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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os meus 10 melhores filmes gaúchos


Furtado, cineasta com mais títulos na lista entre
longas e curtas
Por conta de um grupo do qual participo, fui instigado a pensar nos filmes produzidos no Rio Grande do Sul em toda a sua história cinematográfica. Isso, incluindo até os não necessariamente feitos por cineastas/equipes gaúchas, mas também rodados ou produzidos. São diversos os talentos que são ou saíram desse extremo-Sul brasileiro, como Jorge Furtado, Carlos Reichenbach, Carlos Gerbase, Ana Luiza Azevedo, Paulo José, Walmor Chagas, José Lowgoy, Ítala Nandi, entre outros técnicos e realizadores. Por isso, e até em razão do recorte ao qual se pretende chegar com essa pesquisa a qual me referi, senti-me à vontade para montar uma lista dos meus filmes preferidos feitos no Estado onde nasci e vivo. Assim, bem pessoal e cinéfila.

Bastante prolífica, a produção gaúcha data do início do século, sendo dessas terras de onde saiu a primeira produção de cinema que se tem registro no Brasil: “Os Óculos do Vovô”, de 1913, de Francisco Santos, realizado numa cidade com a qual mantenho saudável proximidade, Pelotas. Não bastasse essa importância histórica para o cinema nacional, o Rio Grande do Sul também é dos estados de maior produção ao longo do último século e, certamente, deste em que estamos. Somente do ano 2000 para cá, há cerca de 100 longa-metragens, além de uma infinidade de curtas – formato, aliás, no qual se construiu considerável tradição no audiovisual gaúcho, principalmente a partir dos anos 80.

Além disso, a grande maioria do que fora rodado não se trata apenas de negativos gastos sem finalidade. Criatividade, diversidade de estilos e gêneros e qualidade técnica pautam uma parte considerável dos filmes. Goste-se ou não do resultado, trata-se de uma produção qualificada e, por outro ângulo, sociologicamente importante em seu papel de registro da cultura gaúcha. Por ser um estado froteiriço, muito de sua produção audiovisual tem influência dessa proximidade com os vizinhos platinos, tendo papel essencial para a realização de coproduções com Argentina e Uruguai principalmente.

Em termos de projeção, igualmente. É na ponta de baixo do País que ocorre o festival de cinema mais longevo e ininterrupto do Brasil, o Festival de Gramado. No que se refere a premiações, não são poucos os premiados no Brasil e no exterior ao longo da história, chegando-se ao apogeu com o multipremiado curta “Ilha das Flores”, que abocanhou láureas na França, Alemanha, Estados Unidos e no próprio País.

Isso tudo coloca a terra de P.F. Gastal tranquilamente entre os cinco polos cinematográficos mais importantes do Brasil, atrás apenas de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e, quiçá, igualado por Bahia. Claro que, desses, tenho meus preferidos, que lanço aqui os 10 principais, incluindo curtas, aliás. Pude, por isso, dispensar títulos de produções rodadas no Estado, como os ótimos “A Intrusa”, produção carioca do cineasta argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen, ou “Cão sem Dono”, do paulistano Beto Brant. Assim, predominam os filmes da Casa de Cinema de Porto Alegre e dos anos 80, tendo Furtado o destaque, com três deles. Porém não podia deixar de elencar o essencial "Vento Norte", primeiro longa sonoro feito nesses pagos, e dois títulos da nova safra, somando, junto com outro de Furtado, três realizações do século XXI.
Então, vamos à lista:


1 – “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado (1989)










2 – “Verdes Anos”, de Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase (1984)
3 – “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
4 – “Vento Norte”, de Salomão Scliar (1951)



5 – “Deu Pra ti, Anos 70”, de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil (1981)
6 – “O Mentiroso”, de Werner Schunemann (1988)
7 – “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (2003)
8 – “3 Minutos”, de Ana Luiza Azevedo (1999)




9 – “A Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira (2016)
10 – “Castanha”, de Davi Pretto  (2014)


O ator José Carlos Castanha interpretando a si mesmo no
impressionante filme de Davi Pretto


por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)






Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter assistido ao documentário “Filme sobre um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal. Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”. Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia cultural recente da cidade.

Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional, cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno deste.

Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de 1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super 8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80, quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana. Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler, João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).

Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda), embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita, mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti, Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto, deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).

Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes, o hardcore d’Os Replicantes ou o pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil, que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.

E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”, “desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do município, e isso por causa de muita insistência. 

Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um momento tão efervescente e interessante na cidade.

Sabemos que não se repetirá.

A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola. Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente, não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo, na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade. Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.

No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”, a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto Alegre de uma forma ou de outra como eu.

Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em 2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.


trailer de "Filme sobre um Bom Fim"



quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo



O marcante personagem Dorival,
do filme de Furtado e Goulart
A proposital sensação de incompletude que a última tomada de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, de 1986, deixa para o espectador, parece premeditar uma noção ética a qual o cinema gaúcho irremediavelmente ainda iria se deparar. Naquele meado de anos 80, quando ainda se vivia sob a sombra da ditadura e ansioso por uma democracia que nunca chegava, fazia muito sentido a cena em que o militar vivido por Sirmar Antunes, sem (conseguir) verbalizar uma palavra, minimamente se compraz do encarcerado Dorival (João Acaiabe), homem negro como ele, alcançando-lhe um cigarro após este último ser linchado fisicamente pelos colegas e mais uma vez psicologicamente pela sociedade.

Quem, como eu, um negro que viveu aquela década em Porto Alegre – cidade onde o referido filme foi rodado –, lembrará, por exemplo, que “música de preto” só se escutava na finada Rádio Princesa, dial “oficialmente instituído” para que o hoje tão valorizado samba tivesse onde rodar. Qualquer semelhança com os vissungos e lundus entoados e dançados nas senzalas não é mera coincidência – nem preciosismo semântico, no caso. Tanto o exemplo do filme quanto o da rádio mostram o quanto o silenciamento do negro era preponderantemente estabelecido naqueles idos. Precisaram mais de três décadas para, enfim, começarmos a avançar nesses aspectos. Mas não sem conflito.

Cartaz original
do filme "Inverno",
que motivou a live
da APTC
As reticências imaginárias da cena derradeira do curta de Furtado e Goulart convidavam que alguém continuasse escrevendo aquele texto de barbárie para uma narrativa de transformação. E o avanço social se encarregou disso. Os ventos de indignação provocados pelo episódio George Floyd nos Estados Unidos tomaram tanta força que, mais intensos que um minuano, vieram soprar aqui nas paragens do Rio Grande do Sul. Mais precisamente, na mesma Porto Alegre das senzalas que apartavam tanto o Dorival em sua cela e o samba nas ondas da Rádio Princesa há cerca de 35 anos. E soprou de forma violenta a ponto de desestabilizar antigas estruturas. O recente episódio da live promovida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno” (1983), no dia 3 de julho, mediado por Giordano Gio e com a presença de Carlos Gerbase, Luciana Tomasi, Giba Assis Brasil e Luciene Adami (integrantes da equipe) e a realizadora e roteirista Mariani Ferreira, abriu como jamais visto nestas terras um debate sobre dois aspectos que pareciam fadados ao estado de silêncio: a presença de negros no setor audiovisual gaúcho e, o mais grave deles – visto que é a raiz explicadora do primeiro aspecto –, o racismo.

Os parcos números da representatividade negra no setor audiovisual gaúcho falam por si. Sabe-se que o estudo "Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016", divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, embora a defasagem para os dias atuais, não mudou muito de lá para cá. Dos 142 longas exibidos comercialmente no circuito, apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros, e sequer um dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano. Em termos históricos, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras no Rio Grande do Sul: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez; “Porto dos Mortos” (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro; “Central – O Filme” (2016), de Tatiana Sager e Renato Dornelles; “De Boca em Boca” (2016), de Wagner Abreu; e “O Caso do Homem Errado” (2017), de Camila de Moraes.

A exemplo do já mencionado curta-metragem de Furtado e Goulart, a intencionalidade de mudança não precisa vir necessariamente de pessoas negras. Até é bom que não seja sempre assim. Além deste, o cinema gaúcho conta com longas-metragens como “O Homem que Copiava” (2003) e “Meu Tio Matou um Cara” (2004), ambos também de Furtado, que trazem atores negros como protagonistas – Lázaro Ramos e Darlan Cunha, respectivamente – e que, cada um a seu modo, buscam contextualizar a condição do negro na sociedade brasileira do início do século 21. Mais do que estes, contudo, o já referido “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” é o que, mesmo com o consciente e salutar respeito ao “lugar de fala” de quem o dirige, duas pessoas brancas, vai na raiz do problema do racismo ao valer-se do estereótipo para chegar à crítica, e não para normatizá-la.

Darlan e Lázaro em "Meu Tio Matou um Cara": raros protagonistas
negros na história do cinema gaúcho
Se o exemplo de Furtado e Goulart é louvável, é também, num espectro maior, insuficiente. Segundo o professor e mestre em História pela UFRGS, Cléber Teixeira Leão, pesquisador da temática racial com foco nos estudos críticos da branquidade, é fácil perceber um pensamento brancocêntrico tanto no cinema gaúcho quanto no nacional focado na universalização de uma história do Rio Grande do Sul e do Brasil a partir de um recorte da visão do branco. “Sempre que é necessário fazer um recorte racial ou mesmo socioeconômico, a película chega carregada de estereótipos quando trata do negro e do indígena. Mas o mesmo cinema positiva e deifica a questão imigratória, os relacionamos à música, à arte plástica dos descendentes de europeus, os brancos”, argumenta Leão.

Se os números anteriormente citados falam por si, mais ainda o fazem os depoimentos ouvidos na live da APTC. Verbalizadas pela produtora Luciana Tomasi e indiretamente consentidas por outros participantes durante a reunião virtual, as falas foram motivadas, sem dúvida, pela presença instigadora de Mariani Ferreira. Integrante do Macumba Lab, coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul, tanto sua articulação intelectual quanto condição de mulher negra desacomodaram. Não o fariam, contudo, se ela não trouxesse questões como raça e gênero, assumindo o silenciamento historicamente engendrado. Mas, não. Nas respostas a suas colocações – até certo ponto revisionistas, mas inequivocamente plausíveis e genuínas –, reverberam questões como identidade, normatização da hegemonia branca, necessidade de representatividade negra, desvirtuamento do "lugar de fala", entre outros aspectos. Todos, analisados juntos ou separadamente, demonstram o quanto não se está preparado para enfrentar a discussão do racismo com a responsabilidade que o tema exige, mas também que fazê-lo urge.

Dois aspectos observados no episódio da referida live merecem especial atenção. Primeiro, conforme levantado por Leão, a idealização da herança europeia, um dos argumentos usados por Luciana para justificar sua desatenção à questão do negro na produção audiovisual porto-alegrense. ”A discussão trazida na live da APTC sobre cinema gaúcho, na realidade, demonstra justamente esse recorte de uma Porto Alegre criada a partir de uma construção brancocentrada, que tenta reivindicar uma identidade pseudoeuropeia branca que, se diga, a cidade não tem. Não somos uma capital somente de descendentes de europeus: existem múltiplas raízes raciais e de ancestralidade que percorrem as ruas de Porto Alegre”, diz o professor.

Não se trata de policiar a liberdade artística – quanto menos, inutilmente aquela que já se produziu – e nem desqualificar a inquestionável contribuição que a geração desses precursores do novo cinema gaúcho deu. No entanto, explicar o desinteresse com a causa dos negros pela simples ausência de contato com esta é, além de muito confortável, fraco e irresponsável de quem se espera, como agente cultural importante do Estado, algo bem mais refletido. “A questão que surgiu na live, a partir da fala da produtora Luciana Tomasi, era a de uma impossibilidade de dialogar com a história e temáticas não brancas, que compõem a história e a sociedade porto-alegrense, pois sua herança sanguínea europeia, assim como a de alguns dos participantes da live, impossibilitava essa abordagem”, observa Leão. Os dois referidos longas de Furtado são produzidos por Luciana Tomasi, e não à toa deixei para voltar a referi-los aqui. O que talvez pudesse ser um lapso de desaviso soa, agora, como reconfirmação desse descompromisso anacrônico e segregador.

Mariani Ferreira: articulação
intelectual e condição de
mulher negra 
Ligado a esse aspecto, o outro que destaco se resume num vocábulo, o qual, infelizmente, diz muito mais do que se gostaria. Luciana, ao discorrer que pessoas com sobrenome como o dela ou Schünemann, Adami, Gerbase e de semelhante ascendência europeia, diz não ter condições, pelas razões citadas anteriormente, de fazer um filme da “senzala”. Leão nota nessa fala o quanto só se consegue perceber os grupos não brancos dentro da história gaúcha ou nacional a partir da abordagem de submissão da escravização negra – e isso é muito grave. “A percepção sócio-histórica manifestada nessa fala impossibilita uma ruptura com esse estereótipo, que é construído dentro de um processo de racialização imposto e construído pelo branco, que não se entende historicamente como raça, nem tampouco como privilegiado ao definir os nichos onde cada um dos grupos não brancos são categorizados histórica e socialmente”, completa.

Quando o roteiro de “O Dia em que...” foi escrito – coassinado por Furtado, Goulart, Tabajara Ruas, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil –, intencionalmente o protagonista, tão veículo de pré-concepção quanto de denúncia, não tinha sobrenome. Era Dorival e pronto. Precisava-se, por meio desse elemento narrativo, evidenciar a desumanização. Hoje, reivindica-se, com probidade, a menção a Oliveira Silveira. Eu, cria daqueles ricos mas também atrasados anos 80, vi, por muito tempo, as manifestações contra o racismo – vindas invariavelmente apenas dos próprios negros – justificadamente reativas, mas pouco argumentativas. Agora, é diferente.

O sistema foi estremecido, e não demorou para que o meandro estrutural do racismo, sustentado pelo preconceito arraigado, aparecesse. Agora, é hora de romper o silêncio e encará-lo. “Torna-se necessário”, diz Leão, “pensar a visão brancocêntrica acrítica, que só permite pensar os não brancos dentro de determinados nichos, o que, em si, faz parte do que chamamos de racismo estrutural”. Para ele, é necessário romper essa nada apreciável tradição gaúcha, que tenta buscar ainda uma positivação racial branca europeia disfarçada de étnica. A continuidade da política de cotas nas universidades, que já vem mostrando resultados consistentes de transformação e inclusão social, e o fomento a projetos como Macumba Lab, por exemplo, são fundamentais para essa mudança de realidade. Segundo a professora doutora de filosofia Andrea Maila Voss Kominek, “conhecer nossas raízes e repensar nossa realidade representam o único meio possível para uma sociedade justa e igualitária. Desconsiderar o problema do racismo no Brasil é ser conivente. É permitir que a desigualdade se perpetue. Reconhecê-lo, conhecê-lo e discuti-lo constitui o primeiro passo rumo a uma sociedade livre”.

De fato, o audiovisual gaúcho levou um grande susto ao ver emergir o racismo das grades que o escondiam, fosse na cela do personagem Dorival, fosse na referida senzala onde indiretamente condena-se a existência de uma raça. Políticas estão sendo tomadas, posições estão sendo revistas, governo e entidades estão correndo contra o tempo para responder a essa lacuna social e moral deixada pela brutal escravatura no Brasil e (tão bem) assimilada entre os homens. Mas as sociedades avançam, e isso é irrefreável, inclusive no autocomplacente Rio Grande do Sul.

Dia 3 de julho foi o dia desse avanço em direção a entendimentos mais amplos e plurais, mesmo que para isso tenha-se que brigar, apontar erros e expor aquilo que precisa ser dito. O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo. Só assim cidades como Porto Alegre podem ter, cada vez mais, representada nas mais diversas áreas não apenas a influência europeia, mas a de outras culturas como a africana. Como a brasileira, aliás, única, pois mestiça e universal. E que pessoas como Dorival possam, resgatadas suas dignidades, responder com nome e sobrenome. Assim, um sobrenome ao mesmo tempo comum e digno, como um Oliveira Silveira ou o de quem assina este artigo.


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curta “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”
de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1984)



 por Daniel Rodrigues
Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina escrito a convite do jornalista

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, da ACCIRS, na Feira do Livro de Porto Alegre - 05/11/2022


 

Foto coletiva da turma de críticos da ACCIRS
Foi uma tarde cheia de encontros – e autógrafos, claro – pro lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”. Agora, na Feira do Livro de Porto Alegre, em sua 68ª edição, onde não poderíamos deixar de estar. Cerca de 20 de nós membros da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), e foi possível conversar entre nós e os amigos, parentes e convidados que nos prestigiaram. Editado pela ACCIRS, a coletânea traz 50 artigos sobre filmes gaúchos lançados entre as décadas de 1950 e 2020 no Rio Grande do Sul. Mas com um diferencial editorial-conceitual interessante: não se trata de um apanhado dos “melhores filmes’, mas, sim, aqueles títulos que fazem sentido para cada autor dentro do universo do cinema gaúcho. Ou seja, propõe uma abordagem muito pessoal sobre cada obra, o que, indiretamente, cria ligações diferentes e próprias entre um artigo e outro.

Caso, por exemplo, dos textos de Alice Dubina Trusz e Jaqueline Chala – com quem pude trocar algumas proveitosas ideias durante a sessão – os quais, juntamente com o de Ivonete Pinto, formam uma trinca complementar que avaliou os três principais títulos do novo cinema gaúcho: “Deu pra ti, Anos 70” (Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, 1981), “Inverno” (Carlos Gerbase e Giba, 1983) e “Verdes Anos” (Gerbase e Giba, 1984), respectivamente.

Enfim, uma tarde linda em Porto Alegre, de temperatura agradável, final de semana e começo de mês (ou seja, pessoal com mais grana no bolso) motivou a que a feira estivesse lotada, inclusive com algumas sessões de autógrafos com filmas bem extensas. Muito legal ver a Feira do Livro, mesmo com todas suas ressalvas (preços não tão mais atrativos, ausência de uma praça de alimentação e de área internacional, entre outras coisas), mobilizando a população a circular na praça aberta em razão das letras. Depois do pesadelo do pior da pandemia, que reclusou a Feira ao universo online, poder voltar a circular e ver pessoas, cores, cheiros, artes, sons e tudo que os sentimentos possam captar é muito bom.

Confira aí, então, alguns cliques da sessão de autógrafos e do clima da feira em si conosco aproveitando esse dia encantado em nossa cidade:

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Fileira para os autógrafos coletivos da ACCIRS


Autografando o exemplar do amigo Rodrigo,
que foi com sua querida mãe prestigiar a gente


Aqui com o colega de ACCIRS e trabalho Conrado Oliveira, também autor do livro


Depois de passar a fila, chegou minha vez de autografar!


Com a querida colega e coautora Jaque Chala,
voz do cinema da minha adolescência da rádio FM Cultura


Deu também pra adquirir o "Cruber", livro de contos das andanças de Uber
do querido colega de ACCIRS Cristiano "Criba" Mentz


Nós em plena praça, onde tudo começou há 11 anos...


Clima da praça com pessoal circulando sob a bênção dos jacarandás



Os corredores cheios da área infantil


Palhaço fazendo bolhas de sabão gigantes no meio da praça


E deu tempo de encontrar a hermana Carol, que foi ao nosso encontro


Céu azulzinho na linda tarde de sábado na Feira do Livro


Filas e filas pras sessões de autógrafos



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 2 de março de 2015

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 80




Enfim, chegamos à terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80 foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60, embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos 80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via Embrafilme.
Foi aí, então, que os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo, outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente, entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então), felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço do documentário, início da descentralização da produção eixo Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão. Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns, despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”, “Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.



1 - “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande, potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será devidamente reconhecido.





2 - “Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.




3 - “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de “Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney, Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás terminando de assisti-lo inevitavelmente.



4 - “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassitência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.





5 - “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.



6 -Sargento Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário, sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia, cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20 maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e Crítica em Gramado.






7 - “O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers.




8 - “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se construía com a Abertura, o que significava transformações irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone, lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em Gramado. Uma joia.





9 - “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime militar ao contar a história de um homem confundido com um “subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição) e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.





10 - “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura, rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um filho de um misterioso militante político que é retirado de um colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da Crítica em Gramado.






11 - “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80 a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do “carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico de Nei Lisboa.






12 - ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.




13 - “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos, mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.





14 - “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia. Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme ainda levou tudo no Festival de Brasília.






15 - “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.





16 - “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.






17 - “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.




18 - “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60. Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque (por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem bem cantando.






19 - “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria 10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.






20 - “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década, Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente. Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme em Natal e Rio.




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Embora goste menos desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80 que abordamos:
60: “Macunaíma” (Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida” (Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A Grande Cidade” (Cacá, 66)
70: “A Lira do Delírio” (Walter Lima. 78); “O Amuleto de Ogum” (Nelson Pereira, 74); “A Dama da Lotação” (Neville, 78); “Toda Nudez Será Castigada” (Jabor, 73); “Doramundo” (Tizuka, 78); “A Rainha Diaba” (Fontoura, 74)


80: “Eu te Amo” (Jabor, 80); “Eu Sei que Vou te Amar” (Jabor, 86); “Festa” (Giorgetti, 89); “A Marvada Carne” (Klotzel, 85); “Amor Estranho Amor” (Khouri, 82); “Das Tripas Coração” (Ana Carolina, 82); “Superoutro” (Navarro, 89); “Bonitinha, mas Ordinária” (Chediak, 81)