"Enfio a ficha no buraco
e dou um chute só para incomodar"
da letra de "One Player"
Meu amigo Cly Reis me pediu para escrever sobre um disco que eu considere muito bom, importante e marcante, uma obra-prima. Pensando bem ele não disse nada disso, apenas pediu que eu escrevesse alguma coisa sobre algum disco. Eu é que fiquei tentando, escolher um puta disco, um disco super-cabeça, algo que mostrasse como é vasto o meu conhecimento musical e como eu tenho bom gosto. Como um músico vaidoso que insiste em enfiar demonstrações de habilidade técnica em canções que ficariam bem melhores com algo mais simples eu tentei usar o disco como pretexto para escrever sobre mim mesmo e pelo jeito foi o que eu acabei fazendo. Passei meses rejeitando os candidatos. Nenhum disco era bom o suficiente. Sempre tinha algum defeito. Um era mal produzido, outro tinha letras bobas, outro tinha solos demais, outro tinha solos de menos, e assim vai. Em nome de impressionar o Cly e os leitores do ClyBlog eu percorri em vão catálogos e prateleiras. Como Diógenes com uma lamparina na mão em busca de um homem honesto. Honesto! Aí estava minha resposta. Diógenes não procurava o homem mais inteligente, o mais bonito ou bem sucedido, ele queria encontrar um homem honesto. A resposta atingiu minha cabeça como uma jaca madura, o disco mais honesto que eu mais gosto é, sem a menor dúvida, o primeiro disco d'Os Replicantes, "O Futuro é Vortex". É um disco punk de verdade, nu e cru. O fato dos músicos não usarem coturnos, moicanos, pregos ou tachinhas o faz ainda mais autêntico. Naquele tempo não faltavam almofadinhas fantasiados de punk. Numa década de cocôs lustrados e lapidados, de obras sem o menor conteúdo mas de acabamento e produção impecáveis Os Replicantes eram uma grata surpresa. "O Futuro é Vortex" não tem frescuras, não faz prisioneiros e ao mesmo tempo não tem ofensas gratuitas. Não é uma tentativa de chocar ou insultar ninguém, é o trabalho de uma banda botando para fora as angústias, a revolta e as frustrações de muitos jovens que viviam na Porto Alegre dos anos oitenta. A Guerra Fria e a sombra da possibilidade de um holocausto nuclear ainda pairava sobre hippies, punks, surfistas, boys do subterrâneo, rajneeshs, motéis de esquina, censores e mulheres enrustidas. O mundo era dos yuppies, do overnight, da cocaína e só nos cabia assistir e torcer pelo plano cruzado que tinha que dar certo e obviamente não deu. "Enfio a ficha no buraco e dou um chute só para incomodar" resume bem a minha adolescência ou até talvez toda a minha existência. Totalmente submisso ao sistema e gastando a mesada em uma máquina de aventuras ilusórias O chute não é mais que uma simbólica e inútil revolta. Se o disco tivesse sido tocado, gravado e produzido de uma forma mais cuidadosa perderia todo seu sentido. Punk tem que ser podre, com cheiro de sarjeta e cola de sapateiro.
por Rodrigo Lemos
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FAIXAS:
- "Boy do Subterrâneo" (Carlos Gerbase, Heron Heinz) – 2:22
- "Surfista Calhorda" (Carlos, Heron) – 3:30
- "Hippie-Punk-Rajneesh" (Carlos, Heron) – 2:43
- "One Player" (Carlos, Cláudio Heinz) – 2:43
- "A Verdadeira Corrida Espacial" (Carlos, Cláudio) – 2:24
- "O Futuro é Vortex" (Carlos, Heron) – 2:17
- "Choque" (Carlos, Heron) – 3:03
- "Ele Quer Ser Punk" (Carlos, Cláudio) – 2:06
- "Motel da Esquina" (Cláudio) – 2:24
- "Mulher Enrustida" (Cláudio, Heron) – 0:52
- "Hardcore" (Carlos, Heron) – 2:20
- "O Banco" (Heron, Luciana Tomasi) – 2:19
- "Censor" (Carlos, Heron) – 2:01
- "Porque Não" (Carlos, Cláudio, Heron) – 1:14
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Ouça:
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Rodrigo Lemos é músico nascido em Porto Alegre e residindo atualmente em Londres, na Inglaterra, onde é professor de música.
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