O bom senso jornalístico sugere que se use com muita parcimônia o termo “gênio” para classificar alguém. A explicação é bem lógica, como ironizou certa vez Ariano Suassuna: se for empregar o adjetivo a alguém como Chimbinha – tal como irresponsavelmente o fizeram para com o apenas esforçado guitarrista de brega music brasileiro –, o que resta para um Mozart ou
Shakespeare? Raras são as personalidades na humanidade que atingiram esse status e que, por consenso, podem ser tidas de geniais. Caso de
Jean-Michel Basquiat (1960-1988), o artista visual nova-iorquino que, em seus meteóricos 27 anos de vida, edificou uma obra gigantesca em quantidade e simbologias, assemelhando-se, a seu modo, a outros gênios das artes visuais como Michelangelo,
Picasso ou
Cézanne. Um pouco de sua extensa e marcante obra pude conferir, juntamente com
Leocádia Costa e
Cly Reis, na exposição de retrospectiva no
CCBB do Rio de Janeiro.
Duas coisas me impressionaram sobremaneira na mostra, até pelas lógicas praticamente antagônicas de ambas, mas, justamente, oriundas da mesma natureza: a brutal naturalidade com que Basquiat criava sua arte, quase instintiva e sem travas, e, ao mesmo tempo, uma igualmente brutal força interna, esta, capaz de transformar o natural aparentemente banal em algo grandioso, acima da média. Motivações grandiosas, como a crítica à Igreja ou a condição do negro norte-americano, dividem espaço com temas aparentemente vulgares, como personagens de desenho animado, produtos descartáveis e “rabiscos” infantis “despretensiosos” (“Tiranossaurus”, “A House Build by Frank Lloyd Wright for his Son“), Mas que, de modo feroz, expressam a mais profunda intenção artística. Há, por exemplo, quadros inteiros com apenas o uma frase escrita, como em “A Shadow in his Space”. E é de encher os olhos.
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A brutal simplicidade do traço da criança |
Basquiat era muitos e ao mesmo tempo uno. Como outros gênios, incorporou as ondas e tensões de sua época e as traduziu em arte. Sua obra personifica o caráter de Nova York nos anos 1970/80, quando a mistura de empolgação e decadência criou um espaço importante de criatividade. Estava tudo no ar: a Guerra Fria, a questão dos negros e dos imigrantes, a cultura pop, as ditaduras sangrentas na África e América, a era Reagen/Tatcher, o rap enquanto música de protesto e de reelaboração da cultura negra, a publicidade dos anos
yuppie, a tradição da arte clássica e o desmonte desta pela arte moderna. Tudo estava em Basquiat, à flor da pele, a cada jato de spray, a cada pincelada, a cada borrão, a cada palavra escrita ou rasurada, a cada ironia ou protesto. A intensidade do traço, compulsão expressiva, a obsessiva reelaboração da ideia – peculiar de uma mente inquieta e criativa –, o uso instintivo da palheta cromática, as camadas ora de tinta, ora de colagens ou mesmo do suporte da tela, bem como os escritos poéticos e multilíngues e as figuras cadavéricas e não menos constrangidas pela vida.
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A Mesquita, de 1982, multiplicidade de técnicas e de signos |
Tudo é de um impacto tamanho, que se demora a elaborar internamente.
Estou fazendo isso até agora. Não sei com que grau de maldade, discriminação ou simples ignorância veículos de imprensa noticiaram esta mesma mostra, quando ocorrida em São Paulo, no início do ano, classificando Basquiat como “grafiteiro”. Basta apreciar algumas das 80 quadros, desenhos e gravuras expostos para perceber o quão desrespeitoso se é ao reduzi-lo como se fosse um mero vândalo urbano. A quantidade de técnicas e suportes que se utilizava para montar uma obra eram extremante variados, indo das mais tradicionais, como a pintura a óleo ou acrílica, a outras mais pop e adequadas à sua realidade, como colagem, tinta spray, xerox ou serigrafia. “A Mesquita” (1982), “Coelho Vermelho” (1982) e “Bracco di Ferro” (1983).
Igualmente, impressiona o domínio de Basquiat do desenho. Mesmo sem uma formação tradicional, como se “exige” de artistas visuais para serem aceitos no metiê, Basquiat não apenas suplantou isso pela qualidade como, inovador, adicionou-lhe elementos estéticos e simbólicos ao que se convencionou chamar de neoexpressionismo. Há momentos em que na sua obsessão pela estrutura humana, vista nas repetições de esqueletos e ossos (dos negros como ele, segundo ressaltava o próprio) e nas figurações distorcidas, há traços tão elegantes quanto um Picasso de "As senhoritas de Avignon" ou dos cartazes publicitários de Tholouse-Lautrec, ambas as referências do início do século XX. Mais atual, porém anterior a Basquiat, o alemão
Joseph Beuys, de quem comungava do mesmo sarcasmo e olhar crítico, e
Andy Wahrol, também uma forte inspiração, tanto que motivou a ambos amigarem-se e a trabalharem juntos na segunda metade dos anos 80, produzindo quadros brilhantes – embora a crítica, ignorante, tenha virado a cara à época. Na sala especialmente reservada a esta fase, podem ser vistas obras em que o talento de um não se sobressai ao do outro, impulsionando-se mutuamente. A serigrafia e o traço elegante de Wahrol – algo que ele não fazia desde os anos 60 – convive com as intervenções espontâneas de Basquiat.
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Rosto cujos traços lembram Picasso primitivo |
A sensação que se sai de uma exposição tão rica e instigante como esta é que qualquer um pode expressar-se artisticamente – ainda mais a quem, como nós três, têm facilidade no traço .
“Por que não nos aventuramos mais na pintura, no desenho?” Saímos nos questionando. Por outro lado, a percepção de que, independente do que fizermos, jamais atingiremos o que um Basquiat produziu, e essa é um sentimento de profunda admiração e gratidão. No caso dele, o fato de ter sido um totem de motivações histórico-sociais, que introjetou e reelaborou as tensões do seu tempo, não explicam na totalidade o porquê da qualidade daquilo que legou. Afinal, para se tornar um ícone não basta apenas a atribuição externa: tem que ser intimamente capaz disso. E Basquiat o foi, mesmo que inconscientemente. Mais do que isso, Basquiat foi aquilo que explica tudo o que se viu: um gênio. Assim mesmo, adjetivo superlativo.
Confira um apanhado de algumas das obras expostas de "Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi":
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"Braccio di Ferro", impressionante e sua complexidade |
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"Elefante Rosa com Caminhão de Bombeiros", de 1984, das melhores |
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Peça com a assinatura estilística de Basquiat |
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Frank Lloyd Wright ficaria orgulhoso de seu filho |
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Foto de uma das intervenções assinadas como SAMO na NY do final dos 70 |
"Coelho Vermelho", das peças mais impactantes da mostra
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A construção fragmentada dos quadrinhos e da televisão em "Old Cars", de 1981 |
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Detalhe de "Old Cars" |
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Díptico de duas das principais referências de Basquiat, o negro e a músico dos negros |
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"Cantor", de 1980-85, lápis de cor e crayon sobre papel |
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Música da Cabeça versão Basquiat |
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"Moisés Jovem", outro soco tomado de sagacidade e bom-humor |
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Detalhe de "Quatro Grandes", de 1982, religiosidade, sexo e ídolos |
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Basquiat e Wahrol, união de talentos dialogando numa linguagem ultramoderna |
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"Ovos", de 1986, Wahrol, com seu inconfundível traço, voltando a pintar depois de 20 anos por causa do amigo |
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Precisa mais que isso para ser arte? |
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"Natchez", profusão e sobreposições que remetem à multitela, profetizando a era do mobile |
Detalhe de "Natchez" com os escritos repetidamente obsessivos do artista
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"Fifty Nine Cents" (1983), acrílico sobre tema, a influência da publicidade e a ironia ao capitalismo |
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Cly e eu tentando desvendar a lógica deste "Xadrez" tão fora dos padrões |
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Convivência da elegância do traço no rosto abaixo e da inquietude logo acima |
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Ironia metalinguística na era dos fakes: de Basquiat falsificando a si próprio |
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As raízes africanas expostas em cores e símbolos na obra do final de carreira |
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Admiração e espanto de quem vê um Basquiat ao vivo que chega a dar um passo pra trás ("Sem Título", 1981) |
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As impressionantes cerâmicas desenhadas com caneta de tinta permanente |
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O coração jazzístico de Basquiat |
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Quem não enxerga aí crítica à Igreja e à condição do negro não entendeu nada |
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Obra que nos leva a questionar, por que não fazer a própria arte? |
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Cultura pop, religião, violência, ecologia e capitalismo: caldeirão ideológico |
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Mais uma vez a influência da publicidade e da sociedade de consumo |
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Pura genialidade em "Ciclista", de 1984, das mais poéticas da mostra |
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"Venus 2000 B.C.", de 1982, simplicidade genial que se conecta ao alemão Joseph Beuys |
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Colagem, spray, óleo, pintura: várias técnicas de Basquiat sobre suas figuras geralmente cadavéricas |
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Merece até um abraço por tamanho assombro que causa |
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A referência aos HQs e o universo dos super-heróis de "Il Flash" (1984) atraiu a criançada presente no CCBB |
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Absorvendo a paulada desta obra até agora... |
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Das obras do final da carreira nos fez questionar: onde iria parar a arte Basquiat se vivo? |
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Os cabelos de Basquiat e meus |
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa
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exposição "Jean-Michel Basquiat:
Obras da Coleção Mugrabi"
local: Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro
endereço:Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
visitação: de quarta a segunda, das 9h às 21 horas.
período: até 7/01/2019
entrada: gratuita
Excelente, Daniel! Teu texto e a felicíssima escolha de fotos renova agora, na tela do computador, as sensações de ter visto essas maravilhas in loco.
ResponderExcluirPerfeito!