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sábado, 29 de julho de 2023

"Casa Vazia", de Giovani Borba (2021)

 

Os Muros da Fronteira

Como no jornalismo, a máxima de que não existe imparcialidade também se aplica ao cinema. Por mais limpo que seja o discurso tanto numa área quanto em outra, buscando fugir de posições político-ideológicas na abordagem de determinado tema, é impossível evitar uma mensagem desprovida de subjetividades. Em cinema, no entanto, essa dialética opera um pouco diferente. Uma vez arte, a depender do que se quer contar, o distanciamento (crítico e controlado) favorece a absorção da própria mensagem – que, ironicamente, pode ser, sim, bastante ideológica em última análise. Colocar-se conscientemente neste limiar não raro ajuda a que o cinema cumpra seu papel mais essencial: contar uma história.

Esta é uma das fronteiras conceituais às quais o brilhante “Casa Vazia” suscita. Sem ajuizamentos simplórios, o filme conta uma história cheia de questões sociais, políticas, econômicas e comportamentais de uma maneira profunda e artística, convidando o espectador à reflexão. Com uma excepcional cena inicial – um plano-sequência estático de uma paisagem rural noturna – o filme dirigido por Giovani Borba (também roteirista da obra) se passa na região do Pampa gaúcho e aborda o tema da pobreza no campo, evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal, Raúl (Hugo Noguera), um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes. Desempregado, é um sujeito de poucas palavras e olhar melancólico. 

Vencedor de 5 Kikitos, no Festival de Gramado, e um Troféu Redentor, no Festival do Rio, o longa trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista o retrato social atual de um típico gaúcho em uma zona historicamente romantizada, mas cuja realidade opera de maneira implacável. O clima de tensão da história, pelo qual é possível classificar o filme como um new western, se equilibra com o drama, personificado na pessoa de Raúl, um dos milhares de trabalhadores do campo que tentam se reorientar e lutar pela sobrevivência e preservar seus costumes.

O brilhante Hugo Noguera, retrato do típico gaúcho nos dias atuais

Alguns dos primorosos aspectos técnicos são essenciais para a construção da espacialidade e da estética de “Casa Vazia”, a se ver pela fotografia de Ivo Lopes Araújo. A exemplo de outras recentes produções gaúchas, a foto desempenha um papel central, ajudando a adensar estados psicológicos centrais para a narrativa proposta, como ocorre em “A Nuvem Rosa” (Iuli Gerbase, 2021) ou “A Primeira Morte de Joana” (Cristiane Oliveira, 2021). Em “Casa Vazia”, a vastidão da Campanha, com seu relevo e vegetação típicos em conjunção com a rusticidade das pessoas, coescreve a lógica das mentalidades e das inter-relações. A inospitalidade da natureza simboliza o vazio do interior humano, seja de ética, sentimento ou compaixão. 

Neste sentido, o personagem Raúl é magnificamente bem construído estética e psicologicamente, fora a interpretação exata dada por Hugo Noguera. Sem família, sem dinheiro, sem amigos, sem emprego digno, sem qualificação diante do devastador agronegócio. Um ciclo tão vicioso quanto sua queda pela bebida – a qual é constantemente assediado sem pudores alheios. O que lhe resta? A também ausência de preceitos morais. Mas não existe certo e nem errado para o espectador. Ao mesmo tempo, Raúl é envolvido com contrabando e omisso com a família, mas, em contrapartida, um cidadão desassistido, relegado e triste. As próprias consequências sofridas pelo personagem já se bastam. Os pecados são todos dele.

A inóspita e desafiadora paisagem do Pampa:
vastidão e esvaziamento
O professor e pesquisador da filosofia do trabalho Giovanni Alves usa o termo “compressão psicocorporal” para designar a demanda por produtividade do mundo atual, que opera como uma imensa fábrica que empareda o trabalhador. Assim, a “casa”, física ou metafísica, começa e termina no próprio corpo. Como no referencial filme brasileiro “A Casa de Alice”, é na corporificação que os paradoxos e vontades se dispõem. E assim como no filme de Chico Teixeira, de 2007, em que a personagem que lhe dá título é sufocada pelo externo machista em sua condição feminina, desabitando seu eu-interior, Raúl também é prensado por todos que o cercam: sociedade, família, trabalho, tecnologia. É como se, na amplidão pampeana, houvesse paredes que o espremessem e o condenassem à prisão dentro de si próprio: este indivíduo clássico do Rio Grande do Sul, mas anacrônico visto que desfavorecido pelo tempo. A própria região da Fronteira gaúcha, onde o filme se passa, é um símbolo disso. Invadida pela modernidade do “agro pop”, a zona fronteiriça com países como Uruguai e Argentina faz levantar muros invisíveis intransponíveis a quem a ela não se molda, reforçando – ao invés de combater – modos bárbaros arraigados, um maniqueísmo cruel e opressor. Só existe bem ou mal, poder ou miséria, pecado ou salvação, lei ou contravenção. Assim, a outra fronteira, a da dimensão entre o corpóreo e espiritual, perde-se, esvai-se.

A forma como os fatores são expostos em "Casa Vazia" levam o espectador a entender a sina de Raúl e não a julgá-lo. Afinal, não há para onde ele fugir: seja pelo lado “certo” ou “errado”, todos lhe desumanizam e o comprimem. Nem o além-matéria, momento em que o personagem tem contato com uma curandeira ou quando, em sonho, enxerga o mitológico Negrinho do Pastoreio (personagem folclórico de origem sofrida, não á toa popular), são suficientes para mudar sua rota degradante de tristeza, abandono e solidão. Da mesma forma como ficam expostas sobre a grossa relva os restos de gado atacados pelos ladrões, Raúl nada mais se transforma do que também um bicho despedaçado e sem vida atirado ao relento. Sem ser panfletário, "Casa Vazia" deixa claro que o mundo dos homens pode ser muito selvagem. Um lugar onde há espaço de sobra, mas com nada para lhe ocupar.

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trailer de "Casa Vazia"



texto: Daniel Rodrigues
foto e vídeo: Panda Filmes

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