Numa dessas, conversando com minha mãe sobre blues, sobre meu gosto pelo gênero, o efeito que aquele ritmo produz em mim, comentei com ela sobre sua origem, um canto oprimido, simulado, trabalhando, na escravidão, nos campos de algodão do sul dos Estados Unidos. Foi então que ocorreu a ela me apresentar o livro "O Som dos Negros no Brasil", no qual se dava uma situação semelhante, de escravos negros cantando mesmo durante a mais pesada e forçada labuta. Efetivamente, o livro do jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão dedica uma parte de seu estudo a esse curioso pormenor, contudo, em absoluto, se limita a isso. É um abrangente e muito bem documentado estudo que retorna desde antes da própria colonização em terras brasileiras, já relatando os hábitos e manifestações dos cativos africanos em seu próprio território, em terras portuguesas e, capturados, já submetidos, a bordo das embarcações dos exploradores.
Tinhorão examina a fundo cada passo da manifestação musical dos negros escravizados no Brasil, desde as senzalas, as manifestações religiosas de seus deuses e entidades, as limitações, as proibições, as pequenas concessões dos brancos, avançando para uma tímida 'entrada' na Casa-Grande, a uma gradual aceitação da sociedade, e chegando a apropriação por parte do branco, dos sons dos negros, originais de rituais e folguedos, adaptados a ritmos menos 'selvagens'. Cada detalhe é comprovado por cartas, anúncios de vendas de escravos, matérias jornalísticas da época, documentos oficiais, relatos de viajantes e pesquisadores, e documentos oficiais, não deixando margem de dúvida quanto a datas, locais ou envolvidos em determinado episódio que marque o desenvolvimento dos ritmos negros no nosso país.
À parte as curiosidades, a maneira inferior como eram tratados os hábitos musicais africanos, o desprezo e a resistência da sociedade em relação à introdução desses ritmos na cultura 'civilizada', me chamou atenção, particularmente, a dimensão da influência que esses sons, que essa cultura negra teve na própria música portuguesa, em especial no fado. Dada a leveza e a melancolia do gênero musical tipicamente lusitano, nunca imaginaria ter sofrido tamanha influência da umbigada e do lundu dos negros, afro-brasileiros ("A julgar pela descrição das danças do lundu e do fado feitas por viajantes (...) os pontos coincidentes entre as duas danças são tantos que quase se poderia no fado como um segundo nome para o mesmo lundu.").
Enfim, uma bela recomendação de leitura. Muito melhor do que imaginava. Estudo, pesquisa, trabalho documental, mas nada maçante. Muito pelo contrário! Leitura extremamente prazerosa e estimulante.
Cly Reis
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