O marcante personagem Dorival, do filme de Furtado e Goulart |
Quem, como eu, um negro que viveu
aquela década em Porto Alegre – cidade onde o referido filme foi rodado –,
lembrará, por exemplo, que “música de preto” só se escutava na finada Rádio
Princesa, dial “oficialmente instituído” para que o hoje tão valorizado samba
tivesse onde rodar. Qualquer semelhança com os vissungos e lundus entoados e
dançados nas senzalas não é mera coincidência – nem preciosismo semântico, no
caso. Tanto o exemplo do filme quanto o da rádio mostram o quanto o
silenciamento do negro era preponderantemente estabelecido naqueles idos.
Precisaram mais de três décadas para, enfim, começarmos a avançar nesses
aspectos. Mas não sem conflito.
Cartaz original do filme "Inverno", que motivou a live da APTC |
As reticências imaginárias da
cena derradeira do curta de Furtado e Goulart convidavam que alguém continuasse
escrevendo aquele texto de barbárie para uma narrativa de transformação. E o
avanço social se encarregou disso. Os ventos de indignação provocados pelo
episódio George Floyd nos Estados Unidos tomaram tanta força que, mais intensos
que um minuano, vieram soprar aqui nas paragens do Rio Grande do Sul. Mais
precisamente, na mesma Porto Alegre das senzalas que apartavam tanto o Dorival em
sua cela e o samba nas ondas da Rádio Princesa há cerca de 35 anos. E soprou de
forma violenta a ponto de desestabilizar antigas estruturas. O recente episódio
da live promovida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do
Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno” (1983), no dia 3 de julho, mediado
por Giordano Gio e com a presença de Carlos Gerbase, Luciana Tomasi, Giba Assis Brasil e Luciene Adami (integrantes da equipe) e a realizadora e roteirista
Mariani Ferreira, abriu como jamais visto nestas terras um debate sobre dois
aspectos que pareciam fadados ao estado de silêncio: a presença de negros no
setor audiovisual gaúcho e, o mais grave deles – visto que é a raiz explicadora
do primeiro aspecto –, o racismo.
Os parcos números da
representatividade negra no setor audiovisual gaúcho falam por si. Sabe-se que
o estudo "Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de
2016", divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, embora
a defasagem para os dias atuais, não mudou muito de lá para cá. Dos 142 longas
exibidos comercialmente no circuito, apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros,
e sequer um dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano. Em termos
históricos, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras no Rio
Grande do Sul: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez; “Porto dos
Mortos” (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro; “Central – O Filme” (2016), de
Tatiana Sager e Renato Dornelles; “De Boca em Boca” (2016), de Wagner Abreu; e
“O Caso do Homem Errado” (2017), de Camila de Moraes.
A exemplo do já mencionado
curta-metragem de Furtado e Goulart, a intencionalidade de mudança não precisa
vir necessariamente de pessoas negras. Até é bom que não seja sempre assim. Além
deste, o cinema gaúcho conta com longas-metragens como “O Homem que Copiava”
(2003) e “Meu Tio Matou um Cara” (2004), ambos também de Furtado, que trazem
atores negros como protagonistas – Lázaro Ramos e Darlan Cunha, respectivamente
– e que, cada um a seu modo, buscam contextualizar a condição do negro na
sociedade brasileira do início do século 21. Mais do que estes, contudo, o já
referido “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” é o que, mesmo com o
consciente e salutar respeito ao “lugar de fala” de quem o dirige, duas pessoas
brancas, vai na raiz do problema do racismo ao valer-se do estereótipo para chegar
à crítica, e não para normatizá-la.
Darlan e Lázaro em "Meu Tio Matou um Cara": raros protagonistas negros na história do cinema gaúcho |
Se o exemplo de Furtado e Goulart
é louvável, é também, num espectro maior, insuficiente. Segundo o professor e
mestre em História pela UFRGS, Cléber Teixeira Leão, pesquisador da temática
racial com foco nos estudos críticos da branquidade, é fácil perceber um
pensamento brancocêntrico tanto no cinema gaúcho quanto no nacional focado na
universalização de uma história do Rio Grande do Sul e do Brasil a partir de um
recorte da visão do branco. “Sempre que é necessário fazer um recorte racial ou
mesmo socioeconômico, a película chega carregada de estereótipos quando trata
do negro e do indígena. Mas o mesmo cinema positiva e deifica a questão
imigratória, os relacionamos à música, à arte plástica dos descendentes de
europeus, os brancos”, argumenta Leão.
Se os números anteriormente citados
falam por si, mais ainda o fazem os depoimentos ouvidos na live da APTC.
Verbalizadas pela produtora Luciana Tomasi e indiretamente consentidas por
outros participantes durante a reunião virtual, as falas foram motivadas, sem
dúvida, pela presença instigadora de Mariani Ferreira. Integrante do Macumba
Lab, coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do
Sul, tanto sua articulação intelectual quanto condição de mulher negra desacomodaram.
Não o fariam, contudo, se ela não trouxesse questões como raça e gênero,
assumindo o silenciamento historicamente engendrado. Mas, não. Nas respostas a
suas colocações – até certo ponto revisionistas, mas inequivocamente plausíveis
e genuínas –, reverberam questões como identidade, normatização da hegemonia
branca, necessidade de representatividade negra, desvirtuamento do "lugar
de fala", entre outros aspectos. Todos, analisados juntos ou
separadamente, demonstram o quanto não se está preparado para enfrentar a
discussão do racismo com a responsabilidade que o tema exige, mas também que
fazê-lo urge.
Dois aspectos observados no
episódio da referida live merecem especial atenção. Primeiro, conforme
levantado por Leão, a idealização da herança europeia, um dos argumentos usados
por Luciana para justificar sua desatenção à questão do negro na produção
audiovisual porto-alegrense. ”A discussão trazida na live da APTC sobre cinema
gaúcho, na realidade, demonstra justamente esse recorte de uma Porto Alegre criada
a partir de uma construção brancocentrada, que tenta reivindicar uma identidade
pseudoeuropeia branca que, se diga, a cidade não tem. Não somos uma capital
somente de descendentes de europeus: existem múltiplas raízes raciais e de
ancestralidade que percorrem as ruas de Porto Alegre”, diz o professor.
Não se trata de policiar a
liberdade artística – quanto menos, inutilmente aquela que já se produziu – e
nem desqualificar a inquestionável contribuição que a geração desses
precursores do novo cinema gaúcho deu. No entanto, explicar o desinteresse com
a causa dos negros pela simples ausência de contato com esta é, além de muito
confortável, fraco e irresponsável de quem se espera, como agente cultural
importante do Estado, algo bem mais refletido. “A questão que surgiu na live, a
partir da fala da produtora Luciana Tomasi, era a de uma impossibilidade de
dialogar com a história e temáticas não brancas, que compõem a história e a
sociedade porto-alegrense, pois sua herança sanguínea europeia, assim como a de
alguns dos participantes da live, impossibilitava essa abordagem”, observa
Leão. Os dois referidos longas de Furtado são produzidos por Luciana Tomasi, e
não à toa deixei para voltar a referi-los aqui. O que talvez pudesse ser um
lapso de desaviso soa, agora, como reconfirmação desse descompromisso
anacrônico e segregador.
Mariani Ferreira: articulação intelectual e condição de mulher negra |
Ligado a esse aspecto, o outro
que destaco se resume num vocábulo, o qual, infelizmente, diz muito mais do que
se gostaria. Luciana, ao discorrer que pessoas com sobrenome como o dela ou
Schünemann, Adami, Gerbase e de semelhante ascendência europeia, diz não ter condições,
pelas razões citadas anteriormente, de fazer um filme da “senzala”. Leão nota nessa
fala o quanto só se consegue perceber os grupos não brancos dentro da história
gaúcha ou nacional a partir da abordagem de submissão da escravização negra – e
isso é muito grave. “A percepção sócio-histórica manifestada nessa fala
impossibilita uma ruptura com esse estereótipo, que é construído dentro de um
processo de racialização imposto e construído pelo branco, que não se entende
historicamente como raça, nem tampouco como privilegiado ao definir os nichos
onde cada um dos grupos não brancos são categorizados histórica e socialmente”,
completa.
Quando o roteiro de “O Dia em
que...” foi escrito – coassinado por Furtado, Goulart, Tabajara Ruas, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil –, intencionalmente o protagonista, tão veículo de pré-concepção
quanto de denúncia, não tinha sobrenome. Era Dorival e pronto. Precisava-se,
por meio desse elemento narrativo, evidenciar a desumanização. Hoje, reivindica-se,
com probidade, a menção a Oliveira Silveira. Eu, cria daqueles ricos mas também
atrasados anos 80, vi, por muito tempo, as manifestações contra o racismo –
vindas invariavelmente apenas dos próprios negros – justificadamente reativas,
mas pouco argumentativas. Agora, é diferente.
O sistema foi estremecido, e não
demorou para que o meandro estrutural do racismo, sustentado pelo preconceito
arraigado, aparecesse. Agora, é hora de romper o silêncio e encará-lo.
“Torna-se necessário”, diz Leão, “pensar a visão brancocêntrica acrítica, que
só permite pensar os não brancos dentro de determinados nichos, o que, em si,
faz parte do que chamamos de racismo estrutural”. Para ele, é necessário romper
essa nada apreciável tradição gaúcha, que tenta buscar ainda uma positivação
racial branca europeia disfarçada de étnica. A continuidade da política de
cotas nas universidades, que já vem mostrando resultados consistentes de
transformação e inclusão social, e o fomento a projetos como Macumba Lab, por
exemplo, são fundamentais para essa mudança de realidade. Segundo a professora doutora
de filosofia Andrea Maila Voss Kominek, “conhecer nossas raízes e repensar
nossa realidade representam o único meio possível para uma sociedade justa e
igualitária. Desconsiderar o problema do racismo no Brasil é ser
conivente. É permitir que a desigualdade se perpetue. Reconhecê-lo, conhecê-lo
e discuti-lo constitui o primeiro passo rumo a uma sociedade livre”.
De fato, o audiovisual gaúcho
levou um grande susto ao ver emergir o racismo das grades que o escondiam,
fosse na cela do personagem Dorival, fosse na referida senzala onde
indiretamente condena-se a existência de uma raça. Políticas estão sendo
tomadas, posições estão sendo revistas, governo e entidades estão correndo
contra o tempo para responder a essa lacuna social e moral deixada pela brutal escravatura
no Brasil e (tão bem) assimilada entre os homens. Mas as sociedades avançam, e
isso é irrefreável, inclusive no autocomplacente Rio Grande do Sul.
Dia 3 de julho foi o dia desse avanço
em direção a entendimentos mais amplos e plurais, mesmo que para isso tenha-se
que brigar, apontar erros e expor aquilo que precisa ser dito. O dia em que o
cinema gaúcho encarou o racismo. Só assim cidades como Porto Alegre podem ter,
cada vez mais, representada nas mais diversas áreas não apenas a influência
europeia, mas a de outras culturas como a africana. Como a brasileira, aliás, única,
pois mestiça e universal. E que pessoas como Dorival possam, resgatadas suas
dignidades, responder com nome e sobrenome. Assim, um sobrenome ao mesmo tempo comum
e digno, como um Oliveira Silveira ou o de quem assina este artigo.
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curta “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”,
de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1984)
por Daniel Rodrigues
Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina escrito a convite do jornalista
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