportunistas, tramas entre os poderes, conchavos, trocas de favores, entreguismo para o estrangeiro, falsa moralidade da "família brasileira", indiferença em relação ao povo e explorado apoiando o explorador... Nossa! Parece que o autor tinha uma bola de cristal, não? Não! É que nos anos 30, o país vivia crise financeira semelhante e assim como agora, o empresariado se movimentou para garantir o seu e, como de costume, fazer o povo pagar a conta.
Um empresário de um ramo decadente, com a ajuda dos americanos, dá um jeito de sucatear os serviços ligados à sua atividade de modo a que esta volte a tornar-se essencial e que ele se torne novamente um magnata no mercado. Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência. Abelardo I, empresário casado com a filha de um latifundiário, aproveita-se cada crise econômica e sabota a indústria nacional de modo a fazer o país voltar praticamente à era medieval no que diz respeito à infraestrutura, tornando-se assim um dos mais poderosos empresários do país por atuar no ramo de velas. ("Descobri antes a regressão parcial que a crise provocou... Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela... sob o signo do capital americano (...) As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente.")
Isso mesmo: velas de sebo. Símbolo mais que apropriado para o atraso causado continuamente por interesses mesquinhos das classes dominantes brasileiras. Voltar a ser iluminado pelo fogo. País do futuro? Nunca será.
Escrita em três atos, ligados pelos personagens mas de certa forma independentes, a peça, de escrita e estrutura sofisticadas e inovadora, gira em torno desta família burguesa, de seus procedimentos comerciais escusos, suas relações promíscuas e interesseiras, e perifericamente a isso apresenta o povo, retratado como algo desprezível e meramente útil, mantido numa jaula, afastado por uma grade à qual só pode transpor para pagar seus abusivos encargos.
"O Rei da Vela", que voltou a ganhar montagem recente pelo mesmo Grupo Oficina, de Zé Celso Martinez, que o encenou em 1967, em plena ditadura militar, infelizmente (para o Brasil) é atualíssimo agora como teria sido em 1889; como foi em 1930; como serviria para 1954; para 1961; para 1964; e como se aplicou, mais recentemente, ao golpe de 2016. E, a impressão que dá é que um texto como este continuará sendo pertinente sempre que alguém acenar com alguma medida que diminua os privilégios de uma minoria que concentra a riqueza do país e enquanto o povo médio, supondo que faz parte dessa casta, continue a servi-los como patos, sempre que for conveniente.
"Voltará [o cidadão instruído]! De camisa amarela, azul ou verde. E de alabarda. E ficará montando guarda à minha porta! E me defenderá com a própria vida da maré vermelha que ameaça subir, tomar conta do mundo! O intelectual deve ser tratado assim. As crianças que choram em casa, as mulheres lamentosas, fracas, famintas são a nossa arma! Só com a miséria eles passarão a nosso inteiro e dedicado serviço! E teremos louvores, palmas e garantias. Eles defenderão as minhas posições e a tua ilha, meu amor."
Nada mais atual...
* refiro-me aqui à edição da Abril Cultural, de 1976, porque foi a que tive a oportunidade de ter em mãos e, a propósito, recomendo a quem ainda encontrar por conta de toda a parte introdutória, bastante completa, com a biografia do escritor, histórico da peça e comentários, muito interessantes e valiosos. Contudo, para facilitar a quem se interessar pela leitura e desejar encontrar o livro, há uma edição recente, de 2017, da editora Companhia das Letras.
Cly Reis
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