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segunda-feira, 8 de março de 2021

Sister Rosetta Tharpe - "Gospel Train" (1956)

 




"Com uma voz capaz de
 dar vida às estátuas,
ela eletrizava a multidão
cantando pérolas de seu vasto repertório.
Tharpe ilustrava um verdadeiro
jogo de perguntas e respostas
 entre a candura e a autenticidade 
rurais do sul e a sofisticação
 e os novos sons das grandes cidades,
em especial, a guitarra elétrica."
Florent Mazolenni, 
autor do livro "As Raízes do Rock"



Aquela história de "quem inventou" tal coisa nem sempre é tão objetiva e direta quanto pode parecer, ainda mais quando se trata de alguma forma de arte. A produção artística não é assim como uma criação de um bruxo ou cientista maluco que pega um ingrediente daqui, um elemento dali e "pum!", de repente, faz surgir alguma coisa do nada. Na maioria das vezes as coisas são um processo, uma série de contribuições, influências, experiências e ousadias que culminam em determinado resultado que, naturalmente, por seu caráter original em relação ao que se conhecia até então, passa a ser olhado de outra maneira e, normalmente, recebe outro nome, que o diferencia do que o antecedeu.
O rock'n roll, em especial, tem muito dessa coisa de reivindicação de paternidade. "Esse é o pai", "Aquele é o Rei", "Aquele outro é o inventor", são sentenças que costumeiramente ouve-se por aí, atribuídas a uma série de artistas que, abem da verdade, cada um à sua maneira, tiveram sua contribuição no processo de formação do gênero. A verdade é que o estilo foi se moldando, nascido, evidentemente, do blues, mas agregando uma pegada mais acelerada de determinada região, um jeito de tocar diferente de determinado instrumentista, uma nova possibilidade musical de outro estilo, até ser definitivamente batizado de rock'n roll, ali pelos anos '50. No entanto, uma das personagens que deu uma contribuição fundamental nesse processo, não costuma ter um reconhecimento proporcional à importância que tem para a construção da linguagem. Sister Rosetta Tharpe, cantora religiosa desde a infância, agregou, em suas viagens com a mãe, pelas paróquias ao longo dos Estados Unidos, estilos e tendências que ouvia em diversas partes do país e, assim que começou a ter sua própria carreira, colocou esses elementos em sua música, dando a ela um toque absolutamente singular. Embora algumas pessoas lembrem de seu nome, de sua atuação, de sua influência, é raro ver-se expressa a dimensão que Rosetta teve na consolidação dos traços características do rock. A mistura do gospel com o blues, a inserção de elementos do country, a postura de palco, o jeito de pegar a guitarra, de tocar o instrumento e o som que tirava dele, tudo isso no final dos anos 30, são itens, simplesmente, fundamentais para formar aquilo que viria a ser chamado de rock.
Recentemente redescoberta por parte do público, até pela facilidade de acesso da internet, no que diz respeito a pesquisa, garimpo e curiosidade, vem sendo reivindicado a Sister Rosetta o título de "inventora" do rock. Como comecei salientando, lá no início do texto, na minha opinião, essas construções são um crescente, um processo e, não tenho certeza de que seria justo com artistas contemporâneos a ela, que, à sua maneira também colaboraram para o resultado final que conhecemos, dar exclusivamente a ela uma coroa que tem muitos donos, tão legítimos quanto ela.
Irmã Rosetta começou a se destacar e ganhar visibilidade no final dos anos '40 cantando canções de louvação na Igreja de Deus em Cristo, mas, com seu estilo tão singular, suas inovações e por ser uma mulher tocando guitarra daquele jeito, dividia opiniões até mesmo dentro de sua comunidade religiosa. Como na época não se costumava gravar álbuns, Rosetta registrou alguns singles nos anos '40, apresentou-se em várias partes do país, e só foi lançar um álbum, mesmo, em 1956, "Gospel Train", que, embora muito "limpo", muito lapidado para soar mais acessível, e um tanto influenciado pelo blues de uma forma mais direta do que costumavam ser suas canções originalmente, não deixa dívida de quem era aquela mulher e do que ele era capaz.
O disco abre com a maravilhosa "Jericho", canção tradicional americana que ganha um arranjo pulsante no qual a guitarra de Rosetta se destaca de maneira inconfundível. "Up Above My Head" é bem blues, bem dentro daquela domesticação do som mais visceral da cantora, "Can't No Grave Hold My Body Down" é um blues também mas já faz menos concessões, mas é "Fly Away" que consegue trabalhar melhor os etpremos e mostra-se como um dos melhores exemplares da química blues+country que Sister Rosetta conseguia explorar com tanta propriedade e que seria crucial para ao desenvolvimento do rock. "All Alone", por sua vez não fica para trás, com uma estrutura muito moderna e sofisticada, além de um solo absurdo, "rasgado" da guitarrista. 
Ainda que todas as canções sejam de devoção, "When They Ring The Gold Bell" e "How About You" destacam-se na forma como típicos exemplares do gospel, canções bem características de igrejas negras norte-americanas, inclusive com uma certa ênfase no órgão.
Destaque também para a bela "I Shall Know Him" com sua atmosfera dramática e para "Precious Memories" um blues charmoso com uma interpretação impressionante, de arrepiar.
O disco fecha em grande estilo com "99½ Won't Do" numa interpretação verso/resposta que antecipa uma série de tendências e possibilidades e que aquela personagem incrível já explorava de maneira tão fluída e natural.
Se aquela mulher inventou o rock eu não sei, mas que ela teve uma contribuição fundamental é algo que não tem como negar. Mas, vá lá, que tenha criado o rock. Nada mais natural que uma mulher tenha dado a vida a algo, não? Mas independente do título, da coroa, do carimbo, Sister Rosetta Tharpe, pelo pioneirismo, coragem, ousadia, qualidade, pela contribuição, pelo legado, deve estar incluída naquele nobre panteão de grandes mulheres da história. 

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FAIXAS:
  1. "Jericho" – 2:00 (Traditional)
  2. "When they Ring the Golden Bell" – 2:27
  3. "Two Little Fishes, Five Loaves of Bread" – 2:31 (Bernie Hanighen)
  4. "Beams of Heaven" – 3:20
  5. "Can't No Grave Hold my Body Down" – 2:40
  6. "All Alone" – 2:35
  7. "Up Above my Head there's Music in the Air" – 2:21
  8. "I Shall Know Him" – 2:22
  9. "Fly Away" – 2:25
  10. "How about You" – 2:25
  11. "Precious Memories" – 2:36
  12. "99½ Won't Do" – 2:02

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Ouça:
*não conseguimos o álbum na íntegra, como sempre fazemos,
mas, no link acima, você pode conhecer grande parte da obra da cantora, 
com várias das canções que fazem parte deste álbum.


por Cly Reis







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