Como ocorre tradicionalmente, a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), da qual faço parte, elegeu os Melhores do Ano, destacados entre produções lançadas em mostras e festivais, no circuito comercial e também em plataformas de streaming. A votação é referente ao ano de 2023, quando a Associação atingiu um grande marco ao celebrar seu 15º aniversário consolidada como uma instituição cada vez mais atuante e importante no ambiente cinematográfico do Rio Grande do Sul e do país.
Dividida em dois turnos, a eleição traz os melhores longas-metragens estrangeiro, brasileiro e gaúcho, além do melhor curta gaúcho do ano. A maioria destes filmes, aliás, fomos reportando aqui no blog ao longo do ano na seção Claquete. Fora desta seleção, a premiação da Accirs entrega, desde sua primeira edição, o Prêmio Luís César Cozzatti, que reconhece filmes, projetos, instituições ou pessoas de destaque no cenário audiovisual gaúcho.
Confira os vencedores do Prêmio Accirs 2023:
Melhor curta-metragem gaúcho:
"Centenário de Minha Bisa", deCristyelen Ambrozio
Tocante documentário poético da realizadora indígena Cristyelen Ambrozio, confirmando a escolha da nossa associação que, em agosto, no Festival de Cinema de Gramado, concedemos-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica. O filme tece diversas camadas simbólicas, desde a visão feminina, a dos povos originários, a necropolítica, a herança cultural. Uma joia de Cristyelen, de quem se espera que rendam novos frutos.
Melhor longa-metragem gaúcho:
"Casa Vazia", deGiovani Borba
O excelente filme de Giovani Borba, do qual tive a felicidade de participar de um debate em setembro, na Cinemateca Paulo Amorim, ao lado deste jovem realizador e da minha colega de Accirs e coordenadora da cinemateca Mônica Kanitz, era também meu preferido entre os longas gaúchos. Afinal, este thiller gaudério, misto de western e drama fantástico, pode ser visto com um marco do novo cinema no Rio Grande do Sul com obras como "Castanha" e "Mulher do Pai".
Melhor longa-metragem nacional:
"Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho
Outro documentário entre nossos premiados, e outro documentário de um olhar muito pessoal. Mas aqui, no caso, do grande nome do cinema nacional dos últimos anos, o pernambucano Kléber Mendonça Filho. Para quem acompanha sua obra tão marcante, ver o caminho afetivo percorrido por ele para a composição de seus curtas e, principalmente, os longas urbanos "O Som ao Redor" e "Aquarius", é emocionante e revelador. Foi o filme (mal) indicado a representar o Brasil no Oscar mas, mais uma vez, não ficou entre os selecionados. Não tem mesmo o perfil, pois trata-se de uma obra muito poética para o gosto da Academia.
Melhor longa-metragem estrangeiro:
"Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese
Ah, o velho Scorsese, hein? Já discorri mais amplamente sobre este novo filme do mestre do cinema norte-americano e mundial, mas não custa repetir, que "Assassinos..." é um dos grandes filmes de sua extensa filmografia. A visão revisionista da história "yankee" é não só mais um capítulo em seu importante papel para a reconfiguração dos mitos imperialistas como pertinente para o momento de valorização dos povos originários. Mestre.
Poster do curta "Glênio", de Luiz Alberto Cassol e exibido em Gramado
Prêmio Luís César Cozzatti (destaque gaúcho):
Glênio Póvoas
Glênio Nicola Póvoas é pesquisador, professor, diretor e roteirista, Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e Doutor em Comunicação Social pela PUC-RS. Com uma longeva carreira profissional dedicada ao cinema, em especial ao gaúcho, foi um dos principais responsáveis pelo lançamento do Portal do Cinema Gaúcho e assina a coordenação geral do projeto – um grandioso banco de dados sobre nosso cinema, apresentado em 2023. Tive o prazer de ser seu aluno na cadeira de Cinema na faculdade de Jornalismo.
Em junho, eu havia participado de uma sessão comentada sobre o belo “A Primeira Morte de Joana”, da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mário Quintana. Na ocasião, extremamente especial, pude discutir o filme com a produtora do longa-metragem Aletéia Selonk, da Okna Produções, a montadora Tula Agnostopoulos e a curadora da Cinemateca Paulo Amorim, minha colega de ACCIRS e de Jornalismo Mônica Kanitz, que me estendeu o convite. Mesmo com o gratificante posterior retorno da própria Cristiane, que mora em São Paulo e não pode comparecer naquele dia – mas assistiu ao vídeo completo do debate –, as correrias dos dias não me permitiram registrar aqui no blog aquele encontro.
Sessão de "A Primeira Morte..." com as parceiras de debate Tula, Mônica e Aletéa
Os meses passaram e um novo convite veio, intermediado pela mesma Mônica mas, desta vez, por ideia do próprio realizador, Giovani Borba, para uma sessão sobre o seu brilhante “Casa Vazia”, filme sobre o qual escrevi no Clyblog. Aliás, esta resenha, replicada nas redes sociais da produtora do longa, Panda Filmes, chegou a Giovani, que o motivou a contar comigo nesta feita. Saborosíssima, diga-se de passagem, seja por poder rever o filme, agora na tela grande, seja pelo contato presencial, seja pela ótima conversa, que transcorreu posteriormente à exibição.
Com a presença de um público enxuto, mas qualificado – entre os quais, um interessado Glênio Póvoas, meu ex-professor de cinema na faculdade e uma referência no que se refere à pesquisa e memória do cinema gaúcho – pudemos discorrer sobre aspectos de “Casa Vazia” muito interessantes e até elucidativos. Um deles é o rol de referências cinematográficas do jovem Giovani, que vai desde cinema iraniano à escola russa. Abbas Kiarostami e John Ford são duas delas. A mim já havia ficado evidentes as alusões aos irmãos Coen, principalmente ao new-western “Onde os Fracos não Têm Vez” (2007) e, especialmente, a Andrei Tarkowsky. A cena do incêndio da casa, chave para a trama de “Casa Vazia”, faz referência direta a de “O Sacrifício” (1986), porém é “O Espelho” (1979) com o qual o filme de Giovani guarda mais cruzamentos, seja na fotografia, nos enquadramentos e nos lances sensoriais.
Outro ponto bastante discutido foi a escolha de elenco e, em especial, a participação de Hugo Noguera, ator não-profissional mas que, nem por isso, atua com maestria – que lhe rendeu, inclusive, prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado de 2022, pelo papel do sofrido Raúl. Giovani contou que sua ideia inicial era de realizar um filme apenas com atores amadores, mas que essa ideia foi se modificando com o andar da pré-produção em razão de uma série de questões. Porém, o papel do protagonista era uma vontade a qual gostaria de não abrir mão de utilizar alguém que não fosse da profissão para que as características rústicas do gaúcho de fronteira restassem preservadas genuinamente. O encontro com Nogueira, homem de forte sotaque “portunhol” na vida real, foi quase por acaso, mas se mostrou certeiro. A obra se desenvolve, sim, a partir das ideias do roteiro do próprio Giovani, mas muito em função da forma de ser e da sensibilidade de Nogueira, que imprimiu, mesmo sem a técnica cênica formal, peculiaridades que ajudaram a formatar a personagem de Raúl. Giovani, como bom diretor, claro, acatou de bom grado tais contribuições.
Aos que não assistiram, “Casa Vazia” é um drama com toques de western, que trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista, um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes, o retrato social de um típico gaúcho na atual região do Pampa gaúcho, abordando o tema da pobreza no campo e evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal. Não é somente uma obra apreciável, mas, como bem disse professor Glênio durante a sessão como um entusiasta do filme, "Casa Vazia" é uma das melhores produções do cinema gaúcho contemporâneo, o que, assim como para com "A Primeira Morte...", pode-se já afirmar mesmo com tão pouco tempo de vida de ambos.
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Com Mônica e o talentoso Giovani falando sobre "Casa Vazia"
Foto "oficial" com os três após o rico papo na Cinemateca Paulo Amorim
Como no jornalismo, a máxima de que não existe imparcialidade também se aplica ao cinema. Por mais limpo que seja o discurso tanto numa área quanto em outra, buscando fugir de posições político-ideológicas na abordagem de determinado tema, é impossível evitar uma mensagem desprovida de subjetividades. Em cinema, no entanto, essa dialética opera um pouco diferente. Uma vez arte, a depender do que se quer contar, o distanciamento (crítico e controlado) favorece a absorção da própria mensagem – que, ironicamente, pode ser, sim, bastante ideológica em última análise. Colocar-se conscientemente neste limiar não raro ajuda a que o cinema cumpra seu papel mais essencial: contar uma história.
Esta é uma das fronteiras conceituais às quais o brilhante “Casa Vazia” suscita. Sem ajuizamentos simplórios, o filme conta uma história cheia de questões sociais, políticas, econômicas e comportamentais de uma maneira profunda e artística, convidando o espectador à reflexão. Com uma excepcional cena inicial – um plano-sequência estático de uma paisagem rural noturna – o filme dirigido por Giovani Borba (também roteirista da obra) se passa na região do Pampa gaúcho e aborda o tema da pobreza no campo, evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal, Raúl (Hugo Noguera), um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes. Desempregado, é um sujeito de poucas palavras e olhar melancólico.
Vencedor de 5 Kikitos, no Festival de Gramado, e um Troféu Redentor, no Festival do Rio, o longa trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista o retrato social atual de um típico gaúcho em uma zona historicamente romantizada, mas cuja realidade opera de maneira implacável. O clima de tensão da história, pelo qual é possível classificar o filme como um new western, se equilibra com o drama, personificado na pessoa de Raúl, um dos milhares de trabalhadores do campo que tentam se reorientar e lutar pela sobrevivência e preservar seus costumes.
O brilhante Hugo Noguera, retrato do típico gaúcho nos dias atuais
Alguns dos primorosos aspectos técnicos são essenciais para a construção da espacialidade e da estética de “Casa Vazia”, a se ver pela fotografia de Ivo Lopes Araújo. A exemplo de outras recentes produções gaúchas, a foto desempenha um papel central, ajudando a adensar estados psicológicos centrais para a narrativa proposta, como ocorre em “A Nuvem Rosa” (Iuli Gerbase, 2021) ou “A Primeira Morte de Joana” (Cristiane Oliveira, 2021). Em “Casa Vazia”, a vastidão da Campanha, com seu relevo e vegetação típicos em conjunção com a rusticidade das pessoas, coescreve a lógica das mentalidades e das inter-relações. A inospitalidade da natureza simboliza o vazio do interior humano, seja de ética, sentimento ou compaixão.
Neste sentido, o personagem Raúl é magnificamente bem construído estética e psicologicamente, fora a interpretação exata dada por Hugo Noguera. Sem família, sem dinheiro, sem amigos, sem emprego digno, sem qualificação diante do devastador agronegócio. Um ciclo tão vicioso quanto sua queda pela bebida – a qual é constantemente assediado sem pudores alheios. O que lhe resta? A também ausência de preceitos morais. Mas não existe certo e nem errado para o espectador. Ao mesmo tempo, Raúl é envolvido com contrabando e omisso com a família, mas, em contrapartida, um cidadão desassistido, relegado e triste. As próprias consequências sofridas pelo personagem já se bastam. Os pecados são todos dele.
A inóspita e desafiadora paisagem do Pampa: vastidão e esvaziamento
O professor e pesquisador da filosofia do trabalho Giovanni Alves usa o termo “compressão psicocorporal” para designar a demanda por produtividade do mundo atual, que opera como uma imensa fábrica que empareda o trabalhador. Assim, a “casa”, física ou metafísica, começa e termina no próprio corpo. Como no referencial filme brasileiro “A Casa de Alice”, é na corporificação que os paradoxos e vontades se dispõem. E assim como no filme de Chico Teixeira, de 2007, em que a personagem que lhe dá título é sufocada pelo externo machista em sua condição feminina, desabitando seu eu-interior, Raúl também é prensado por todos que o cercam: sociedade, família, trabalho, tecnologia. É como se, na amplidão pampeana, houvesse paredes que o espremessem e o condenassem à prisão dentro de si próprio: este indivíduo clássico do Rio Grande do Sul, mas anacrônico visto que desfavorecido pelo tempo. A própria região da Fronteira gaúcha, onde o filme se passa, é um símbolo disso. Invadida pela modernidade do “agro pop”, a zona fronteiriça com países como Uruguai e Argentina faz levantar muros invisíveis intransponíveis a quem a ela não se molda, reforçando – ao invés de combater – modos bárbaros arraigados, um maniqueísmo cruel e opressor. Só existe bem ou mal, poder ou miséria, pecado ou salvação, lei ou contravenção. Assim, a outra fronteira, a da dimensão entre o corpóreo e espiritual, perde-se, esvai-se.
A forma como os fatores são expostos em "Casa Vazia" levam o espectador a entender a sina de Raúl e não a julgá-lo. Afinal, não há para onde ele fugir: seja pelo lado “certo” ou “errado”, todos lhe desumanizam e o comprimem. Nem o além-matéria, momento em que o personagem tem contato com uma curandeira ou quando, em sonho, enxerga o mitológico Negrinho do Pastoreio (personagem folclórico de origem sofrida, não á toa popular), são suficientes para mudar sua rota degradante de tristeza, abandono e solidão. Da mesma forma como ficam expostas sobre a grossa relva os restos de gado atacados pelos ladrões, Raúl nada mais se transforma do que também um bicho despedaçado e sem vida atirado ao relento. Sem ser panfletário, "Casa Vazia" deixa claro que o mundo dos homens pode ser muito selvagem. Um lugar onde há espaço de sobra, mas com nada para lhe ocupar.