O raciocínio que se tem, portanto, quando se compara com a nova versão para o cinema de “O Beijo...” é de superioridade, certo? Sim, mas nem tanto assim. O jogo, que parecia ser fácil, encrespa logo que a partida começa. Surpreendentemente bem realizado, o longa assinado por Murilo Benício, em 2018, apresenta uma série de qualidades que, se não o põe na mesma altura do primeiro, ao menos rivaliza em alguns aspectos e até traz novos, que os dão personalidade como obra. Este, tive a oportunidade de assistir na seção do projeto Cinepsiquiatria, no GNC Cinemas do Praia de Belas, em Porto Alegre, que contou como debatedora convidada com a filha de Nelson, a também escritora Sônia Rodrigues.
A premissa de ambos os filmes é a mesma: o jovem recém-casado Arandir (Lázaro Ramos) presencia um acidente e, ao correr para socorrer a vítima, recebe do moribundo sujeito um último pedido: um beijo. A súplica pelo gesto de afeto é atendido, mas acaba repercutindo negativamente, o que faz com que Arandir tenha sua sexualidade e integridade questionados por sua família e pelas autoridades. Tudo se desenrola em um efeito bola de neve, fazendo com que Arandir seja transformado em inimigo do modelo de sociedade no qual vive, o que lhe custa a paz e a liberdade.
As atuações e a escolha do elenco são um ótimo exemplo da paridade entre as duas realizações, a dos anos 80 e a do ano passado. Se no filme de Barreto os personagens centrais são encenados por Tarcísio Meira, como Aprígio, Ney Latorraca, como Arandir, Christiane Torloni, como Selminha, e Oswaldo Loureiro, como Cunha, no de Benício, o pai de Selminha é feito por outro craque da antiga geração do teatro e cinema, Stenio Garcia, enquanto ela, a filha, tem uma Débora Falabella muito expressiva. O protagonista Arandir também fica no mesmo patamar ao reviver o personagem com o invariavelmente competente Lázaro Ramos. A talvez única vantagem da primeira versão é a representação do inescrupuloso e sensacionalista jornalista Amado Pinheiro, que mesmo com a ótima atuação de Otávio Müller na produção atual, não supera a de Daniel Filho, uma das mais brilhantes performances de um ator do cinema nacional. Augusto Madeira, fazendo o novo Cunha, quase desempata essa conta de tão bem que está, mas é fato que o personagem do policial corrupto não tem tamanha importância na trama quanto o de Amado.
Segundo quesito: a narrativa. O primeiro filme traz um formato linear, acompanhando a estrutura das cenas da peça. Já na nova, a história também respeita a cronologia dos acontecimentos, porém num conceito work in progress, registrando documentalmente uma leitura de atores para uma montagem da obra de Nelson que está se constituindo. Na mesa de leitura, o ator e diretor teatral Amir Haddad como ele mesmo e os próprios atores, os quais protagonizam as cenas tanto ali quanto fora, intercalando espaços com ou sem cenografia. Assim, Benício amarra com muita propriedade os universos cênicos do teatro e do cinema e o imagético, aquele da natureza interna do filme. Se Barreto obtém êxito ao contar bem uma história de forma clássica, Benício inova ao resgatar a mitologia que tanto a peça quanto, de forma indireta, o primeiro filme carregam.
Ao subverter a narrativa tradicional, Benício apresenta soluções muito interessantes às sequências, pensando de forma individualizada cada cena. O ritmo é permanentemente sustentado, mantendo o interesse do espectador e, principalmente, sem perder as conexões entre um ato e outro. Ousadia difícil de se realizar, mas obtida por Benício. Entre os trunfos dele está a presença de Fernanda Montenegro, dona das cenas em que aparece. Atuando, ela interpreta a fofoqueira vizinha Matilde, a qual, se não tem a força interpretativa de Fernanda, é feita muito bem por Thelma Reston na primeira vez.
A fotografia também tem acertos conceituais em ambas as produções. Um dos melhores fotógrafos de sua geração, Murilo Salles (que se tornaria um dos principais cineastas brasileiros a partir dos anos 80), faz transmitir na pigmentação quente e nas sombras duras a tensão e o obscurantismo daquele ambiente cotidiano aparentemente estável, mas altamente sensível, opressor e falso. O filme de Benício, no entanto, não fica para trás no aspecto visual. Outro excelente fotógrafo – e também ilustre cineasta –, Walter Carvalho, é quem assina a direção fotográfica do novo longa, o qual opta por um P&B bastante marcado e com ares noir. Se no primeiro a coloração e o figurino se adéquam à representação temporal – haja vista que o roteiro faz a história se passar no que seria um início de anos 80, época em que o filme foi rodado –, o novo é fiel à temporalidade idealizada por Nelson, anos 50/60, o que faz com que sua fotografia antiga também se justifique muito bem.
Aliás, uma pequena vantagem para o primeiro: ser um dos filmes de "resistência" em uma época de censura e Ditadura Militar no Brasil. De forma nem tão sutil, mostra a atuação criminosa da polícia tanto nos interrogatórios de Arandir e Selminha quanto, ainda mais grave, deixa bem evidente quando ela é torturada e abusada numa casa clandestina, procedimento típico da repressão militar. O filme de Benício vem num outro momento histórico do Brasil também bastante perturbado, mas respaldado pela democracia conquistada a muito custo pela geração de Barreto.
Em suma, o que diferencia os dois filmes nas qualidades que ambos têm são os roteiros. O recente, assinado pelo próprio Benício, faz o filme ganhar níveis metalinguísticos muito apreciáveis tanto nas autorreferências da própria obra quanto no que se refere à linguagem cinematográfica e sua relação intrínseca com o teatro. Assim, ao mesmo tempo em que é fiel ao texto de Nelson nas falas e diálogos, também é capaz de desconstruir a estrutura da trama.
Já no filme de 1981, o roteirista Doc Comparato acerta no equilíbrio narrativo, que mantém o espectador grudado na tela o tempo inteiro. Mais do que isso: verte com precisão o texto teatral para o formato audiovisual. Aí é que está o talvez grande diferencial do filme de Barreto: a prevalência da linguagem do cinema. Não que o atual também não tenha sucesso na abordagem escolhida, mas a perspectiva funcional que o primeiro encerra lhe dá um considerável ganho.
Esse entendimento fica muito claro nas sequências finais: enquanto o filme de Benício mantém a discussão de Arandir e Aprígio dentro do quarto do pequeno hotel, onde acontece o assassinato do protagonista, a versão de Barreto inteligentemente desloca a cena para outro espaço cênico: o meio da rua. E isso faz toda diferença! Ali transcorre-se quase o mesmo desfecho, porém sob o cenário onírico da velha e misteriosa Lapa carioca. Mas Barreto reserva um segundo e imbatível lance, como um drible inesperado. Ele e Comparato adicionam à cena um gran finale: depois de balear Arandir (Latorraca), que cai agonizante sobre as pedras cúmplices do famoso bairro sob as luzes da noite boêmia, Aprício (Tarcísio) lhe junta do chão e lhe tasca um beijo. Um único, desesperado, amaldiçoado, vingativo e apaixonado beijo.
Se o filme de Benício recorre à metalinguagem na abordagem, o de Barreto a insere no âmago da história, em seu momento mais catártico. Afinal, a que “beijo no asfalto” o título realmente se refere? Um acréscimo próprio de quem domina a arte de fazer cinema. Um final digno dos maiores de todos os tempos no cinema nacional. Considerando a já mencionada perfeita condução narrativa que antecede a cena, esta, quando chega, ganha uma nova dimensão simbólica. Com esta, Barreto faz um golaço. Um golaço de misericórdia pra passar a régua e fechar a conta.
Daniel Rodrigues