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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

cotidianas #851 - "Dia 1"



Diferentemente de outras capitais maiores ou turísticas, Horto Feliz era uma metrópole de passagem que se esvaziava no final de ano. Bastava que chegasse pela metade de dezembro, que o fluxo migratório passava a se direcionar a outros estados (turísticos, em geral) ou, principalmente, para o litoral do próprio estado, a menos de 120 quilômetros, onde boa parte da população local mantinha casas de praia ou as locava para que outros gozassem as festas. No Natal, ainda se viam pessoas, pois o hábito bastante católico de passar esta data em casa com a família se mantinha em muitas delas, como a de Nei, cuja virada do 24 para o 25 foi com as filhas, a esposa e o filhão peludo Guilherme, um golden idoso.

E ficava ótimo curtir a cidade assim no Natal. Ruas desbloqueadas, trânsito civilizado, pouco movimento no supermercado, restaurantes frequentáveis. Um alívio a todos aqueles estímulos sensoriais constantes. A grosseria, o barulho, a histeria, a violência, até a mendicância haviam todos se mudado – mesmo que temporariamente. Nei não lembrava que a cidade ficava tão boa nessa época.

Porém, como é de praxe também, após a festividade natalícia, aí sim é que a cidade esvazia de verdade.

E esvaziou.

Havia ainda uma pessoa que outra a pé nas ruas. Carros, muito de vez em quando. O comércio, a maioria fechado: em recesso ou em férias coletivas. Todos merecem descanso, pois trabalharam o ano todo, pensava. Nas descidas do apartamento para as necessidades do Guilherme, foi raro encontrar algum vizinho fazendo o mesmo. Uma, duas, três, quatro vezes - e fosse pela manhã, tarde ou noite, independia. Tudo muito vazio, inóspito, silencioso, até inseguro. Nei arrepiou-se.

No fundo, ele entendia tamanho deslocamento. Havia um sentimento no ar de aproveitar o melhor possível os feriadões do final de ano, pois aquele tinha sido especialmente difícil para todo o Estado. Uma grave tragédia climática se abatera sobre o lugar meses antes, matando gente, desalojando milhares, provocando perdas irreparáveis. Recuperar-se disso demandou muita força de vontade e resiliência da população. Concluir o ano, então, tornou-se o primeiro e imediato alívio para mentes e corações ainda abalados com a calamidade. Era compreensível que a maioria quisesse passar os bons momentos da virada longe de onde sofreram tanto, já que, inevitavelmente, haveriam de voltar depois para as próprias casas (os que não as perderam na tragédia, claro).

Nei e sua família só não acompanharam o fluxo da massa porque, justo por conta do aquecimento imobiliário no litoral, amigos haviam alugado sua confortável casa de praia para a temporada. Então, resolveram de comum acordo ficarem na evacuada Horto Feliz. Mas conforme se aproximava do dia 31, mais ermo ficava. Menos gente se via. Aliás, mais ninguém. Casas mudas, janelas fechadas, trânsito zero. Estranho... Todo ano, o povo se mudava para outros lugares no Ano Novo, isso era comum. Mas desta vez, estava diferente. Algo radical e misterioso parecia estar acontecendo. Nei e os seus não quiseram pagar pra ver: valeram-se do que tinham na dispensa, passaram a tranca na porta e se enclausuraram dentro de casa. Temerosos.

Não bastasse todo este clima, horas antes de escurecer a luz falta. Pouco depois, a água que é cortada. Aflita, a esposa buscava falar com amigas e parentes, mas em todos os casos aparecia apenas um risquinho cinza da mensagem do whats. Nem leram. A melhor amiga, em viagem à Europa, fora o fuso-horário, tinha mais com o que se ocupar, e os parentes, naquele frenesi de filas e engarrafamento da praia, deviam estar muito mais ocupados com a própria irritação. Largou o celular. A filha mais velha, no entanto, realmente estranhou a incomunicabilidade quando tentou acessar as redes sociais e percebeu que estavam sem sinal. Nei, da velha geração, achou que conseguiria resolver a falta de notícias através do radinho de pilha guardado na dispensa. O aparelho, aliás, funcionou, mas a sintonia das rádios emitia apenas um angustiante zunido.

Nem precisa dizer que aquela foi a mais desagradável virada de ano de suas vidas. No escuro, socados em casa, com medo e no silêncio. Nem os fogos de artifício espocaram no céu, para sorte de Guilherme, que desta vez se livrou dos desesperadores barulhos de bomba. Não houve contagem regressiva, espumante, cumprimento, Feliz Ano Novo, selfie e nem abraços. O negócio era dormirem algumas horas para, quando o sol raiasse, tomarem juntos alguma providência.

Já de manhãzinha, desceram as escadas cuidadosos em direção à porta de saída, mas sem qualquer ameaça (ou esperança) ao redor, tendo em vista que nenhum vizinho se encontrava no bloco. Nem em todo o condomínio. Sob o olhar julgador dos filhos e da esposa, Nei avisou que não seria possível pegarem o carro, porque não havia abastecido o suficiente para uma viagem maior na crença de que, em alguma saída boba ao mercado, passaria num posto e reporia o tanque. Teriam que ir a pé.

Em grupo, quase colados, mas ligeiros, andaram pelo bairro o qual raramente acessavam a pé, olhando para os lados, tão admirados pelo o que não conheciam do que pela inação a qual presenciavam. Um silêncio assustador abrandado apenas pelo barulho do vento na vegetação e pelo canto dos pássaros, que podiam cantar livremente sem competirem com o ruído da urbe.

A esposa mandava os filhos não se distanciarem. A marcha era forte, principalmente para as pernas mais curtas do menor. Precisavam chegar em algum lugar. Cruzaram com uma árvore em frente a um prédio em que as luzinhas de Natal tocavam um antes inaudível Jingle Bells já desafinando em razão das pilhas gastas. Foi quando ouviram, de repente, o som de um veículo se aproximando. Uma caminhonete de vidros insulfilmados, que dobrou a rua cantando pneu e saiu em alta velocidade até sumir no horizonte em segundos. Eles, que acharam por alguns instantes terem retornado à civilização, se entreolharam desiludidos e sem se dirigirem palavras. Depois disso, mais nenhum sinal de vida por qualquer lado que olhassem. Tudo havia parado de fato. Nenhuma viva-alma sequer vista em quarteirões. Deserto.

Horto Feliz tinha se tornado uma cidade-fantasma.

Como Nei desconfiou, todos os postos de gasolinas que avistaram no caminho restavam abandonados: nem frentista, nem carros e nem energia. A cena calamitosa, ao menos, lhe amenizou um pouco a culpa por não poder pegar o carro e evitar aquela situação para todos, que caminhavam assustados e apressados para chegar sabe-se lá onde.

Carregando no colo Guilherme – cujas articulações gastas não o permitiam mais andar tanta distância – Nei, embora ofegante, indagava-se mentalmente: “Será que lá no litoral as pessoas estão felizes?” “Será que, realmente, estão TODOS lá?” “Terão gostado tanto de lá, que não pensem mais em voltar?” “Será que os encontraremos quando chegarmos, se chegarmos?” Outras inquietações, inclusive, lhe ocorriam: "Como ficará nosso apartamento, nossas coisas, o trabalho, a escola das crianças?!" "Teremos chance de... recomeçar?..."

Nei apressava o passo e cobrava com a voz trêmula de pavor que os outros o fizessem também. A noite começava a cair, e na estrada não era nada recomendável que andassem no escuro. A madrugada os esperava, contudo. Era inevitável. Quem sabe, após resistirem à noite, o dia 2 guardasse uma boa novidade.

 

Daniel Rodrigues


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Lançamento do livro "Chapa Quente" - 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Espaço Força & Luz (16/11/24)



O autor e a obra prontos
para uma tarde inesquecível
na Feira do Livro
Demorou, mas foi com requintes de especialidade. Meu livro “Chapa Quente”, meu primeiro individual de contos, foi selecionado no segundo semestre de 2023 na chamada de originais aberta pela editora Caravana e entrou em pré-venda em dezembro do mesmo ano. Já com exemplares em mãos, a ideia era fazer algum encontro para lançá-lo oficialmente que não só pela internet. Reunir os amigos, apresentar a obra, autografar, celebrar. Deixei passar os meses de férias, janeiro e fevereiro, inadequados para este tipo de ocasião. Março, quando o ano começa de fato, passou voando e abril tirei para adoráveis férias no Rio de Janeiro. 

Ocorre que, ao retornar ao Rio Grande do Sul, o caos se instaurou. As chuvas e as enchentes, que castigaram o estado por mais de um mês, não só impediram que este lançamento se desse no retorno das férias como alteraram toda a agenda prevista para o resto do ano. Porém, que bom que Porto Alegre, tão frágil em vários aspectos, tem uma consistente Feira do Livro. E a 70ª edição foi o ambiente perfeito para que, enfim, pudesse por “Chapa Quente” em evidência e dividir isso como amigos, familiares e leitores.

Não poderia ser diferente para um livro com esse título. Num quente sábado de novembro, foi ainda mais especial sentir o calor do afeito daqueles que presenciaram, primeiro, o bate-papo com a escritora Simone Saueressig na sala O Retrato do Espaço Força & Luz, por acaso coordenada com carinho por Leocádia. Leitora atenta (coisa dos bons escritores), Simone conduziu a conversa de forma muito inteligente e amistosa, abordando em seus comentários e perguntas direcionadas a mim aspectos de cada um dos contos, de forma que foi possível, assim, dar um 360 na obra.

Logo em seguida, corremos todos para a sessão de autógrafos em plena Praça da Alfândega, no meio do povo, ocasião em que pude, sob as lentes sempre atentas da hermana Carolina Costa, conversar melhor tanto com os que presenciaram o bate-papo quanto com os que foram para o autógrafo ou, simplesmente, confraternizar. Uma tarde quente, mas não só do sol: quente de afetos. As fotos não deixam mentir.

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E começa o bate-papo

Simone lê trecho de "Chapa Quente"

Público atento

Argumentando...

... e trocando ideia

Com Leocádia, que nos recebeu e assistiu
carinhosamente na sala O Retrato

Com o primo Leandro Leão já na sessão de autógrafos

A amiga Viviane, que também prestigiou o bate-papo

O querido casal Roberto e Júlia: biautógrafo

Batendo um papo com os sempre presetnes amigos Lisi e Rodrigo

Colega de Accirs, a querida professora Fatimarlei Lunardelli

Amigo de infância, professor Nilson Araújo e a esposa Carol

Preparando mais um autógrafo

Queridos Guilherme e Camila

Um abração na parceira de bate-papo e
das letras Simone Saueressig

Amigo Otávio Silva

Primo Luis Ventura foi de muleta e tudo

Hermanos na expectativa...

Com eles no último autógrafo da fila



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Carolina Costa, Luis Ventura
Marjorie Machado/Câmara Riograndense do Livro

sábado, 2 de novembro de 2024

Drops lançamento livro "Chapa Quente" - 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Espaço Força & Luz

 

Já tem data o lançamento oficial do novo livro do coeditor do nosso blog, o escritor e jornalista Daniel Rodrigues, “Chapa Quente” (ed. Caravana Editorial). Será durante a celebrada Feira do Livro de Porto Alegre, que abriu no dia de ontem para sua gloriosa 70ª edição, no dia 16 de novembro, e contará com duas programações. Primeiro, às 15h, na sala O Retrato do Espaço Força e Luz, ocorre um bate-papo do autor com a escritora convidada e amiga Simone Saueressig. Logo em seguida, às 16h, é a vez de Daniel autografar a obra na Praça de Autógrafos da Feira do Livro, na Praça da Alfândega.

Primeiro individual de contos de Daniel, “Chapa Quente” é composto por uma reunião de cinco histórias e foi selecionado em concurso realizado pela editora Caravana Editorial em 2023, resultando resultado da experiência de mais de 10 anos de Daniel Rodrigues como contista, o qual já participou de diversas antologias coletivas. Além destas obras, também é autor de “Anarquia na Passarela – A influência do movimento punk nas coleções de moda”, livro pelo qual venceu o Prêmio Açorianos de Literatura 2013, na categoria Ensaio e Humanidades. Pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, também assina artigo no livro “50 Olhares daCrítica Sobre o Cinema Gaúcho”, editado pela ACCIRS em 2022.

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Lançamento livro “Chapa Quente”
Onde: 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Centro Cultural CEEE Espaço Força & Luiz (R. dos Andradas, 1223, sala O Retrato)

Quando: 16 de novembro
15h: Bate-papo do autor com a escritora Simone Saueressig
16h: Sessão de autógrafos (Praça dos Autógrafos, Praça da Alfândega)

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

"Dublinenses", de James Joyce - ed. L&PM - coleção L&PM Pocket (2012)


 
"Ao meu ver, sempre escrevo sobre Dublin, porque se eu puder chegar ao coração de Dublin, posso chegar ao coração de todas as cidades do mundo. No particular está contido o universal". 
James Joyce

Um dos escritores da influente escola russa, Liév Tolstoi, disse certa vez a famosa frase: "Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia". James Joyce, cuja primeira obra em prosa completa 110 anos de lançamento, a coletânea de contos “Dublinenses”, internalizou este pensamento. Reconhecido como um dos principais autores do século XX, o irlandês marcaria a história da literatura com os romances de vanguarda “Ulysses” (1922) e “Finnegan’s Wake” (1939). Porém, direta ou indiretamente, física ou emocionalmente, mesmo morando em Trieste e Paris na maior parte da vida, nunca sairia de sua Dublin a qual passara a infância e breves temporadas.

O nome da obra por si já faz deduzir. Composto por 15 contos, “Dublinenses” carrega em si o espírito de uma cidade no conjunto de seus cidadãos. As personagens que povoam essa Dublin são quase sempre marginalizadas e frívolas, marcadas pela frustração e pela impotência. Jesuítas, mendigos, alcoólatras e artistas, que povoam velórios, pensões, cafés e comitês de província, declarando seus preconceitos de classe e revelando seus dramas pessoais.

Considerada a obra mais acessível de Joyce, “Dublinenses” nem por isso é menor em relação a sucessoras, visto que, se não pela escrita densa e experimental de “Ulysses” e “Finnegan’s Wake”, traz uma revolução na literatura realista do início do século XX. Quando Joyce lança o livro, o primeiro tiro da Primeira Guerra Mundial havia sido dado fazia apenas um mês e duraria terríveis quatro anos, atingindo tanto sua Irlanda (Batalha de Easter Rising, 1916) quanto a França onde morava. Os ventos de desesperança e crueldade do maior conflito bélico da história da humanidade até então transparecem nas linhas de cada um dos contos de uma forma muito profunda o original. Daí a capacidade de inovação narrativa e estilística de Joyce.

A experiência narrativa de Joyce adensa-se na direção da consciência de suas personagens, incluindo, misturando e confundindo os diversos gêneros do discurso e pontos de vista. As angústias, os pensamentos e as impressões subjetivas parecem se deslocar do tempo da narrativa para, a favor do leitor, exprimir o interior das personagens. “Os Mortos”, obra-prima contista joyceana e um dos maiores da literatura universal nesse estilo, é primoroso nessa conjunção de real e imaginário. A partir de uma cena burguesa, em que o personagem Gabriel Conroy vai a uma festa na casa das tias solteironas e descobre fatos novos sobre a vida afetiva pregressa da esposa, toda uma análise psicológica e social é tecida. O conto, o mais longo do livro e responsável por desfecha-lo, trata de amor, perda, morte e separação a partir de uma “aceitação lírica e melancólica de tudo o que a vida e a morte oferecem”, comentou o crítico literário Richard Ellmann. Embora nenhum dos 15 contos se refira à Grande Guerra, a morte está ali, insinuada e pulsante.  

Entretanto, a própria construção narrativa da obra como um todo, no que se refere à ordem de seus textos, é igualmente inovadora. Embora composta por histórias curtas, seu conceito como obra é pensado num âmbito maior e fluido, que dá, assim como “Um Médico Rural” de Franz Kafka, um caráter quase romanesco. A sequência dos contos faz com que se dialoguem. “As Irmãs”, que abre “Dublinenses”, evoca o fantástico e o fantasmagórico quando a personagem Eliza, envolta em memórias, sente estranhamente a presença do velho padre O’Rouerke morto. Mesma sensação presente da vida além da morte que o conto final, “Os Mortos”, desenvolve com maestria (“A alma dele havia se aproximado daquela região habitada pelas infindáveis hostes da morte”). Igualmente, o sentimento de desacomodação para com a cidade das crianças de “Um Encontro”, igual ao da jovem “Eveline”, prestes a casar e mudar de cidade aos olhos críticos dos vizinhos.

A aparente desconexão dos títulos-temas com as histórias, a onipresença do catolicismo e a decadência econômico-social de Dublin estão também permanentemente expressas através de seus personagens se não banais, desprovidos de qualquer epicismo. Interessante notar esta visão de Joyce: a absoluta dessacralização dos valores. Até mesmo quando, anos depois, em “Ulysses”, que se centra num personagem homérico, paralelizando o guerreiro Ulisses a seu simplório Leopold Boom, há crítica à condição de heroísmo. Em “Dublinenses”, “história moral da Irlanda”, como o próprio autor descreve, mais ainda. Os protagonistas são como a inocente solteirona Maria de “Terra” ou o artista frustrado Pequeno Chandler de “Uma Pequena Nuvem”: desprovidos de grandes atos. Apenas, são. Vivem o dia a dia difícil e invariavelmente desafiador da existência terrena.

Este pensamento de Joyce esvaziado de grandiosidade aventuresca é também bastante moderno. Na sua absoluta quebra da construção narrativa clássica, os momentos de ápice da tragédia e até mesmo da comédia gregas são propositalmente frustrados. No fundo, Joyce diz que as mudanças as quais se espera na ficção não se dão, assim, tão facilmente na vida real (isso quando não se retrocede). A expectativa para com a alma humana, assim, é um erro do caráter. O cinema foi uma das artes que mais soube aproveitar dessa ideologia de transgressão da catarse, haja visto filmes de cineastas como Michelangelo Antonioniirmãos Cohen.

Por fim, outro aspecto moderno da obra de Joyce é sua visão da sociedade. Oposto ao nacionalismo bairrista, ele tem, sim, amor por sua terra, mas nem por isso se exime de criticá-la. Critica-a, aliás, por amá-la: para vê-la suplantar seus valores ultrapassados e desumanizadores. Uma forma de ver mais do que poética, pois até mesmo cívica e que hoje pauta a agenda das correntes socialdemocratas pelo mundo. 

Para alguém como eu, um contista que editou seu primeiro livro, “Anarquia na Passarela”, por uma editora chamada justamente de Dublinense, esta obra de Joyce é uma constante referência. Considerando a ainda forte marca das Grandes Guerras no século XXI, as mazelas sociais, a perversidade humana e as batalhas travadas nas trincheiras do cotidiano para (sobre)viver, seja em Dublin ou em qualquer metrópole do mundo, 110 anos não são nada de tempo para as “Dublinenses”. Temos muito ainda a assimilar de suas páginas.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

"Verissimo", de Angelo Defanti (2023)


por Leocádia Costa

“Tudo em Verissimo – a emoção, o lirismo, o drama e até a erudição de quem leu, viveu, ouviu e assistiu do bom e do melhor – é contido e temperado pela autoironia e por um humor generoso e irresistível”. 
Zuenir Ventura – "Conversa sobre o tempo"

“A vida privada do brasileiro, contudo, é o seu forte – ou as comédias da vida privada, para dizer melhor. Os rituais do namoro e do casamento, o sexo, as infidelidades, o choque de gerações, tudo isso é um prato cheio para o escritor. Quanto ao humor de Verissimo, ele é de um tipo muito especial. Por mais incisivas que sejam, suas piadas nunca destilam raiva. Ele não procura o fígado do leitor nem professa um humor amargo, desiludido com a humanidade. Verissimo afirma que, à medida que envelhece, talvez esteja caminhando para um ceticismo terminal, daqueles que não dão desconto. Mas ainda não chegou lá.”
Revista Veja, em reportagem de capa sobre Luis Fernando Verissimo

“Superlativo já no nome, Verissimo possui dois instrumentos de audição, dois de visão, um, bifurcado, de olfato, um gustativo (exemplarmente cultivado) mas, homem cheio de dedos, é bom mesmo no tato. Humorismo nunca ninguém lhe ensinou. Ele se riu por si mesmo.” 
Millôr Fernandes - "Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos"


Assistir ao filme do multiartista Luis Fernando Verissimo é vivenciar a passagem do tempo e a chegada da maturidade de um homem perto de completar os seus 80 anos de vida. 

O filme começa de uma forma muito bonita, revelando o dia a dia, a rotina desse escritor, a sua escuta permanente de todos os sons ao redor, a sua relação íntima com a família (com a esposa Lúcia, com os filhos Pedro, Mariana e Fernanda, com os netos Lucinda e Davi), a sua predileção apaixonada pelo time do coração, Internacional. Aliás, essa é uma das paixões, além da literatura, que temos em comum, pois também me tornei igualmente torcedora, de forma irreversível, após sucessivas experiências traumáticas: vestir uma camiseta pinicante do Grêmio quando criança, uma apreensiva ida ao estádio clássico da Medianeira e passar 90 minutos na iminência de receber um saco de urina na cabeça, e por fim, namorar um gremista... disso tudo  se salva somente a entrada do almoço do restaurante Mosqueteiro, que era “mara” e onde fui com meus pais algumas vezes ainda na primeira infância. 

Voltando ao filme: o documentário mostra uma série de relações que foram se estabelecendo no decorrer do tempo entre a sua produção literária, a sua produção jornalística e a sua forma de estar no mundo. É um filme que encanta a gente! Deixa-nos ver de forma tão íntima a rotina dele e nos permite encontrar um escritor com o corpo idoso, mas com uma mente superligada em tudo que está acontecendo. Verissimo tem uma incrível curiosidade, um senso de humor permanente, né? E de uma forma muito imediata, embarcarmos naquilo que a gente poderia dizer que é o imaginário dele, sabe? 

Momento de intimidade com os netos
No filme me chamou atenção a relação dele com a neta Lucinda, a mais velha entre os netos e muito parecida com ele. Os dois se entendem no olhar, se entendem nas pausas e se entendem nessa “maluquice do bem” que é vivenciar mundos paralelos diversos, enquanto inventam personagens, estórias e situações, só para se divertir, só por ser prazeroso, só por haver essa troca entre os dois. Avô e neta, escrevendo os dias – é tocante. 

O filme me fez lembrar também da primeira vez que eu entrei na casa dos Verissimo. Porque essa casa tem uma identidade muito forte: é uma casa que estrutura parte da história de uma família, desde a existência dos pais do cronista, o renomado Érico Verissimo e a Dona Mafalda. Interessante perceber que pai e filho souberam costurar o tempo em suas existências. Foi ali que o valioso núcleo familiar vivenciou e construiu suas vidas em Porto Alegre. Ver Luis Fernando ali, nesse ambiente tão fértil, e ao mesmo tempo, tão sólido, onde tudo continua existindo é, sim, parte dessa história. 

Lembrei-me da primeira e única vez que eu entrei, lá em 1997, quando eu fui entrevistá-lo para o meu Trabalho de Conclusão de Curso da PUCRS, em Comunicação Social – Publicidade intitulado: “Comédias da Vida Privada – uma produção ficcional na televisão brasileira”. Quem conseguiu o contato foi a minha queridona Gagá (Maria da Graça Dhuá Celente), que era amiga da família, coordenava o Departamento de Publicidade da FAMECOS/PUCRS, onde eu, estudante quase me formando, era sua monitora e na mesma instituição que eu havia sido sua aluna. Ela, com toda a gentileza, colocou-me em contato com a agente literária e com a esposa do Verissimo. Eles se conheciam acredito que dos tempos da publicidade em que Verissimo foi redator no Rio de Janeiro, mesma cidade em que conheceu sua esposa, Lúcia. Uma ponte muito amorosa se ergueu naquele momento, reverberando posteriormente na minha entrada em outros mundos literários. Gagá me ingressou na Publicidade e, de certa forma, me fixou na Literatura.

Em 09 de junho de 1997, foi apresentado o TCC para uma banca potente, com a cineasta Flávia Seligman, a Gagá e o professor Bob Ramos, além da minha orientadora, Ana Carolina Escosteguy. Falar nessa produção do “Comédias da Vida Privada”, que era muito contemporânea, ainda fresca e presente na televisão e que me deixava totalmente arrebatada, foi algo ousado, mas somente hoje, depois de 27 anos, é que percebo isso. Naquela ocasião, tinha o dever de concluir, em meio a tantos compromissos, uma faculdade. Percebi, muito jovem, esse trâmite entre a Literatura e o Audiovisual, e as entrevistas que se sucederam com Jorge Furtado e Carlos Gerbase me deram essa certeza de que estava com uma percepção fina da realidade.

Como leitora do Verissimo, eu vi verter das páginas que ele tinha escrito, diálogos para televisão com atores e atrizes de uma geração supertalentosa e muito bem dirigidos. Ao entrar naquela casa fui bem recebida pela Dona Lúcia e por ele, que chegou silenciosamente e timidamente sentou-se numa cadeira thonart em frente à minha. Ficamos os dois em cadeiras por alguns minutos ali. Um pouco tímida, fui fazendo perguntas para ele e ele me respondendo, algumas de forma mais breve e outras com o maior profundidade, com a maior atenção.

 O som da rua e o som do relógio estavam presentes naquele meu encontro com Verissimo, como se um estivesse conectado ao mundo externo e o outro marcasse o tempo interno. E no filme esse quase personagem constante se mostra pelo som, o que me trouxe a mesma sensação de quando entrei na casa.

O reservado Verissimo em seus momentos de retiro

Eu estava na frente de uma pessoa que eu admirava muito e simpática a mim, mas totalmente reservada. Ele escutava muito, e isso para mim, que sou super tagarela, foi me dando um senso maior de responsabilidade do que dizer sem ser óbvia ou burra. Mas o fato é que a entrevista foi muito boa, me rendeu algumas informações direto do autor daquela produção toda, que eu rapidamente adicionei no meu trabalho. Um tempo depois enviei uma cópia do TCC para ele ter/ler e fiquei muito surpresa quando soube que ele havia adicionado ao site que ele mantinha com indicações de obras, entre outros itens e indicações de trabalhos sobre a sua produção. Então, acabei concluindo que ele leu e gostou! 

No filme aparece uma cena poética desse respeito que ele tem com as pessoas que se dirigem a ele, como leitoras ou como referência, na espera de uma leitura daquilo que escrevem. O retorno que ele proporciona para quem abre esse diálogo sincero com ele é muito bonito! Um misto de gentileza com escuta, algo cada vez mais raro na sociedade em que se vive. Enquanto eu assistia ao filme tudo isso emergiu, revelando, inclusive, algumas pessoas importantes da minha biografia, além do próprio Verissimo e da Gagá. Relembrei que havia conhecido a Lúcia Riff (agente literária dele e de boa parte dos escritores brasileiros) não num trabalho da Casa de Cultura Mario Quintana, através do Sergio Napp e, sim, nesse momento aí, do TCC, sendo que a Lúcia até hoje é uma pessoa importantíssima em minha vida. Ela foi quem sempre me apoiou e me deu aval para que eu pudesse desenvolver vários trabalhos com a obra do Mario Quintana e foi muito bonito rever a nossa história a partir deste filme. Além dela, outras personagens importantes aqui da nossa cidade aparecem e se relacionam com a momentos da vida de Verissimo e da minha: o inventivo Cláudio Levitan, o poeta Mario Pirata e a pesquisadora Maria da Glória Bordini, pessoas que fazem parte da história de Porto Alegre. 

Foi muito emocionante para mim assistir Verissimo completar 80 anos através deste filme, pela TV após ter sido impedida de ver no cinema, em maio deste ano, em função das enchentes que atingiram não somente a programação da estreia mas a sala de cinema onde aconteceria a exibição. Verissimo sempre esteve muito presente na minha casa, era lido por meus pais, muito antes de eu ser sua leitora. Nestes mais de 40 anos que eu convivo com seus pensamentos e senso de humor muito lúcidos e geniais, volto a dizer que os artistas não deveriam se afastar dos seus ofícios. Sendo eternos mesmo quando se tornam um dia invisíveis à nossa percepção, a obra, o olhar e o recorte do tempo permanecerão imortais para quem os leu profundamente. O tempo é uma realidade com a qual precisamos saber lidar. Afinal, somos nós quem passamos por ele e, Verissimo faz isso de maneira suave, constante e inspiradora. 

Obrigada, Verissimo, por tanto! E agradeço também por esse encontro às sensíveis e generosas mulheres Gagá e as “Lúcias” Verissimo e Riff.

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tralier oficial de "Verissimo"


"Verissimo"
Direção: Angelo Defanti
Gênero: Documentário
Duração: 90 min.
Ano: 2023
País: Brasil
Onde encontrar: NET/Claro - Now


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sábado, 31 de agosto de 2024

cotidianas #840 - Pílula Surrealista #58

Um esperou pelo outro, e o outro esperou pelo um. O um esperou pelo um, e o outro pelo outro, e os dois pelos dois, e os três pelos três, quatros, cincos, seis, setes outros, infinitamente. Quem se beneficiou foi o pedestre, que atravessou o cruzamento com seus fones isolantes e os olhos enfiados na tela do celular sem atenção alguma ao que se sucedia.

Não houve buzinas, nem xingamentos, nem irritação, nem discussão ou vias de fato. Sequer sentimentos de aflição, derrota ou sujeição: todos os motoristas, presos em seus carros apontados de frente uns para os outros, como vacas aplastadas num curral, aguardavam-se mutuamente com resignação e tranquilidade. Em silêncio.

Um silêncio incomum ao perturbador trânsito daquela hora, final de tarde. Tão incomum quanto a invisível nuvem de solidariedade que ali desceu inexplicavelmente, naquele que foi considerado o primeiro engarrafamento gentil da história daquela cidade.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 10 de junho de 2024

cotidianas #833 - Pílula Surrealista #57

 

Já era quase hora de ir dormir. Aliás, algo que a esposa de Vicente já havia feito enquanto ele, desenxabido, sorvia lentamente um copo de whisky em frente à TV assistindo qualquer coisa com o volume quase no zero. O tempo lá fora, contudo, parecia selvagem, uma selvageria protegida apenas pelo indissolúvel concreto do prédio. Nada à sua volta, nem mesmo os preguiçosos dos gatos e do cachorro, todos dormindo com o sem a dona. Nem vizinhos pra atazanar, nem estampidos de WhatsApp pra infernizar os ouvidos. A noite quase morria.

Era possível ouvir seu peito asmático chiando, parecido com o ronronar dos gatos os quais trabalhava para alimentar. Até que outro som passou a dominar os ouvidos. O som do vento. A ventania irrompia subitamente na rua e batia nas janelas, nas persianas, balanceando-as cada vez mais violentamente. Os vidros, em fricção com o alumínio das esquadrias, rangiam, parecendo dizerem alguma coisa numa língua longínqua ou morta. Só que calhou de esta ser justamente a especialidade de Vicente: linguística de idiomas exóticos. E ele entendeu o que o vento queria lhe dizer.

Só pela manhã a esposa percebeu o espaço vazio no lado esquerdo da cama, um espaço não ocupado naquela noite e nem nunca mais por Vicente. Àquela hora, não havia mais tempo de resgatá-lo. Curiosamente, tempos depois Vicente foi visto pelas câmeras do Google Street View em dois pontos totalmente distintos do planeta: em Okarem, no Turcomenistão, na região de Balkan, e na Patagônia Argentina, mais precisamente em Ushuaia. No primeiro deles, caminhava por uma praia ensolarada e rústica às margens do Cáspio. Na outra imagem, aparecia com um gato a tiracolo na Avenida Maipú, próximo a Plaza Manuel Belgrano. Isso, num espaço de tempo de quatro anos. Disseram que enlouquecera, claro. Jamais iriam perdoá-lo ou tentar entender suas razões. O fato foi que Vicente entendera, isso sim, o chamado dos ventos. Dificilmente, um dia eles o fariam coincidir de retornar a seu agora antigo endereço.


Daniel Rodrigues


terça-feira, 30 de abril de 2024

cotidianas #829 - Pílula Surrealista #56

 

Verônica levantou-se da cama tarde. Meio zonza, a cabeça ainda cheia da bebedeira da noite anterior. O atraso era fatal, só precisava se confirmar na prática quando, mais de uma hora além do horário do ponto, ela se depararia cara a cara com o chefe, sendo a dela de constrangimento e a dele de fúria. 

Mas o atraso não se confirmou. Melhor dizendo: jamais houve, pois nem atraso e nem compromisso se realizaram. Tudo isso porque, voltando ao momento da saída de Verônica da cama, os sapatos lhe embaralharam a rotina. Não somente de Verônica, aliás. De todos. Ao tentar calçá-los, ela percebeu que o pé direito calçava o sapato esquerdo e vice-versa. Não havia o que consertasse aquele descompasso. Com desconforto, calçou-os trocados. Era o que restava.

Mesmo assim, tentou ir ao trabalho. Saiu pela rua cambaleando e com os pés tortos num exercício de equilíbrio entre bolsa, filho, casaco, processos e autoconfiança. Foi difícil, ainda mais com a dor nos dedos dos pés que o aperto causava. Quase caiu num desnível da calçada, mas manteve a dignidade.

Menos mal que não era somente Verônica que sofria com aquele enviesamento imprevisível. Pessoas atrapalhavam-se com os próprios passos por todos os lados, como se tivessem desaprendido a caminhar em duas pernas, engatinhando igual espécies muito primitivas do homem. Tropeços, quedas, agonias. Uns, desacostumados como não poderia ser diferente, iam forçadamente na direção que o lado esquerdo apontava, mesmo que quisessem ir na direção exatamente oposta. Nas esquinas, Verônica e o filho precisavam desviar de amontoados de gentes, que despencavam umas sobre as outras e não conseguiam mais levantarem-se, numa cena tal qual condenados no fogo do purgatório: urrando, chorando, clamando, lamentando uma vida civilizada que nunca mais recuperarão.

"Trocar os pés pelas mãos", "andar pé ante pé", "usar o sapato do outro", "dois pés não cabem num só sapato", "cada um sabe onde lhe aperta o sapato". Vieram à cabeça de Verônica todos estes provérbios, os quais, contudo, não fizeram sentido, não lhe ajudaram em nada. Desistiu de levar o filho ao colégio a duas agora intermináveis quadras de distância. Parou no meio-fio, vencida. Pela primeira vez na vida, não sabia que direção tomar.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de abril de 2024

"Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras", de Artur Xexéo e Maurício Stycer - Ed. Intrínseca (2024)

 




por Márcio Pinheiro

"Ele [Artur Xexéo] era um profissional que eu admirava e respeitava, dez anos mais velho do que eu. Aceitei a proposta do Gilberto [Braga] de continuar com o trabalho iniciado pelo Xexéo porque, entre outros motivos, entendi que seria também uma homenagem a este jornalista que respeito tanto".
Maurício Stycer


É possível gostar de um livro e ao mesmo ficar decepcionado? Meu amigo João Carlos Rodrigues me ensinou que sim ao comentar a desilusão que teve ao concluir a leitura da biografia de João Gilberto feita por Zuza Homem de Mello. Foi a mesma sensação que tive ao concluir a leitura de "Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras". 

Obra que teve uma trajetória atribulada, com a morte do personagem (Gilberto Braga) e do autor inicial (o jornalista Artur Xexéo), o livro acaba refletindo esses desencontros. Acabou sendo concluído por outro jornalista, Maurício Stycer, e aí surge o primeiro problema: Xexéo, então, em muitas partes, passa a ser tratado como fonte, não mais como autor. Stycer assume a conclusão das entrevistas e se responsabiliza pela redação final.

Outra desilusão foi com relação aos capítulos. São curtos demais e quase todos centrados na obra de Gilberto, com poucas referências ao making of. São ainda quase sempre apresentados num formato semelhante: Gilberto tem a ideia, desenvolve-a, discute com o diretor, começa a gravação, se desespera (com algum ator/atriz, com o Ibope, com a pressão interna da emissora...), promete que aquele será o último trabalho e... volta a escrever uma próxima novela - que servirá de base para o próximo capítulo do livro. 

Pouco se fala dos bastidores. Ficamos sabendo da óbvia admiração de Gilberto pela sua patota: José Lewgoy, Malu Mader, Dennis Carvalho, Antonio Fagundes... e até as pouco lembradas Henriette Morineau e Jacqueline Laurence, mas o livro pouco desenvolve quem Gilberto NÃO gostava. Fala en passant dos desentendimentos com Luiz Fernando Carvalho e com Vera Fischer. E só. Daniel Filho e Boni, tão fortes no início de Gilberto em 1972, contrastam com a ausência de Walter Clark, ainda mais poderoso na época e tão pouco citado. São escondidas também pequenas (quem era o cantor que Gilberto não tinha nenhum disco e se apressou em adquirir quando o convidou para um jantar na sua casa?) e grandes fofocas (a maior delas: o misterioso Diplomata, hoje com mais de 90 anos, que teria tido um papel afetivo importantissimo na vida do novelista?).

O livro tem méritos. Recupera bem a fase de Gilberto pré-Globo, a vida como professor de Francês e, mais ainda, como crítico teatral. Mostra também com detalhes o entorno familiar - mais complicado do que qualquer novela do autor. Apresenta ainda Gilberto como uma pessoa insegura, com obsessão por dinheiro (isso se fala quase no início, quando ele ainda está preocupado com um teste vocacional e confessa que "não enxergava futuro algum como professor, não gratifica ninguém, nem monetária nem intelectualmente"), preocupado com a ascensão social (tema tão presente em seus textos) e até da inveja que ele nutriu de Mário Prata durante um período, pelo fato de ele, Mário, ter livre acesso à sala de Boni e ele, Gilberto, não.

A vida de Gilberto Braga deu num livro bom. Poderia ter sido uma novela ótima.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sarau de leitura “Chapa Quente” – Macunaína Gastro Bar – Porto Alegere/RS (08/03/2024)

 

Faz já alguns dias, mas segue valendo a pena o registro do sarau literário com os autores gaúchos da editora Caravana, grupo do qual faço parte agora por conta do meu “Chapa Quente”. Foi no agradável Macunaíma Gastro Bar, na Cidade Baixa, que reuniu cerca de 15 escritores do “cast” gaúcho da editora. Teve poesia, ensaio, crônica e, claro, conto, garantida por outros e de minha parte com um trecho lido do meu “Abrindo-se”, história que abre o livro.

A coincidência do sarau com o Dia Internacional da Mulher fez com que, além de várias menções e homenagens, eu tivesse clareza de que trecho ler da minha obra, uma vez que cada um tinha em torno de 3 min com o microfone. O pedaço do conto que li falava exatamente da personagem Nina, uma sofrida jovem de classe alta que, em desavença com os pais, morava sozinha em um apartamento simples para seus padrões financeiros e sob o jugo dos homens da sua vida: o agressivo namorado e, principalmente, o pai opressor. Contudo, como ressaltei no preâmbulo que fiz em minha fala ao público presente, a história só se move por conta da ação interna transformadora a qual a personagem se dispõe.

Eis o trecho:

"Acontece que Nina, ao contrário do que alguns tentavam imputá-la, tinha muita capacidade e inteligência. A ponto de buscar no fundo de seu íntimo forças para sair daquele poço emocional. Tudo que não queria era transformar-se no que sua mãe se transformou. Porém, por outros caminhos, via que era justamente isso que estava acontecendo. E afinal, não era exatamente isso que seu pai queria, que as mulheres se anulassem diante dele? Reflexões que a música de Felipe lhe dava condições de fazer nas horas a fio de ensaio dele e de ostracismo dela. “Como esta melodia consegue ser tão delicada e intensa ao mesmo tempo?”, questionava. Impressionava-a que, ali, as repetições eram salutares, diferentemente do que costumavam lhe dizer ao demonizarem a repetição. Através daqueles acordes encadeados, quase hipnóticos, ficava-lhe claro ser possível evoluir e conjugar leveza e força, tudo em que sempre fizeram Nina desacreditar. 

Tanto que buscou ajuda: adotou um cachorro, parou com as drogas, desfez-se das garrafas de álcool, passou a escancarar todas as manhãs as janelas por muito tempo cerradas e começou a fazer terapia online. Quase sempre as sessões eram embaladas pelo toque daquele mesmo tema tocado repetidamente por Felipe, como uma trilha sonora martelada de um filme cujo roteiro chegava na parte em que a mocinha superava a crise em direção a um desfecho feliz. Nina buscou harmonizar-se com a mãe e, dentro do possível, entender a postura do pai. Ainda não o havia perdoado e nem sabia se um dia conseguiria, mas tentava viver um dia depois do outro. Só não via mais conserto no relacionamento com o namorado, que, desinteressado, pois muito provavelmente já em outra, cada vez menos aparecia, até que sumiu de vez."

Bom conhecer o pessoal da editora, que em parte veio de Belo Horizonte diretamente para o evento, bem como alguns dos colegas escritores. Casa cheia é sempre legal. Esta foi, embora tímida, a primeira aparição pública de “Chapa Quente”, cujo lançamento foi final de dezembro do ano passado. Prenúncio para, aí sim, um lançamento oficial, que pretende-se arranjar em breve. Por ora, no entanto, alguns registros, feitos pela lente atenta de Leocádia Costa, desse momento de letras e encontros. 

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A literária Macunaína Gastro Pub


Casa movimentada


Com o editor Leonardo Costaneto (em pé), Leocádia e outros autores


Lendo trecho de "Chapa Quente" no sarau da Caravana


Com os outros autores gaúchos e o pessoal da editora


Momento da leitura, apresentando-se e justificando 
o porquê do trecho escolhido



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeo: Leocádia Costa, Daniel Rodrigues e Guy Leonard