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sábado, 3 de novembro de 2018

"Contos de Machado de Assis, volume 3 - Filosofia", organização João Cezar de Castro Rocha - ed. Record (2008)



Certa vez, há alguns anos atrás, vi em um especial da antiga TVE sobre Machado de Assis, um escritor. que infelizmente não lembro do nome mas, pelo que me recordo, era integrante da Academia Brasileira de Letras, revelando que sempre lia pelo menos uma obra de Machado de Assis por ano, o que segundo ele era bom para "purificar a língua". Percebi, naquele momento que vinha até então, nos últimos anos, sem querer, seguindo a recomendação daquele velhinho simpático bom sabedor do assunto das letras. Como comecei a apreciar tarde, por pirraça de adolescente, a obra do Bruxo do Cosme Velho, fiquei atrasado me algumas leituras e só fui, ao longo dos anos, as repondo e aí, com um misto de prazer e remorso de não ter começado antes a desfrutar daquelas bençãos para a alma em forma de livros. Hoje já tendo devidamente atualizada a bibliografia básica de romances e antologias, já tendo descoberto textos remotos, contos inéditos e crônicas raras, satisfazia-me de vez em quando com algum releitura, por sinal não menos prazerosa e válida do que na primeira leitura. Contudo, a carência de ineditismo e a fila de leituras que acumulamos, normalmente maior que a nossa capacidade de atendê-las, fez com que minha frequência machadiana fosse interrompida. Havia deixado de ler um Machado por ano, pelo menos nestes últimos quatro ou cinco que se passaram. 
No entanto, a curiosidade por um objeto constante, de uma forma ou de outra, na obra do autor fez com que eu retomasse sua leitura recentemente. Uma coleção da editora Record propunha-se a compilar contos de Machado de Assis por tema, sendo um dedicado a Música e Literatura, outro a Adultério e Ciúme, outro a Dissimulação e Vaidade, outro a Política e Escravidão, outro à Desrazão e outro ainda à Filosofia, sendo este o que veio a interessar-me efetivamente levando em conta suas considerações sempre ponderadas, pertinentes e sobretudo filosóficas muitas vezes escondidas em fatos aparentemente banais ou em falas e pensamentos de seus personagens. 
Conhecia alguns contos presentes na coletânea organizada por João Cezar Castro da Rocha, mas devo dizer que, embora tivesse já uma expectativa muito positiva em relação a um apanhado suscitando tal temática, fiquei positivamente surpreso pela escolha do material e com a disposição daqueles contos assim, juntos numa publicação sob esta óptica, potencializando suas qualidades.
O leitor acostumado ao cotidiano carioca de damas e cavalheiros circulando por Santa Tereza, Botafogo ou pela Rua do Ouvidor, deve ficar um pouco surpreso, como fiquei com a variedade de situações, temas, possibilidades e até linguagem que compõe a feliz coletânea do organizador. Entre literatura fantástica, fábulas, peças e outras variantes literárias, a filosofia está sempre presente. Às vezes ela é escancarada e explícita como, por exemplo, na maravilhosa "Filosofia de um para de botas", em que, sim, dois pares de coturnos abandonados na Praia de Santa Luzia repassam suas existências e o sentido de suas "vidas". "Ora pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.", convida a Bota Esquerda introduzindo a conversa que as faz mergulhar em lembranças e reflexões. Em outras vezes a filosofia, no entanto se faz presente de uma maneira muito sutil como no sagaz "Questões de Maridos", que trata sobre o gosto, a preferência, sobre o que venha a ser bom para um mas não para outro, independente de suas virtudes ou defeitos. "O subjetivo... o subjetivo...", como conclui brilhantemente o conto. Em outras, ainda, vai a temas cujas próprias abordagens não conseguiriam escapar de uma análise neste sentido como o tempo, por exemplo, que carrega inevitavelmente toda uma rica e farta filosofia, e no qual se encaixam contos como "Entre duas datas", "Como se inventaram os almanaques" e "Eterno". " 'Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...' Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito.", observa o autor com rara sensibilidade e com um humor corrosivo no excelente conto "Papéis velhos" que também trata do assunto.
O autor flerta com o fantástico em contos como "Eterno" e "O Segredo do Bonzo"; com o teatro mitológico em "Viver!"; reescreve um capítulo da Bíblia em "Na Arca - Três capítulos inéditos do Gênesis"; cria as tábuas do demônio num formato pouco usual, listado", em "O sermão do Diabo"; e dá vida e pensamento a um alfinete no divertido "História comum". "Contos de Machado de Assis, volume 3 - Filosofia" não cumpriu meramente o papel de preencher minha cota machadiana, mas sim, instigou, excitou, renovou, satisfez um leitor que precisava voltar  a conviver com a arte e maestria do maior escritor brasileiro de todos os tempos.
A língua está purificada, novamente.



Cly Reis

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