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sábado, 14 de dezembro de 2019

"A Vida Invisível", de Karim Aïnouz (2019)



Que coisa boa ver um filme desses! Ainda enquanto estava na sessão, o filme nem havia terminado ainda, e eu já estava gratificado por estar assistindo àquilo, independentemente do final que viesse a ter. "A Vida Invisível", longa-metragem do cearense Karim Aïnouz, é merecedor de todo o reconhecimento, elogios e premiações que vem recebendo. Bem dirigido, bem estruturado, de escolhas artística e estéticas acertadíssimas e roteiro extremamente bem amarrado que mantém o espectador interessado e envolvido o tempo inteiro, o filme traça os caminhos de duas irmãs extremamente ligadas uma à outra, Guida e Eurídice, que são separadas, num primeiro momento, por uma aventura amorosa inconsequente de Guida, mas sobretudo, são afastadas definitivamente pela intolerância, pela ignorância e pelo machismo. A atitude covarde do pai das garotas ao não aceitar a filha aventureira de volta, grávida, e mentir sobre o destino da outra que ficara em casa, casara e tocara sua vida em frente, faz com que, cada uma, separada da outra e ignorante da verdade, passe a imaginar a vida da outra a partir do último momento que viveram juntas e do conhecimento dos projetos que a outra tinha. Eurídice imaginando que a irmã, que fugira com um marinheiro grego, era feliz na Grécia; e Guida, que Eurídice fazia sucesso na Áustria com seu enorme talento musical ao piano. Nada disso! a verdade era bem diferente. Guida, depois de colocada na rua pelo pai, comeu o pão que o diabo amassou, se virou como deu, criou o filho e por vias avessas, acabou encontrando uma família com a bondosa Filó, com quem fora morar e criara uma amizade inabalável. Eurídice, por sua vez, casada e relegada à vida de dona de casa, é frustrada pela renúncia a seu dom artístico e, mesmo passados anos da partida da irmã, trava uma busca incansável para encontrá-la, tendo como única pista o fato de que aquela embarcara para a Europa no início dos anos 50.
As irmãs, Guida (esq.) e Eurídice (dir.),
pouco antes da fuga que começou a separá-las.
O fato do filme ser tão saboroso enquanto obra de arte, como referi no início, não faz dele, no entanto, algo leve. "A Vida Invisível" é duro, é triste, é revoltante, é forte. O filme aborda o tema da mulher na sociedade e do machismo que permeia as relações familiares desde sempre, de forma pungente sem, contudo, se tornar cansativo ou panfletário, escancarando, de maneira muito clara, o quanto o apego a velhos valores preservados em nome da família, de tradições, de costumes, de orgulho, honra, etc., podem destruir vidas, especialmente de mulheres, e mostra como esses tais "valores" eram capazes disso nos anos 50, quando se passa a trama, e deixa a reflexão para o quanto são perigosos ainda hoje.
Não há como deixar de dedicar algumas linhas à breve mas não menos importante e significativa participação de Fernanda Montenegro, na parte final do filme, interpretando Eurídice já idosa. É uma aparição relativamente curta, não são muitas falas, mas a presença dela na tela e sua interpretação, sempre precisa, abrilhantam aqueles momentos e agregam ainda mais qualidade ao filme.
"A Vida Invisível", assim como o já comentado aqui "Bacurau", é outro daqueles casos de reposta à negação à cultura que o país vem promovendo, especialmente nos últimos meses. Quanto mais a cultura apanha, mais ela responde, e em grande estilo. Depois de ser reconhecido no último Festival de Cannes com o prêmio Un Certain Regard, o filme de Karim Aïnouz é o inscrito brasileiro para a pré-seleção do Oscar de Filme Estrangeiro e, sinceramente, não acharia nenhum absurdo se entrasse entre os cinco candidatos e levasse o tão perseguido prêmio. Aí sim, com um filme feminista, vetado para exibição pelo próprio governo em órgãos públicos, seria o mais lindo tapa na cara do atual governo poderia levar. Se bem que..., provavelmente eles diriam que esse pessoal da Academia de Hollywood é tudo um bando de comunista e viado.

"A Vida Invisível" - trailer


Cly Reis


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