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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

cotidianas #787 - A Face Oculta do Espelho




As coisas demoraram a tomar forma, as formas a ganhar contorno. Via um lustre de cobre, um teto vermelho descascado, um candelabro a óleo... Tentou mover-se mas percebeu que estava atada pelas mãos e pés, provavelmente a uma mesa ou algo assim. Ergueu o pescoço e pode ver uma mulher de meia idade, de costas para ela, escrevendo, com uma espécie de giz vermelho, caracteres estranhos em uma espécie de janela de vidro. Ainda estava um tanto zonza mas tinha certeza que o que via do outro lado da janela era o refeitório da tecelagem onde trabalhava. Um movimento chamou sua atenção mais à direita e ainda esforçando-se para manter o pescoço erguido, viu um homem de torso nu sentado à uma mesa. O conhecia... Era o rapaz com quem descera a área proibida na noite anterior. Agora começava a lembrar. Era Johan, trabalhava com ela. Ana lhe contara sobre o sumiço de suas economias e ele se propunha a ajudá-la.
Sabia como recuperar suas moedas, teriam, no entanto, que passar pela área proibida. Ela deveria encontrá-lo no topo da escadaria, mais tarde. Ela assim o fez. Lá o encontrou, o seguiu pela escada e desceram. À medida que iam em direção ao subsolo, se aprofundava a escuridão. Escuro, escuro... Até que não via mais nada. Acordara amarrada aquela mesa.
- Ah, acordou. - percebeu o jovem exclamando num tom de falsa surpresa.
Sua tentativa de perguntar o que fazia ali, amarrada, foi inútil. Sua língua parecia travada, como que colada ao céu da boca.
Notando o esforço da jovem em falar, o rapaz logo a esclareceu.
- Esqueci de dizer: você não vai conseguir falar. O bolo, lembra? Tive que lhe dar alguma coisa.
Sim, lembrava que, quando o encontrara na escada, Johan lhe dera um pedaço de bolo. Estranhou mas, ao mesmo tempo, apreciou a gentileza. Ainda mais num lugar como aquele que mal se satisfaziam com a ração dada na tecelagem.
- Precisávamos de outra jovem. Tenho certeza que me entende, Ana.
Desde que chegara àquele lugar, ouvia falar das garotas desaparecidas. Operárias da tecelagem, novatas como ela. Ao chegar ao lugarejo, não questionou nada. Fora aceita na aldeia, admitida na fábrica. Precisava do trabalho. Mas depois de algum tempo, as atitudes sorrateiras das outras meninas, o burburinho, os roubos, fizeram com que ligasse os supostos desaparecimentos aos procedimentos estranhos dos locais. Ao perguntar, argumentavam-lhe que a última menina, Frida, sumida há pouco mais de um ano, havia simplesmente ido embora, voltado para a casa dos pais. A explicação bastou-lhe inicialmente, porém a postura suspeita dos outros funcionários, os restos de animais mortos perto do rio, os símbolos esquisitos pintados em algumas portas, fizeram com que sua desconfiança retornasse. Advertida veementemente por Glenda, uma das únicas colegas com quem simpatizava, resolveu esquecer o assunto. Simplesmente trabalharia, ganharia seu saldo e guardaria o suficiente para sair daquele lugar. Os ferimentos com que Glenda aparecera a deixaram novamente atenta, no entanto, o roubo de suas economias foi o que a obrigou a tomar alguma atitude. Revelou o furto a Johan, um rapaz do transporte que se mostrara atencioso desde que Ana começara na tecelagem. O jovem disse-lhe que tinha suas desconfianças e que achava que sabia como podia recuperar o dinheiro. Ana deveria encontrá-lo, à noite, quando todas as outras já estivessem no dormitório. Depois disso, foi o bolo, a escada espiral, a escuridão e agora, aquela maca.
Esticava o pescoço num esforço e via que a mulher continuava traçando aqueles escritos ilegíveis no vidro. A zonzeira passava e cada vez as coisas clareavam mais. Claro! Aquela vitrine, aquele vidro, a vista para o refeitório era um espelho. Quantas vezes não parara diante do espelho do comedor para se apreciar mesmo desgrenhada e molambenta depois do turno no fabrico dos tecidos.
A mulher finalmente virou-se na direção de Ana. Parecia ter concluído as escrivinhações. Apanhou uma adaga em uma espécie de pedestal horizontal. Mesmo não recuperada totalmente do efeito da substância que Johan colocara no bolo, notou que a peça era bonita, tinha um aço levemente curvo e brilhante, e um belo cabo trabalhado em relevos. Quando a mulher aproximou-se mais, posicionando-se lateralmente à bancada à qual Ana estava amarrada, a jovem pode notar, enquanto a senhora manuseava o objeto, que as inscrições do cabo eram muito parecidos com as que encontrara pintadas em sua porta, certa manhã.

***

A lâmina mal conseguia cortar a carne. Cega, por mais que insistisse em friccionar contra o pedaço que tinha em seu prato, a faca quase não produzia efeito algum. Além da qualidade do material, provavelmente, aos funcionários tocavam os piores cortes. Mas o que importava? O importante era que tinha alguma comida. Falava-se nos arredores sobre casos de bruxaria naquela aldeia, sobre operárias que teriam sumido... Não dava ouvidos. Era grata por terem lhe aceitado na produção. Poderia ganhar algum dinheiro e enviar para a mãe, no norte.
Inga desistiu do naco de carne. Não tinha muita fome, mesmo, naquele instante. Levantou-se, deixou a bandeja no balcão e encaminhou-se para a saída a fim de deixar o refeitório. A maioria das moças já havia deixado o salão. Antes de sair, no entanto, parou em frente ao grande espelho que ficava perto da porta. Contemplou-se e, mesmo amarrotada e encardida da labuta do dia, a nova empregada da tecelagem ensaiou uma tímida pose de vaidade. Como será que a viam? Inga achava-se bonita. E era. Era bela e cheia de vida.




Cly Reis 


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