Todos os olhos em cima dele. Foi exatamente o que Tino percebeu assim que entrou na modesta mercearia do lugarejo. A indelicadeza não chegou mesmo a incomodá-lo uma vez que tinha para si ser aquilo apenas a reação inicial dos locais em relação ao morador novo na cidade. Era a novidade, afinal.
Deu um bom dia geral, não respondido por ninguém e seguiu para os corredores do estabelecimento, na verdade apenas dois, e começou a colocar coisas em seu cesto de compras. Pegou alguns itens que precisaria pelo menos para os primeiros dias na nova casa e dirigiu-se ao caixa. Uma velhota com cara de desconfiada, com muito má vontade, foi tirando os produtos da cesta de vime e os empacotado nos sacos de papel. Finalizou, anunciou o preço, recebeu o pagamento e antes que o cliente saísse, perguntou:
- O senhor é o novo morador da casa da estrada, não é?
- Sim, sou eu mesmo, confirmou Tino com um sorriso, não correspondido por sinal.
Os demais, um homem magro grisalho com um chapéu de palha, uma senhora de meia idade num surrado vestido azul, e um velho esquisito mascando fumo, se entreolharam de modo enigmático.
Sem saber como reagir ao silêncio cúmplice dos moradores, Tino comentou como complemento:
- É uma boa casa, uma bela casa... Pena é aquele monte folhas que caem da árvore da frente. Fica sempre daquele jeito? Ontem quando chegamos estava assim de altura ali na frente. A propósito, eu e minha esposa queríamos agradecer pela limpeza. Agradecer a quem tirou tudo aquilo de lá. Vocês saberiam me dizer quem foi? Pra eu dar, tipo, uma recompensa, uma diária, algo assim...
As pessoas se olharam novamente, agora de maneira ainda mais tensa.
- Saia daqui, saia... Vá, vá embora. - ordenou a velha do caixa um bastante alterada.
Embaraçado e não entendendo bem o que se passava, Tino simplesmente deixou a loja carregando suas mercadorias.
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"Varredeira?", quis confirmar Tino sem certeza de ter entendido bem a história e a alcunha da personagem.
- Exatamente. - confirmou o padre a quem encontrara na praça, por acaso, no dia seguinte à bizarra visita à quitanda local.
- Era a empregada de um casal que morou naquela casa, na sua casa. - continuou o pároco - Sempre que a frente da casa ficava cheia de folhas, ela varria e deixava tudo limpinho, perfeito, como se nenhuma folha tivesse caído. E quando a natureza insistia em cumprir seu ciclo de queda, de troca, ia lá ela de novo, pacientemente varrer tudo novamente e deixar a entrada da casa impecável. Não importava quantas vezes tivesse que fazer naquela estação.
- Então foi ela quem limpou? - precipitou-se o novo dono da casa - Eu teria o maior prazer em pagar a ela o serviço...
- Não, não. Impossível. - retrucou o padre.
- Por que? Ela não aceita dinheiro? Como poderia...?
- Não, não é nada disso. - interrompeu o sacerdote - Ela está morta. Enforcou-se exatamente naquele árvore. No carvalho da frente da casa.
Vendo a expressão de incredulidade do morador, padre João tratou de completar a história.
- Ao que se sabe ela tivera um... relacionamento, um caso com o patrão. Quando a esposa descobriu, ameaçou deixá-lo, e para evitar isso ele não só acabou o caso com a moça como, e claro, a despediu. Não suportando a decepção, o desgosto, a perda do emprego, o término com o amante, tudo, na manhã seguinte à dispensa ela... bem... foi encontrada dependurada num galho de fronte à casa.
Tino estava estupefato. Ninguém havia comentado nada daquilo quando comprara o imóvel.
- Então foi por isso que aquelas pessoas estavam agindo daquela maneira comigo no mercado?
- São supersticiosos, entenda.
- Mas eu não tenho nada a ver com isso e, de todo modo, não fui eu que tirei as folhas. Por sinal, ainda não sei quem foi. Foi alguma 'brincadeira' de boas-vindas?
- Não, o caso é exatamente esse... Como eu disse, são supersticiosos...
- Mas o que então?
- Há uma lenda, uma crença, histórias... Dizem que, desde que morreu a Varredeira volta para limpar a frente do terreno quando há alguém morando lá. Que ela não permite que qualquer casal viva lá por causa do que aconteceu com ela. O que dizem é que atormenta os casais até que decidam ir embora E se não vão... ela...
- Mas isso é uma grandiosa bobagem!
- Eu também acho. - confirmou o padre constrangido - São coisas que o povo acredita. Coisas que falam por aí.
- De qualquer forma, vivo muito bem com a minha esposa e não tenho a menor intenção de sair de lá por causa de uma crendice absurda.
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Diana estava estranha ultimamente. Às vezes a flagrava catatônica com o olhar parado fixando o nada. Dizia que andava distraída ultimamente. Outro dia, ao acordar, surpreendeu-se com a esposa parada com uma faca, em pé, ao lado da cama. Perguntada sobre o que fazia ali com aquilo na mão, limitou-se a responder que fora até o quarto para saber o que o marido ia querer para o almoço. Suas atitudes começaram a assustá-lo. Agora tinha acessos de fúria por coisas banais mas que passavam rapidamente, logo voltando a ser a doce esposa de antes. Certo dia, não a encontrou dentro da casa. A procurou no quarto, no pequeno ateliê, no porão, vasculhou toda a casa até que, ao passar pela sala de jantar, a avistou na rua, em frente à casa, sob a árvore. Varrendo folhas.
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Os arquivos municipais eram bastante pobres. De um modo geral seu conteúdo se resumia a documentos de posse, transferência, certidões, mapas, coisas de prefeitura. Havia alguma coisa que outra sobre eventos acontecidos na cidade como registros de antigas de inaugurações, bailes, quermesses, e ainda menos notícias sobre moradores. "Família Mello faz doação significativa para a paróquia", noticiava um jornal de quase 100 anos atrás, "Incêndio destrói galpão do Depósito Sul", contava outra edição mais recente, "Resgatada criança caída no poço da mina", dizia outra manchete. Mas dentre aquelas parcas trivialidades de cidade pequena eis que, "Tragédia: mulher é encontrada enforcada em frente à própria casa". E o corpo da notícia ainda completava, "esposa de engenheiro recém chegado à cidade...", ou seja, era outra, não se tratava da serviçal. E três anos depois: "Morte na casa da Estrada Velha", a notícia prosseguia, "Mary Gomez, esposa do médico Andres Gomez, foi encontrada enforcada, dependurada em uma corda na árvore localizado em frente à casa do casal. Indícios iniciais parecem sugerir suicídio mas as investigações devem ser aprofundadas nos próximos dias". E oito anos depois, "O Mistério da casa da árvore: nova morte por enforcamento no carvalho dianteiro à propriedade da Estrada Velha mexe com a imaginação da população e traz à tona crendices e antigas histórias". "A Lenda da Varredeira - a história da empregada desprezada que teria tirado a própria vida e que estaria assombrando a casa abandonada da Estrada Velha", relembrava de forma jocosa um colunista numa seção de curiosidades de uma edição mais recente, de dois anos antes da compra da propriedade pelo atual casal.
Tino não acreditava nessas coisas mas tinha que admitir que a sucessão de acontecimentos semelhantes, a coincidência, começava a mexer com sua cabeça.
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Era final de outono, as árvores quase nuas não deixavam dúvidas do período da estação. Era hora de trocar a cobertura da copas e as folhas que dariam lugar às novas se acumulavam no chão entre as ruas, na praça e em frente às casas. Exceto em frente à velha casa da estrada onde a calçada permanecia límpida, imaculada, perfeita. Em um largo galho do carvalho imponente que se projetava diante do casarão, o corpo de uma mulher jazia suspenso, balançando com o vento que antecipava o inverno.
Cly Reis