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domingo, 29 de setembro de 2019

cotidianas #649 - Perto da Morte


O cemitério. Era sempre a primeira coisa que via ao abrir a janela pela manhã. Maldita vista. Se pudesse sairia dali, se mudava daquela casa, daquele lugar, daquele fim de mundo. Mas herdara aquela casa dos pais, que agora, por sinal, descansavam eternamente, exatamente naquele terreno vizinho, e no momento não tinha condições de ter coisa melhor. O que ganhava na fábrica mal dava para comer, quanto mais pra mudar de casa. Por falar nisso, era melhor se mexer se não ia acabar se atrasando. O ônibus passava exatamente às sete na estrada nova. Era o progresso chegando por aquelas bandas. Naquele lugar que praticamente se resumia à rua principal, à igreja, à prefeitura, à rua de trás, que era a que morava, e ao famigerado cemitério. Agora até estrada tinha. Não era bem dentro da cidade. Tinha que caminhar uns vinte minutos, mas pelo menos era melhor que antes quando, para chegar na fábrica, era no lombo de burro, na combi do seu Artêmio ou a pé, mesmo. Por isso mesmo era bom se apressar. Não queria reviver os velhos tempos e ir apertado naquela combi caindo aos pedaços. Se perdesse esse, o próximo ônibus era só às nove e aí já estaria muito muito atrasado. Não queria se atrasar de novo. O supervisor já andava pegando no seu pé e não era bom arriscar perder um emprego, ainda mais nos dias de hoje. Mal dava pra comer, não lhe permitia sair daquele buraco, como gostaria, mas era o que tinha.
O ponto do ônibus ficava a uns vinte minutos a pé dali. Era café, escovar dentes, uma roupa por cima e meter o pé. Teria que apertar o passo. Vinte minutos caminhando pra chegar até a parada do ônibus e depois ainda mais uma hora até aquela fábrica pra ainda aguentar desaforo de supervisor e ganhar uma miséria. Aquilo não era vida. Aquela casa, aquele cemitério, aquele cu de mundo, aquele caminho todos os dias. Às vezes pensava que preferia estar junto com os pais. Não naquele cemitério! Onde quer que eles estivessem. Com certeza num lugar melhor.

Pois foi por um quase nada que seu desejo não se realizou. Não tivesse despertado de seus pensamentos com a buzina do caminhão, teria se juntado ao pai e à mãe no tal lugar melhor, fosse ele onde fosse. "Quer morrer, ô desgraçado!", praguejava a voz do caminhoneiro já sumindo conforme a carreta se afastava. Essa tinha sido por pouco! Não dizem que a gente deve ter cuidado com o que deseja? Pois é. Por um tiquinho assim que não ia morar exatamente naquele terreno do lado da sua casa. Imagina!!! A primeira coisa que veria todos os dias seria aquela casa desbotada e descascada da rua detrás! Eternamente. Deus me livre! Era melhor estar desse lado.
É, pra morrer basta estar vivo...



Cly Reis

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