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sábado, 29 de novembro de 2025

cotidianas #880 - Pílula Surrealista #61


"Eu não tô nem aí", dizia, irresponsavelmente. Aliás, frase que não pode ser menos irresponsável, pois dita justamente por aqueles que, como João, não faziam questão nenhuma de se comprometer com nada. 

E não que estivesse errado, afinal, não é com tudo ou com todos que se mereça o laço da aceitação. 

Acontece que João cresceu, e com os anos de vida veio também um maior auto-entendimento daquilo que ele mesmo dizia. Bem verdade que nunca deixou de dizer que não estava nem aí. Era quase como um vício, como um TOC, como um subterfúgio para momentos de escapismo necessários. Era-lhe prazeroso, na real.

A prática de repetir a frase se estendeu por toda a vida, e João, agora um senhor idoso respeitado, avô, aposentado, admirado por seus pares, dizia, mesmo que com a voz já sôfrega pela idade, a desdenhosa e leviana frase: "Eu não tô nem aí".

E sumiu. Nunca mais esteve nem ali e nem lá. Aprendeu, por fim e enfim, da forma mais definitiva, o poder das palavras que saíam da própria boca. As últimas.


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

cotidianas #876 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura #2 - "Metamorphosis"




Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Gregório Barata se viu metamorfoseado num... humano. 
Estava deitado sobre suas costas, que eram peludas como a de um macaco. Ao levantar um pouco
a cabeça, viu sua barriga roliça, lustrosa, lisa que se elevava alto quase cobrindo a visão da porta daquele porão onde se encontrava.
“O que aconteceu comigo?”, ele pensou.
Enquanto refletia sobre a situação em que se encontrava, viu um pequeno grupo de baratas saindo de uma fresta e subconscientemente entendeu que era sua família. Ouviu um “Oh!”, vindo de uma delas. Estranhamente entendia o que elas diziam mesmo naquela 'língua' de insetos. "O que você se tornou, Gregório!!!", exclamou a irmã aterrorizada!
Havia se transformado num humano! Logo eles, os humanos, que haviam provocado uma guerra nuclear deixando seu próprio habitat tão impróprio à vida que agora somente as baratas que resistiam às condições radioativas da Terra, habitavam sozinhas o planeta. "Que tipo de animal é capaz de acabar com o próprio lar, de exterminar a própria espécie?" pensou a irmã. E agora o irmão se tornara aquilo. Aquela espécie de animal.
“Bem...”, limtou-se a dizer Gregorio, plenamente consciente de que agora não fazia mais parte daquela espécie asquerosa.
Percebeu que não poderia de modo algum deixar que aqueles insetos vivessem. Quem era o ser superior ali? Teria de agir. Embora mais lento que os integrantes de sua família, agora era maior e suas atuais capacidades de movimento lhe ofereciam novas possibilidades. Com alguns passos gigantes alcançou o pai e a mãe que corriam tentando em vão encontrar alguma fresta, e com pisadas firmes, esmagou a ambos.
Restava a irmã que estava acuada em um canto. Naquela posição seria mais difícil acertá-la mas, por outro lado, ela parecia tão atônita, sem reação, que talvez até fosse mais fácil. Estava certo. Ainda que suplicando, "Não, Gregório, não!", não ofereceu nenhuma resistência quando o irmão, usando o dedão do pé, pressionando entre as duas paredes, a esmagou sem qualquer remorso.
Sentiu um bem-estar físico diferente de tudo o que já sentirá em sua vida anterior de inseto.
Limpou a gosma que os cadáveres dos familiares deixaram em seus pés e, revigorado com sua nova forma, dirigiu-se à porta do porão. Teria muito trabalho para exterminar todos aqueles insetos nojentos. Mas pensou que talvez, assim como acontecera com ele, outros também tivessem tido aquela metamorfose... Poderia ter ajuda no seu plano de extermínio e, quem sabe, com fêmeas, recriar a espécie humana.
Sim, era hora de agir. Tinha que dar o primeiro passo para refazer toda a glória da humanidade.
Saiu daquele porão. A porta foi fechada e finalmente se fez silêncio.



Cly Reis
livremente inspirado em "A Metamorfose",
de Franz Kafka


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

cotidianas #874 - Pílula Surrealista #60

 

Não via a hora de chegar em casa e, enfim, descansar do dia corrido. Havia ainda de dar atenção aos filhos, fazer uma última reunião online, passear com o cachorro no quarteirão, tratar das contas com a esposa, preparar o lanche, comer o lanche, por as crianças para dormir, esperá-las se aquietarem, tomar banho, rezar pra Deus e... até que enfim! Dormir. Era tudo que precisava: dormir, repousar a cabeça no travesseiro.

Era tanto cansaço, que sentia que não era apenas uma cabeça a depositar na cama. Era o peso de muitas. Não deu outra: como ocorria todos os dias, era o último na casa a adormecer. Por isso, ninguém via as outras cabeças, que da sua brotavam como plantas adubadas em acelerado crescimento. Nem mesmo ele próprio, já absorvido pela sonolência. Eram umas sete, oito, além da sua, centralizada, em decúbito dorsal, num sono de boca aberta, ressonando de leve e continuamente. As outras, sobressalentes, menores que a original e de crâneos desproporcionais, como que malformadas, patógenas, purulentas, irrompiam das laterais, coco e testa. Algumas cabeças se mexiam, é bem verdade, virando os olhos avermelhados, num sono mais intranquilo (o que deviam estar sonhando?). Mas a maioria acompanhava-se na tranquilidade daquela merecida noite de repouso.

Depois, bem depois, as cabeças se recolhiam longe dos olhos da família e antes que seu dono percebesse. A alvorada surgiria resplandecente, e ele sustentaria, com a ajuda do seu Deus, tudo aquilo dentro de si.


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 29 de maio de 2025

"Kind of Blue – A História da Obra-Prima de Miles Davis", de Ashley Kahn - ed. Barracuda (2007)



por Márcio Pinheiro


"Use este livro como uma introdução, um guia de escuta, uma maneira de compreender que há muito mais nesses 40 minutos de grande jazz do que o ouvido é capaz de captar. Permita que este livro mostra a você que, às vezes, o que fala menos é o que mais tem a dizer."
Ashley Kahn

Foram apenas dois dias de gravações que resultaram em 45 minutos que resumem um dos pontos mais altos da história da música. O relato desse encontro histórico, que reuniu um grupo de sete instrumentistas comandados pelo trompetista Miles Davis, está nas 256 páginas do livro "Kind of Blue – A História da Obra-Prima de Miles Davis", de Ashley Kahn.

No dia 2 de março de 1959, o septeto entrou em uma velha igreja em Nova York que havia sido transformada em estúdio. Não tinham muita certeza sobre o que pretendiam gravar. O líder, Miles Davis - que completaria 99 anos no último dia 27 -  tinha algumas ideias, que foram ampliadas com os palpites dos saxofonistas John Coltrane, Cannonball Adderley e, principalmente, do pianista Bill Evans – os outros músicos eram o contrabaixista Paul Chambers, o baterista Jimmy Cobb e o pianista Wynton Kelly.

O trabalho de Kahn começa com um foco amplo, destacando a figura de Miles – sua infância sem traumas (ao contrário de muitos outros músicos de jazz), sua formação musical, sua proximidade com Charlie Parker e Dizzy Gillespie, seu envolvimento com drogas e sua capacidade em transitar por vários estilos musicais. Depois, o autor faz um ajuste de sintonia para se deter apenas ao que diz respeito a "Kind of Blue". Kahn mostra que é possível enxergar melhor o mundo do jazz apenas através de um detalhe.

É aí que o livro cresce, principalmente pela exaustiva pesquisa que esmiúça faixa a faixa, solo a solo, músico a músico, além de trazer comentários sobre o local e a técnica de gravação, a produção da foto da capa, a feitura do texto da contracapa e os comentários das pessoas envolvidas.

Obra perfeita, da concepção (com exceção de uma faixa, tocada duas vezes, tudo foi registrado no primeiro take, de maneira espontânea) ao lançamento, "Kind of Blue" até hoje surpreende quem ouve. Ou, como diz o autor logo nas primeiras páginas, é um álbum que simplesmente tem o poder de silenciar tudo ao seu redor.

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Ouça o disco "Kind of Blue"
Miles Davis

terça-feira, 6 de maio de 2025

BPE + Cultura - Rua Riachuelo - Porto Alegre/RS (03/05/2025)

 

Que coisa louca essa vida: há exatamente um ano atrás, Porto Alegre, assim como maior parte do Rio Grande do Sul, estava debaixo de uma chuva torrencial, que não parava há dias. Vários bairros da capital, dentre eles, parte do Centro, inundados ou sem luz. Eis que, contrariando qualquer trauma, que nós gaúchos ainda estamos aprendendo a superar, o tempo se mostra há mais de uma semana ameno, ensolarado, solar, outonal, agradável. E melhor: sem um pingo d'água sequer.

Cenário perfeito para um evento de rua - algo inimaginável naquele começo de maio de 2024. Convidado como um dos autores do BPE + Cultura, promovido todo primeiro sábado do mês pela Biblioteca Pública do RS na própria Rua Riachuelo, em pleno Centro Histórico, tive o privilégio de autografar alguns dos meus livros “Chapa Quente”, “Anarquia na Passarela” e a antologia “Lar”, lá de 2014. Ainda, rever amigos e, claro, curtir o clima desse sábado iluminado de Porto Alegre.

Na companhia amorosamente inseparável de Leocádia e da simpatia canina de Bolota, foi possível aproveitar comes, cerveja artesanal, intervenções literárias, contação de histórias, oficinas e os shows, como o de samba do competente Quinteto Benguelê. Cheios de simpatia e com uma cantora carismática e talentosa, o grupo mandou ver em vários clássicos autores do samba, como Elis Regina/Baden Powell (“Vou Deitar E Rolar”), Cartola ("Tive Sim"), Dona Yvone Lara ("Sonho Meu") e Nelson Cavaquinho ("Palhaço"). Teve também uma emocionante apresentação do grupo teatral Dança do Leão e do Dragon, que trouxe a apresentação de dança O Despertar da Fortuna baseada nas tradições chinesas. O impactante vídeo da performance sinuosa e misteriosa do dragão ao som dos tambores típicos não deixa mentir.   


Enfim, um presente a nós e a todos os porto-alegrenses: a ocasião e a de poder aproveitá-la numa tarde de sol abençoada. Confiram um pouco de como foi:

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Dia perfeito para feira na rua


Uma visão geral do começo da tarde no evento promovido pela Biblioteca Pública do RS



Com os meus livros e com Bolota aguardando os autógrafos


Autografando um "Anarquia"


Batendo um papo com o amigo Otávio Silva, que foi me prestigiar


Com a escritora e parceira de autógrafos Maiza Lemos


Contação de histórias rolando com a criançada


Um trechinho do Quinteto Benguelê 
tocando Cartola


Com a diretora da BPE, Ana Maria de Souza, e Rafael Correia, curador do evento


Nossa parceira de feira


Nós três nesta tarde em que o sol sorriu pra Porto Alegre



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quarta-feira, 2 de abril de 2025

cotidianas #859 - Pílula Surrealista #59


 

De tanto jogar conversa fora, não as achou nunca mais.

Morre e não vê tudo, mas viu tudo antes de morrer.

Deus ajudou quem cedo madrugou, pois a noite nunca mais se fez dia.

Quem é vivo sempre aparece, embora tenham aparecido alguns mortos também.

Era só o que lhe faltava! Agora, completo, não precisa de mais nada.

Com a boca foi a Roma e lá virou-se de costas só para dizer: Amor.


Daniel Rodrigues


quarta-feira, 5 de março de 2025

cotidianas #857 - "Poema da quarta-feira de cinzas"

 


"Fauno", de Di Cavalcanti, arte original
do livro "Carnaval"



Entre a turba grosseira e fútil

Um Pierrot doloroso passa.

Veste-o de uma túnica inconsútil

Feita de sonho e de desgraça...







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"Poema da quarta-feira de cinzas"
Manoel Bandeira
do livro "Carnaval", de 1919

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Quinteto Armorial - “Do Romance ao Galope Nordestino” (1974)

 

Doses Cavalares de Brasil


“Convencidos de que a criação é muito mais importante do que a execução, [os músicos do Quinteto Armorial] preferiram a tarefa mais dura, mais ingrata, mais difícil e mais séria: a procura de uma composição nordestina renovadora, de uma Música erudita brasileira de raízes populares, de um som brasileiro, criado para um conjunto de câmera, apto a tocar a Música europeia, é claro mas principalmente apto a expressar o que a Cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu.” 
Ariano Suassuna 

A história da arte no Brasil viu, em alguns momentos, a tentativa de se representar uma ideia de nação. Seja por motivos políticos, ideológicos ou simplesmente astuciosos, é fácil concluir que, para se chegar a uma identidade pretensamente simbólica de um povo, a produção artística é o melhor meio para se alcançar essa finalidade nacionalista. No século XIX, o Romantismo à brasileira buscava, num território recém emancipado da Coroa portuguesa, ressaltar as paisagens exóticas, a natureza, os povos primitivos e a miscigenação para suscitar o orgulho dos “novos” brasileiros. No Estado Novo, igual. Tanto o forte investimento na Rádio Nacional, impulsionadora de uma gama de célebres artistas, como no cinema, denotam o projeto de Estado de unificar em uma mensagem ufanista um espírito comum.

Afora a grande subjetividade de se materializar esse feito e da óbvia dificuldade de sintetizar em códigos simbólicos um país de dimensões continentais e em construção, é evidente que a estratégia não deu necessariamente certo em todas essas tentativas. A influência da Europa, seja como modelo, seja como contraposição, põe às claras a falta de elementos primitivos da cultura e da natureza de um país jovem historicamente como o Brasil – principalmente, em comparação à própria Europa, não à toa chamado de Velho Mundo. Residem nesse pensamento ocidentalizado as críticas a outro movimento que também tentou com suas ferramentas inventar uma arte puramente brasileira: o Movimento Armorial. Antes de “brasileira”, aliás, nordestina. Surgido em 1970 por iniciativa do escritor paraibano Ariano Suassuna quando atuou como Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, essa vertente artístico-cultural, manifesta em literatura, música, dança, artes plásticas, arquitetura, cinema, etc., centrava-se na valorização das artes populares nordestinas e propunha como ideia central a criação de uma arte erudita a partir de elementos populares.

Há quem acuse o Movimento Armorial de ser, além de academicista, também elitista e cínico, pois, na prática, não se comunicava com o tal povo no qual tanto bebia, restringindo-se ao círculo de seus principais cabeças: Suassuna, o artista plástico Francisco Brennand, o gravurista Gilvan Samico e uma meia dúzia de afortunados homens das artes. O que é impossível criticar, no entanto, é a qualidade das obras produzidas, entre elas uma que completou 50 anos em 2024: o disco de estreia do Quinteto Armorial, “Do Romance ao Galope Nordestino”. Com uma obra que propõe um diálogo entre o cancioneiro folclórico medieval e as práticas criativas dos cantadores nordestinos e seus instrumentos musicais tradicionais, o Quinteto Armorial lançava, pelo selo Marcus Pereira, um trabalho revolucionário e inédito em forma e conceito, o qual mereceu Prêmio APCA como o Melhor Conjunto Instrumental de 1974.

Formado pelos então jovens músicos nordestinos Antônio José Madureira, Egildo Vieira do Nascimento, Antônio Nóbrega, Fernando Torres Barbosa e Edison Eulálio Cabral, o conjunto instrumental trazia um manancial de aparatos musicais condizente com sua proposta de síntese: rabeca, pífano, viola caipira, violão e zabumba perfilando-se com os eruditos violino, viola e flauta transversal. A junção do conceito armorial com a textura dos sons gerava uma sonoridade própria, a se ver por "Revoada", exemplo claro dessa junção de tempos históricos, culturas e apropriações. Sem percussão, traz o som metálico da viola caipira, que se harmoniza com as cordas – o violino clássico e a rabeca, retrazida da Idade Média para este novo contexto – e o sopro de pífaro e flauta. Uma forma bastante didática de começar o disco.

Como bem coloca Suassuna em seu texto de apresentação na contracapa do disco, há a influência ibérica por meio dos instrumentos de origem hindu ou árabe, tão marcantes no Nordeste. Se "Revoada" é ritmada e lírica em seus toques ásperos e arcaicos, “acerados como gumes de faca-de-ponta”, tanto mais é "Repente". Esta evoca o Nordeste somente em sons e sem precisar articular uma palavra ou verso a tradição poético-musical dos repentistas de improvisarem estrofes criando-os no exato momento da apresentação. Desde 2021, o repente é considerado patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan. 

Típica obra do Movimento Armorial: "Pe. Cícero Romão (Tríptico)”,
óleo sobre aglomerado de Gilvan Samico, do mesmo ano do disco
“Padrinhos” musicais do movimento Armorial, o maestro carioca César Guerra-Peixe e o compositor e folclorista pernambucano Capiba são reverenciados. Guerra-Peixe com a faixa “Mourão”, de sua autoria, um baião embalado que o Brasil inteiro passou a conhecer melhor na trilha sonora do filme “O Auto da Compadecida”, de 2000 (e que acaba de ganhar uma continuação), que se inspira em seus acordes. Nome do cavalo típico do sertão, Mourão, além da evidente referência aos mouros pela cor da pele/pelagem crioula, dignifica, ainda, uma das alusões presentes no título do disco, o “galope”, estilo musical base das festividades juninas da região. 

Já Capiba tem semelhante destaque. O inventor de frevos clássicos da cultura de Pernambuco e protagonista do tradicional bloco carnavalesco Galo da Madrugada, também é lembrado por uma de suas principais peças: "Toada e Desafio", esta também da trilha de “O Auto...” – aliás, a música central do filme –, aqui lindamente executada pelo Quinteto Armorial. Mais um leque de conhecimentos empíricos trazidos à luz da música erudita: além do popular galope, agora merecem releituras a “toada”, cantiga de melodia simples e monótona entoada pelos vaqueiros nordestinos, e o “desafio”, duelo de versos improvisados surgido na Grécia antiga entre os pastores, reinventado na Idade Média e que veio parar no Brasil justo no Nordeste brasileiro, onde, como diz Luz Câmara Cascudo, “o combate assumiu asperidades homéricas”.

A força cultural nordestina dá ainda mais elementos a Madureira, que compõe a renascentista "Toada e Dobrado de Cavalhada", claramente dividida em duas partes: um lento introdutória e, na sequência, um allegro que acompanha o trote ligeiro da dança. Flautim e pífaro dialogando. Misto da música rural dos berberos marroquinos e os mouros dos séculos 12 e 13, ambos ligados pela religião. Vanguarda que surpreenderia até mesmo gente como a Penguin Cafe Orchestra, como a “desafinada” “Toré”, absolutamente moderna. 

E quando idealizam uma Idade Média brasileira para além dos livros de História, como em "Romance da Bela Infanta"? Tema amoroso ibérico do séc. XVI recriado nas cores monocórdicas dos instrumentos rústicos. Mas Madureira faz ainda melhor quando resgata o romance do próprio Nordeste! "Romance de Minervina", canção provavelmente datada do séc. XIX, que recria uma atmosfera provençal ao modo dos trópicos. É possível enxergar uma procissão pelos campos mediterrâneos e, ao mesmo tempo, a tristeza árida do sertão. Igualmente medievas são "Excelência”, tema nordestino de canto fúnebre, e “Bendita”, cântico de Zacarias à maneira dos Salmos que os romeiros entoam pelo itinerário do enterro.

Antônio Nóbrega, dono de reconhecida carreira solo e o de maior proeminência entre todos os músicos do grupo, já a época não ficava para trás. É dele "Ponteio Acutilado", moda forjada na tradição dos violeiros. É praticamente 1 min de solo de viola caipira para, a partir de então, todos os outros instrumentos entrarem e se harmonizarem como se sempre tivessem pertencido ao mesmo território geográfico. A outra dele é "Rasga", dissonante e introspectiva na primeira metade, mas que se encerra (e ao disco) com um “rasga ponteio” festivo.

Os ouvidos populares hoje são familiarizados com a sonoridade que o Quinteto Armorial ajudou a sintetizar. Basta notar a naturalização desses sons em produções populares inspiradas na obra de Suassuna e seus séquitos, como as incontáveis produções audiovisuais da TV Globo que emulam esse universo folclórico e onírico. Mal comparando, como fizeram os alemães da Kraftwerk ao “inventarem” os sons de computador que conhecemos hoje, criando uma espécie de “sonoplastia digital” que se tornou universal. Para com a sonoridade nordestina e, até por uma questão de proporção territorial bastante brasileira, no caso, o Quinteto Armorial cumpriu mais do que um papel esteticamente formal, mas, sim, musical e antropológico. 

O movimento ao qual o Quinteto Armorial muito bem representou não é um consenso entre as pessoas da cultura, mas é inegável a validade de sua proposta, reconhecida hoje nacionalmente, haja vista a rica exposição aos seus 50 anos, ocorrida em 2023, e também internacionalmente por artistas consagrados como o chinês Ai Weiwei. A ideia de valorização da cultura do Brasil que movimentos como este tentam suscitar de tempos em tempos, podem, mesmo com as controvérsias, serem vistas como potência. Uma potência policarpeana de tornar oficial a cultura ancestral. Como escreveu Lima Barreto em “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, personagem símbolo da luta por uma identidade brasileira: “O que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios”. Se depender desse pessoal, nenhum brasileiro jamais adoeceria por causa de síndrome de vira-latas.

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FAIXAS:
1. "Revoada" (Antônio José Madureira) - 3:44
2. "Romance da Bela Infanta" (Romance ibérico do Séc. XVI, recriado por Madureira) - :53
3. "Mourão" (César Guerra Peixe) - 1:50
4. "Toada e Desafio" (Capiba) - 4:26
5. "Ponteio Acutilado" (Antônio Carlos Nóbrega) - 4:32
6. "Repente" (Madureira) - 4:36
7. "Toré" (Madureira) - 2:59
8. "Excelência" (Tema nordestino de canto fúnebre, recriado por Madureira) - 3:02
9. "Bendito" (Egildo Vieira do Nascimento) - 4:23
10. "Toada e Dobrado de Cavalhada" (Madureira) - 4:52
11. "Romance de Minervina" (Romance nordestino, provavelmente do Séc. XIX, recriado por Madureira) - 1:33
12. "Rasga" (Nóbrega) - 4:48

🎵🎵🎵🎵🎵🎵🎵🎵🎵

OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues
Texto publicado originalmente no site AmaJazz

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

cotidianas #851 - "Dia 1"



Diferentemente de outras capitais maiores ou turísticas, Horto Feliz era uma metrópole de passagem que se esvaziava no final de ano. Bastava que chegasse pela metade de dezembro, que o fluxo migratório passava a se direcionar a outros estados (turísticos, em geral) ou, principalmente, para o litoral do próprio estado, a menos de 120 quilômetros, onde boa parte da população local mantinha casas de praia ou as locava para que outros gozassem as festas. No Natal, ainda se viam pessoas, pois o hábito bastante católico de passar esta data em casa com a família se mantinha em muitas delas, como a de Nei, cuja virada do 24 para o 25 foi com as filhas, a esposa e o filhão peludo Guilherme, um golden idoso.

E ficava ótimo curtir a cidade assim no Natal. Ruas desbloqueadas, trânsito civilizado, pouco movimento no supermercado, restaurantes frequentáveis. Um alívio a todos aqueles estímulos sensoriais constantes. A grosseria, o barulho, a histeria, a violência, até a mendicância haviam todos se mudado – mesmo que temporariamente. Nei não lembrava que a cidade ficava tão boa nessa época.

Porém, como é de praxe também, após a festividade natalícia, aí sim é que a cidade esvazia de verdade.

E esvaziou.

Havia ainda uma pessoa que outra a pé nas ruas. Carros, muito de vez em quando. O comércio, a maioria fechado: em recesso ou em férias coletivas. Todos merecem descanso, pois trabalharam o ano todo, pensava. Nas descidas do apartamento para as necessidades do Guilherme, foi raro encontrar algum vizinho fazendo o mesmo. Uma, duas, três, quatro vezes - e fosse pela manhã, tarde ou noite, independia. Tudo muito vazio, inóspito, silencioso, até inseguro. Nei arrepiou-se.

No fundo, ele entendia tamanho deslocamento. Havia um sentimento no ar de aproveitar o melhor possível os feriadões do final de ano, pois aquele tinha sido especialmente difícil para todo o Estado. Uma grave tragédia climática se abatera sobre o lugar meses antes, matando gente, desalojando milhares, provocando perdas irreparáveis. Recuperar-se disso demandou muita força de vontade e resiliência da população. Concluir o ano, então, tornou-se o primeiro e imediato alívio para mentes e corações ainda abalados com a calamidade. Era compreensível que a maioria quisesse passar os bons momentos da virada longe de onde sofreram tanto, já que, inevitavelmente, haveriam de voltar depois para as próprias casas (os que não as perderam na tragédia, claro).

Nei e sua família só não acompanharam o fluxo da massa porque, justo por conta do aquecimento imobiliário no litoral, amigos haviam alugado sua confortável casa de praia para a temporada. Então, resolveram de comum acordo ficarem na evacuada Horto Feliz. Mas conforme se aproximava do dia 31, mais ermo ficava. Menos gente se via. Aliás, mais ninguém. Casas mudas, janelas fechadas, trânsito zero. Estranho... Todo ano, o povo se mudava para outros lugares no Ano Novo, isso era comum. Mas desta vez, estava diferente. Algo radical e misterioso parecia estar acontecendo. Nei e os seus não quiseram pagar pra ver: valeram-se do que tinham na dispensa, passaram a tranca na porta e se enclausuraram dentro de casa. Temerosos.

Não bastasse todo este clima, horas antes de escurecer a luz falta. Pouco depois, a água que é cortada. Aflita, a esposa buscava falar com amigas e parentes, mas em todos os casos aparecia apenas um risquinho cinza da mensagem do whats. Nem leram. A melhor amiga, em viagem à Europa, fora o fuso-horário, tinha mais com o que se ocupar, e os parentes, naquele frenesi de filas e engarrafamento da praia, deviam estar muito mais ocupados com a própria irritação. Largou o celular. A filha mais velha, no entanto, realmente estranhou a incomunicabilidade quando tentou acessar as redes sociais e percebeu que estavam sem sinal. Nei, da velha geração, achou que conseguiria resolver a falta de notícias através do radinho de pilha guardado na dispensa. O aparelho, aliás, funcionou, mas a sintonia das rádios emitia apenas um angustiante zunido.

Nem precisa dizer que aquela foi a mais desagradável virada de ano de suas vidas. No escuro, socados em casa, com medo e no silêncio. Nem os fogos de artifício espocaram no céu, para sorte de Guilherme, que desta vez se livrou dos desesperadores barulhos de bomba. Não houve contagem regressiva, espumante, cumprimento, Feliz Ano Novo, selfie e nem abraços. O negócio era dormirem algumas horas para, quando o sol raiasse, tomarem juntos alguma providência.

Já de manhãzinha, desceram as escadas cuidadosos em direção à porta de saída, mas sem qualquer ameaça (ou esperança) ao redor, tendo em vista que nenhum vizinho se encontrava no bloco. Nem em todo o condomínio. Sob o olhar julgador dos filhos e da esposa, Nei avisou que não seria possível pegarem o carro, porque não havia abastecido o suficiente para uma viagem maior na crença de que, em alguma saída boba ao mercado, passaria num posto e reporia o tanque. Teriam que ir a pé.

Em grupo, quase colados, mas ligeiros, andaram pelo bairro o qual raramente acessavam a pé, olhando para os lados, tão admirados pelo o que não conheciam do que pela inação a qual presenciavam. Um silêncio assustador abrandado apenas pelo barulho do vento na vegetação e pelo canto dos pássaros, que podiam cantar livremente sem competirem com o ruído da urbe.

A esposa mandava os filhos não se distanciarem. A marcha era forte, principalmente para as pernas mais curtas do menor. Precisavam chegar em algum lugar. Cruzaram com uma árvore em frente a um prédio em que as luzinhas de Natal tocavam um antes inaudível Jingle Bells já desafinando em razão das pilhas gastas. Foi quando ouviram, de repente, o som de um veículo se aproximando. Uma caminhonete de vidros insulfilmados, que dobrou a rua cantando pneu e saiu em alta velocidade até sumir no horizonte em segundos. Eles, que acharam por alguns instantes terem retornado à civilização, se entreolharam desiludidos e sem se dirigirem palavras. Depois disso, mais nenhum sinal de vida por qualquer lado que olhassem. Tudo havia parado de fato. Nenhuma viva-alma sequer vista em quarteirões. Deserto.

Horto Feliz tinha se tornado uma cidade-fantasma.

Como Nei desconfiou, todos os postos de gasolinas que avistaram no caminho restavam abandonados: nem frentista, nem carros e nem energia. A cena calamitosa, ao menos, lhe amenizou um pouco a culpa por não poder pegar o carro e evitar aquela situação para todos, que caminhavam assustados e apressados para chegar sabe-se lá onde.

Carregando no colo Guilherme – cujas articulações gastas não o permitiam mais andar tanta distância – Nei, embora ofegante, indagava-se mentalmente: “Será que lá no litoral as pessoas estão felizes?” “Será que, realmente, estão TODOS lá?” “Terão gostado tanto de lá, que não pensem mais em voltar?” “Será que os encontraremos quando chegarmos, se chegarmos?” Outras inquietações, inclusive, lhe ocorriam: "Como ficará nosso apartamento, nossas coisas, o trabalho, a escola das crianças?!" "Teremos chance de... recomeçar?..."

Nei apressava o passo e cobrava com a voz trêmula de pavor que os outros o fizessem também. A noite começava a cair, e na estrada não era nada recomendável que andassem no escuro. A madrugada os esperava, contudo. Era inevitável. Quem sabe, após resistirem à noite, o dia 2 guardasse uma boa novidade.

 

Daniel Rodrigues


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Lançamento do livro "Chapa Quente" - 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Espaço Força & Luz (16/11/24)



O autor e a obra prontos
para uma tarde inesquecível
na Feira do Livro
Demorou, mas foi com requintes de especialidade. Meu livro “Chapa Quente”, meu primeiro individual de contos, foi selecionado no segundo semestre de 2023 na chamada de originais aberta pela editora Caravana e entrou em pré-venda em dezembro do mesmo ano. Já com exemplares em mãos, a ideia era fazer algum encontro para lançá-lo oficialmente que não só pela internet. Reunir os amigos, apresentar a obra, autografar, celebrar. Deixei passar os meses de férias, janeiro e fevereiro, inadequados para este tipo de ocasião. Março, quando o ano começa de fato, passou voando e abril tirei para adoráveis férias no Rio de Janeiro. 

Ocorre que, ao retornar ao Rio Grande do Sul, o caos se instaurou. As chuvas e as enchentes, que castigaram o estado por mais de um mês, não só impediram que este lançamento se desse no retorno das férias como alteraram toda a agenda prevista para o resto do ano. Porém, que bom que Porto Alegre, tão frágil em vários aspectos, tem uma consistente Feira do Livro. E a 70ª edição foi o ambiente perfeito para que, enfim, pudesse por “Chapa Quente” em evidência e dividir isso como amigos, familiares e leitores.

Não poderia ser diferente para um livro com esse título. Num quente sábado de novembro, foi ainda mais especial sentir o calor do afeito daqueles que presenciaram, primeiro, o bate-papo com a escritora Simone Saueressig na sala O Retrato do Espaço Força & Luz, por acaso coordenada com carinho por Leocádia. Leitora atenta (coisa dos bons escritores), Simone conduziu a conversa de forma muito inteligente e amistosa, abordando em seus comentários e perguntas direcionadas a mim aspectos de cada um dos contos, de forma que foi possível, assim, dar um 360 na obra.

Logo em seguida, corremos todos para a sessão de autógrafos em plena Praça da Alfândega, no meio do povo, ocasião em que pude, sob as lentes sempre atentas da hermana Carolina Costa, conversar melhor tanto com os que presenciaram o bate-papo quanto com os que foram para o autógrafo ou, simplesmente, confraternizar. Uma tarde quente, mas não só do sol: quente de afetos. As fotos não deixam mentir.

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E começa o bate-papo

Simone lê trecho de "Chapa Quente"

Público atento

Argumentando...

... e trocando ideia

Com Leocádia, que nos recebeu e assistiu
carinhosamente na sala O Retrato

Com o primo Leandro Leão já na sessão de autógrafos

A amiga Viviane, que também prestigiou o bate-papo

O querido casal Roberto e Júlia: biautógrafo

Batendo um papo com os sempre presetnes amigos Lisi e Rodrigo

Colega de Accirs, a querida professora Fatimarlei Lunardelli

Amigo de infância, professor Nilson Araújo e a esposa Carol

Preparando mais um autógrafo

Queridos Guilherme e Camila

Um abração na parceira de bate-papo e
das letras Simone Saueressig

Amigo Otávio Silva

Primo Luis Ventura foi de muleta e tudo

Hermanos na expectativa...

Com eles no último autógrafo da fila



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Carolina Costa, Luis Ventura
Marjorie Machado/Câmara Riograndense do Livro

sábado, 2 de novembro de 2024

Drops lançamento livro "Chapa Quente" - 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Espaço Força & Luz

 

Já tem data o lançamento oficial do novo livro do coeditor do nosso blog, o escritor e jornalista Daniel Rodrigues, “Chapa Quente” (ed. Caravana Editorial). Será durante a celebrada Feira do Livro de Porto Alegre, que abriu no dia de ontem para sua gloriosa 70ª edição, no dia 16 de novembro, e contará com duas programações. Primeiro, às 15h, na sala O Retrato do Espaço Força e Luz, ocorre um bate-papo do autor com a escritora convidada e amiga Simone Saueressig. Logo em seguida, às 16h, é a vez de Daniel autografar a obra na Praça de Autógrafos da Feira do Livro, na Praça da Alfândega.

Primeiro individual de contos de Daniel, “Chapa Quente” é composto por uma reunião de cinco histórias e foi selecionado em concurso realizado pela editora Caravana Editorial em 2023, resultando resultado da experiência de mais de 10 anos de Daniel Rodrigues como contista, o qual já participou de diversas antologias coletivas. Além destas obras, também é autor de “Anarquia na Passarela – A influência do movimento punk nas coleções de moda”, livro pelo qual venceu o Prêmio Açorianos de Literatura 2013, na categoria Ensaio e Humanidades. Pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, também assina artigo no livro “50 Olhares daCrítica Sobre o Cinema Gaúcho”, editado pela ACCIRS em 2022.

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Lançamento livro “Chapa Quente”
Onde: 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Centro Cultural CEEE Espaço Força & Luiz (R. dos Andradas, 1223, sala O Retrato)

Quando: 16 de novembro
15h: Bate-papo do autor com a escritora Simone Saueressig
16h: Sessão de autógrafos (Praça dos Autógrafos, Praça da Alfândega)