Mas não seria só isso que teriam em comum. Logo Humberto e Carlos Maltz, com a saída do baixista Marcelo Pitz da banda, convidam Augustinho Licks pra vaga. Surpreendentemente, Augusto topa. E Nei se sente bastante traído – fato agravado por alguns incidentes desagradáveis em shows dos Engenheiros para os quais fora convidado a dar uma canja.
Nei se via sem seu maior parceiro, num momento bem importante de sua carreira, de definições.
É quando, em julho de 1988, ainda contratado da EMI, Nei começa a gravar disco novo. O LP se chamaria “Hein?!” e, acreditavam todos, finalmente o projetaria nacionalmente. Ao menos era a aposta de quem acompanhava seu repertório daquele momento e o cruzava com o cenário de entressafra da MPB e do rock. No ano anterior, Vitor Ramil e Bebeto Alves haviam lançado seus discos mais populares até então,” Tango” e “Pegadas”, respectivamente. Mas faltava ainda um cara que transcendesse esse sucesso local pra pegar o Brasil pelo rabo.
As fichas locais estavam todas nele.
Só que, num intervalo das sessões, Nei volta ao Rio Grande do Sul e resolve passear na serra gaúcha com a namorada e uns amigos. E o imponderável age: um acidente de carro, perto da cidade de Nova Petrópolis. Leila, a namorada, morre.
Nada mais fez sentido. Termina o disco, é verdade. Que é, segundo muitos, seu melhor trabalho. Mas o astral era radicalmente oposto ao que tinha sido pensado. Era pra ser um LP debochado e irônico. Saiu amargo e doído.
Até a banda era das melhores e mais enxutas que ele já reuniu, com Pedro Tagliani – da banda instrumental Raiz de Pedra - no posto que fora de Augustinho, mais a cozinha de Renato Mujeiko e Fernando Paiva. Paiva logo depois se radicaria em Viena, onde se firmaria como grande instrumentista, e Pedro iria pra Munique com seu grupo. Os três juntos dão uma dinâmica e um senso de equilíbrio que resulta num disco com um raro colorido de vazios e espaços recortados por frases instrumentais inesperadas.
Alem dos três, gravados ao vivo no estúdio, pouco mais: Glauco Sagebin tocando piano e órgão numas poucas faixas, o violão de Nei em outras. Tudo mínimo, tudo cru e tudo muito sofisticado. Bem diferente dos trabalhos anteriores. Tanto que, ao contrário deles, é absolutamente atemporal. Você ouvia em 1988 e era atual. Você ouve hoje e segue contemporâneo.
Parte dos méritos disso são do produtor Mayrton Bahia, famoso pelos discos da Legião Urbana – outros que também resistem bem ao tempo (ao contrário de Reinaldo Barriga, o preferido pelo rock gaúcho de então, cujos trabalhos soam hoje retratos de época).
Além disso, estava ali a faixa-título, uma espécie de continuação de “Verão em Calcutá”, glosando o mesmo mote em versos ainda mais cínicos com relação ao circo do showbizz. E cutucando diretamente Titãs, Raul Seixas, e, também, os Engenheiros:
"Comprei uma guitarra usada, alguma namorada me passou batom.
Durou um tempo, até foi bom.
Mas quando eu disse que era o Rei, tirou o copo da minha mão e disse:
Hey! Hein?!?! Meu amigo, não se desfaça nessa fama, todo esse mundo do rock´n´roll é ruim de cama! Eles querem diversão e bolo, eles querem tudo e mais um pouco, eles querem krig-há-bandolo e champanhe. Eles querem frases nos jornais, eles querem parecer sinceros demais. (...) Eles querem te fazer de tolo, e eu também!"
Mas o disco não é só isso. Era também um trabalho de amor. Só que, quando aconteceu o acidente, nem todas as letras estavam terminadas. Era preciso, por exemplo, escrever a última estrofe de “Baladas”. Que saiu assim:
"Só, muito além do jardim, viajo atrás de sombras.
Não sei a quem chamar.
Mas sei que ela diria ao acordar:
Tudo bem. Você me arrasou, meu bem, e qualquer dia desses eu como as tuas bolas. Mas agora esqueça o drama na sacola... Não puxe o cobertor! Não tape o sol que resta nessa dor! Foi bom: não durou.
Oh, mama! Não vale a pena pagar um centavo, um retalho de prazer...
Oh, mama! Eu quero morrer... bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo vinho e olhando a bunda de alguém."
Evidentemente não houve nem alma nem ânimo pra trabalhar a divulgação. Uma terrível entrevista no programa de Jô Soares é a pá de cal nas suas relações já estremecidas com a gravadora: “No momento em que aconteceu o acidente, perdeu completamente o sentido aquele jogo que ao natural já se pode considerar medíocre: dono de gravadora, rádios FMs, essa rede que compõe o mercado, a indústria cultural. E que tu és obrigado a participar, te interessar, te preocupar e agir dentro disso se tu queres ‘tar no páreo da Música Popular Brasileira. Tudo isso, ao natural, já pode parecer medíocre. E naquele instante pra mim não valia um ovo. Eu queria era chutar o balde. E foi o que eu fiz em muitos instantes. No Jô foi um.”, disse Nei posteriormente.
A lápide foi sua recusa em gravar a versão de “Hey Jude”, dos Beatles, a tábua de salvação oferecida pela gravadora. Nei disse que até topava*, desde que ele escrevesse a sua versão da letra, em português. Bateram pé na versão dos anos 60, de Rossini Pinto. Não houve acordo.
Comprovando a tese dos caras, a canção virou um big hit na voz da segunda opção de artista pra gravá-la, Kiko Zambianchi. Durante muito tempo, o pessoal romantizou o lance. Mas atualmente Nei fala disso com crua sinceridade: “Meu público básico era todo daqui. Dez, 20 mil pessoas. Universitários, classe média. Que não aceitariam de jeito nenhum me ouvir cantar uma bosta daquelas. Ia jogar minha carreira pelo ralo. Não foi um gesto de ‘Isso é ruim, eu não quero cantar’, mas sim um gesto de ‘Isso é ruim e vai fuder com a minha carreira’. Cantar, em si, não ia me doer tanto.”
Nei também estava certo. Assim como virou um sucesso, “Hey Jude” parou ali a carreira de Kiko, que só voltou a ser comentado 15 anos depois, tocando com o Capital Inicial.
trecho do livro inédito de Arthur de Faria
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FAIXAS:
1. Zen - 00:30
2. No Fundo - 3:30
3. Nem Por Força - 4:12
4. A Fábula (Dos Três Poréns) - 3:50
5. Faxineira - 2:30
6. Baladas - 4:28
7. Rima Rica / Frase Feita - 4:07
9. Fim Do Dia - 3:40
9. Telhados De Paris - 5:20
10. Teletransporte Nº 4 - 3:03
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OUÇA O DISCO:
Nei Lisboa - Hein?!
Arthur de Faria é músico, compositor e arranjador. Produziu 27 discos, escreveu 35 trilhas para cinema e teatro, integra o Duo Deno, a Surdomundo Imposible Orchestra, o espetáculo Música de Cena e Música Menor – duo com o argentino Omar Giammarco. Por 20 anos liderou o Arthur de Faria & Seu Conjunto, com quem lançou cinco de seus oito discos e tocou em meia dúzia de países. Jornalista e mestre em Literatura Brasileira, ministra cursos sobre música popular brasileira no Brasil, Argentina e Uruguay, trabalha há 20 anos em rádio, publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas a pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre.