E ficava ótimo curtir a cidade assim no Natal. Ruas
desbloqueadas, trânsito civilizado, pouco movimento no supermercado,
restaurantes frequentáveis. Um alívio a todos aqueles estímulos sensoriais
constantes. A grosseria, o barulho, a histeria, a violência, até a mendicância
haviam todos se mudado – mesmo que temporariamente. Nei não lembrava que a
cidade ficava tão boa nessa época.
Porém, como é de praxe também, após a festividade natalícia,
aí sim é que a cidade esvazia de verdade.
E esvaziou.
Havia ainda uma pessoa que outra a pé nas ruas. Carros,
muito de vez em quando. O comércio, a maioria fechado: em recesso ou em férias
coletivas. Todos merecem descanso, pois trabalharam o ano todo, pensava. Nas
descidas do apartamento para as necessidades do Guilherme, foi raro encontrar
algum vizinho fazendo o mesmo. Uma, duas, três, quatro vezes - e fosse pela
manhã, tarde ou noite, independia. Tudo muito vazio, inóspito, silencioso, até
inseguro. Nei arrepiou-se.
No fundo, ele entendia tamanho deslocamento. Havia um
sentimento no ar de aproveitar o melhor possível os feriadões do final de ano,
pois aquele tinha sido especialmente difícil para todo o Estado. Uma grave
tragédia climática se abatera sobre o lugar meses antes, matando gente, desalojando
milhares, provocando perdas irreparáveis. Recuperar-se disso demandou muita
força de vontade e resiliência da população. Concluir o ano, então, tornou-se o
primeiro e imediato alívio para mentes e corações ainda abalados com a calamidade.
Era compreensível que a maioria quisesse passar os bons momentos da virada
longe de onde sofreram tanto, já que, inevitavelmente, haveriam de voltar
depois para as próprias casas (os que não as perderam na tragédia, claro).
Nei e sua família só não acompanharam o fluxo da massa
porque, justo por conta do aquecimento imobiliário no litoral, amigos haviam
alugado sua confortável casa de praia para a temporada. Então, resolveram de
comum acordo ficarem na evacuada Horto Feliz. Mas conforme se aproximava do dia
31, mais ermo ficava. Menos gente se via. Aliás, mais ninguém. Casas mudas,
janelas fechadas, trânsito zero. Estranho... Todo ano, o povo se mudava para
outros lugares no Ano Novo, isso era comum. Mas desta vez, estava diferente.
Algo radical e misterioso parecia estar acontecendo. Nei e os seus não quiseram
pagar pra ver: valeram-se do que tinham na dispensa, passaram a tranca na porta
e se enclausuraram dentro de casa. Temerosos.
Nem precisa dizer que aquela foi a mais desagradável virada
de ano de suas vidas. No escuro, socados em casa, com medo e no silêncio. Nem
os fogos de artifício espocaram no céu, para sorte de Guilherme, que desta vez
se livrou dos desesperadores barulhos de bomba. Não houve contagem regressiva, espumante,
cumprimento, Feliz Ano Novo, selfie e nem abraços. O negócio era dormirem
algumas horas para, quando o sol raiasse, tomarem juntos alguma providência.
Já de manhãzinha, desceram as escadas cuidadosos em direção à porta de saída,
mas sem qualquer ameaça (ou esperança) ao redor, tendo em vista que nenhum
vizinho se encontrava no bloco. Nem em todo o condomínio. Sob o olhar julgador
dos filhos e da esposa, Nei avisou que não seria possível pegarem o carro, porque
não havia abastecido o suficiente para uma viagem maior na crença de que, em
alguma saída boba ao mercado, passaria num posto e reporia o tanque. Teriam que
ir a pé.
Em grupo, quase colados, mas ligeiros, andaram pelo bairro o
qual raramente acessavam a pé, olhando para os lados, tão admirados pelo o que
não conheciam do que pela inação a qual presenciavam. Um silêncio assustador abrandado
apenas pelo barulho do vento na vegetação e pelo canto dos pássaros, que podiam cantar livremente sem competirem com
o ruído da urbe.
A esposa mandava os filhos não se distanciarem. A marcha era
forte, principalmente para as pernas mais curtas do menor. Precisavam chegar em
algum lugar. Cruzaram com uma árvore em frente a um prédio em que as luzinhas
de Natal tocavam um antes inaudível Jingle Bells já desafinando em razão das
pilhas gastas. Foi quando ouviram, de repente, o som de um veículo se
aproximando. Uma caminhonete de vidros insulfilmados, que dobrou a rua cantando
pneu e saiu em alta velocidade até sumir no horizonte em segundos. Eles, que acharam
por alguns instantes terem retornado à civilização, se entreolharam desiludidos
e sem se dirigirem palavras. Depois disso, mais nenhum sinal de vida por
qualquer lado que olhassem. Tudo havia parado de fato. Nenhuma viva-alma sequer
vista em quarteirões. Deserto.
Horto Feliz tinha se tornado uma cidade-fantasma.
Como Nei desconfiou, todos os postos de gasolinas que
avistaram no caminho restavam abandonados: nem frentista, nem carros e nem
energia. A cena calamitosa, ao menos, lhe amenizou um pouco a culpa por não poder
pegar o carro e evitar aquela situação para todos, que caminhavam assustados e
apressados para chegar sabe-se lá onde.
Carregando no colo Guilherme – cujas articulações gastas não o permitiam mais andar tanta distância – Nei, embora ofegante, indagava-se mentalmente: “Será que lá no litoral as pessoas estão felizes?” “Será que, realmente, estão TODOS lá?” “Terão gostado tanto de lá, que não pensem mais em voltar?” “Será que os encontraremos quando chegarmos, se chegarmos?” Outras inquietações, inclusive, lhe ocorriam: "Como ficará nosso apartamento, nossas coisas, o trabalho, a escola das crianças?!" "Teremos chance de... recomeçar?..."
Nei apressava o passo e cobrava com a voz trêmula de pavor
que os outros o fizessem também. A noite começava a cair, e na estrada não era
nada recomendável que andassem no escuro. A madrugada os esperava, contudo. Era
inevitável. Quem sabe, após resistirem à noite, o dia 2 guardasse uma boa
novidade.