O crepitar das chamas e dos galhos trazia à memória de Ida seu velho fogareiro. Os dias frios em sua humilde choupana encravada no meio das montanhas, quando abastecia o fogo com a lenha do bosque para seus saborosos caldos de legumes e chás. Corria longe a fama de que suas misturas com ervas, preparados e unguentos faziam verdadeiros milagres. Lembrava bem o dia em que uma mulher a procurara desesperada por ajuda pela filha. O boticário não tinha nenhuma solução que lhe pudesse ofertar, o médico lhe desesperançara, o padre já recomendava que se resignasse com a vontade de Deus. Dizia-se, à boca pequena, que, se alguém poderia ajudar a menina, essa pessoa seria ida. Embora tivesse inúmeros alfarrábios antigos e livros, do tempo de sua avó, quase caindo aos pedaços, na velha estante, não precisou consultar os anotados: sabia exatamente o que fazer. Encheu com água uma pequena caldeira, jogou dentro algumas ervas, sussurrando algumas palavras ininteligíveis, e recomendou que a mulher retornasse no dia seguinte. Teria pronta a solução. A mãe assim o fez. Retornou na tarde do outro dia quando Ida já a esperava com um pequeno frasco cheio de um líquido esverdeado escuro que a mulher levou num agradecimento mudo.
Ainda lembrava das lágrimas de felicidade daquela mãe ao retornar ao seu chalé para lhe agradecer. Trazia consigo a menina, claramente mais forte, mais corada, rediviva. Queria saber como poderia agradecer, o que poderia fazer por Ida, como poderia pagar... Ida dispensou qualquer paga. Sua recompensa era o brilho daquele olhar.
Olhos que agora, ali na primeira fileira, naquela praça, fugiam dos seus, evitavam lhe fitar diretamente. Constrangimento, culpa... Ida entendia. A comunidade, a paróquia a pressionaram a testemunhar que Ida lidava com bruxaria, magia negra. Se não o fizesse, a própria filha que, segundo se dizia havia sido objeto das artimanhas do demônio, estaria ali fazendo companhia a Ida, amarrada num poste.
Sentia cheiro de carne queimando. Lembrou dos assados de lebre que fazia em seu fogareiro. Não pôde deixar de rir do próprio pensamento numa hora daquelas. O fogo subia, o cheiro de carne aumentava. A dor era insuportável.
Cly Reis
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