Duas lendas vivas da música brasileira,
juntas no palco
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Dos
grandes artistas nacionais, já vi quase todos ao vivo. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Chico Buarque, Jards Macalé, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Tom Zé, Roberto Carlos, Naná Vasconcelos. Faltam-me ainda João Bosco, Luiz Melodia, Gal Costa, Erasmo Carlos, Maria Bethânia, Edu Lobo e, claro, o confinado João Gilberto. Tendo em vista que estão em carreira desde os anos 50 e 60
a maioria, bem como pelo avançado de suas idades, minha lógica é:
“não posso deixar de vê-los, pois em breve não estarão mais
aqui para cantar”. Tom Jobim foi-me um caso. É fato, infelizmente.
Então,
o que dizer de Cauby Peixoto e Ângela Maria? Ela, 85
anos; ele, avançadíssimos 87. Ambos surgidos na era da Rádio
Nacional, anos 40, talhados nos cabarés da vida, ícones de uma
época que, em breve, vai morrer com eles. Quer dizer: a oportunidade
de vê-los, e juntos, fosse como fosse o espetáculo, valia a pena.
Pois estávamos lá, para não perder essa chance, Leocádia Costa e
eu, talvez os mais novos da plateia, visto que quase ninguém tinha
menos de 50 primaveras ali – uma triste mas natural constatação.
A
observação de “fosse como fosse” é proposital, pois há
uma semana o show havia sido adiado por conta de problemas de saúde
de Cauby. Até por conta disso, confesso que não esperava grandes
performances. Imaginava, sim, ver Ângela, na minha ideia, um pouco
melhor, segurando as pontas, enquanto a ele caberia apenas uma
participação “meia-boca”, mais para justificar que estava ali,
que o mito ainda existia. Já serviria. Mas, para minha surpresa,
abrem-se as cortinas vermelho-rubro do teatro e quem começa
cantando? Cauby Peixoto. Os movimentos elegantemente bregas e
insinuantes que o Brasil se acostumou a ver nos shows e na TV,
esqueça. Quem aparece no palco é um idoso vestido a seu estilo:
blazer de linho branco, camisa de sede, calças pretas perfeitamente
cortadas, sapatos lustrosíssimos, gravata borboleta e peruca
cacheada. Mas sentado, sem forças para levantar um instante sequer,
certamente colocado ali com ajuda de outros. Mas e a voz? Igual.
Impressionantemente igual. E mais impressionante ainda: bem
projetada, principalmente considerando que estava cantando sentado! O
mesmo timbre grave e aveludado, a mesma interpretação sensual e
treinadamente variante. Um fenômeno e ao mesmo tempo um contraste
imenso com aquela figura decrépita cuja bizarrice se adensava pela
tradicional pinta de dândi andrógeno.
Outra
surpresa: por incrível que pareça era Ângela Maria quem, mesmo de
pé (e sem precisar ler nenhuma letra, bem me observou Leocádia),
mais sofrera com o tempo e a idade, tendo em vista que fraquejou em
alguns lances nos tons médios, prejudicados pela falta de alcance
das cordas vocais e pela rouquidão característica (peculiaridade
que, entretanto, continua lhe emprestando charme e estilo). O que não
quer dizer que também não tenha dado um verdadeiro espetáculo.
Nossa, que cantora ela ainda é! Em “Babalu”, clássico de
Lecuonda imortalizado em sua voz, ela solta um agudo que se estende
por uns bons 40 segundos sem baixar a frequência! Intérprete na
mais correta acepção, ela cantou lindamente obras que ganham força
e expressividade especial em sua boca, como “Se Não for Amor”
(Benito Di Paula) e “O Portão”, de Roberto e Erasmo, que
emocionou a todos. Uma verdadeira diva.
Cauby sentado, debilitado fisicamente mas com a voz impecável,.
Já a voz de ângela começa a sofrer os efeitos do tempo.
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Os
duos e “tabelinhas” foram outro ponto alto. A abertura traz Cauby
lamentando “Chove lá fora”, logo emendada por “Noite
chuvosa”, com Ângela nos vocais. Como
veteranos acostumados a entreter as plateias, conquistaram o coração
do público com standarts como Vida de Bailarina”, “A
Pérola e o Rubi”, “De
Volta Pro Aconchego“
e “Tres Palabras”. Quando já estavam todos contagiados, eles,
sem deixar a bola cair, vieram com uma homenagem a Lupicínio Rodrigues. Aí a gauchada bairrista veio abaixo! Não precisa nem
dizer que as interpretações carregadas de emoção e teatralidade
de Ângela para “Nunca” e “Vingança” foram de dar dor de
cotovelo em qualquer um.
Não
faltaram os clássicos, obviamente. Ângela sensibilizou os viventes
com um duo de “Gente Humilde” e, em seguida, na mesma vibe, “Ave
Maria no Morro”. Cauby, por sua vez, mandou ver com “Granada”,
“You’ll
never know” (num inglês indefectível) e
numa curta mas competente execução de seu maior
sucesso, “Conceição”. Porém ele arrepiou este que vos fala em
“Bastidores”, verdadeira tradução da alma mundano-boêmia desse
artista feita por Chico Buarque em homenagem ao ídolo. E que
emocionante ouvi-lo dizer ali, naquela situação, sentado,
provavelmente em seus últimos dias de palco: “Cantei, cantei/
Como é cruel cantar assim...”. Os versos parecem ter uma
significância ainda mais ampla a quem, como Cauby e Ângela,
artistas de verdade, morrerão ali, junto do público, pois suas
vidas foram desde sempre dedicadas à arte.
O bis
foi ainda mais emocionante, quando a dupla trouxe “Carinhoso”,
fazendo toda a plateia cantar. O desfecho foi com outra de Roberto,
“Como é grande o meu amor por você”. E por falar em plateia, um
registro que considero importantíssimo: um público nota 10.
Vibrante com o show, calado durante as execuções, pedindo músicas,
cantando quando chamado, mandando mensagens de carinho nos intervalos
entre os números. Eu, que assisti ano passado neste mesmo teatro aos
shows de Milton e Gil, constato que o proto-cult público
jovem-adulto porto-alegrense, blasé e entojado, não é capaz de
fazer isso. Pois, por incrível que pareça, é a terceira idade que
se permite a essa a interação e, mais do que isso, demonstração
pública de sentimento. Emocionei-me várias vezes junto com eles,
como um bom velhinho de 75, 85, 95 anos (pois é: tinha uma senhora
perto de nós com essa idade...).
Ao
final, 3 minutos de aplausos. Chico estava certo quando disse que
todo o cabaré aplaudira de pé quando chegaram ao fim. Eu vi – e
aplaudi junto. Muito provável que esse tenha sido o último show
tanto de um quanto de outro em Porto Alegre. Quiçá, a última
turnê. Mas as palmas seguirão ecoando na boa acústica das casas de
espetáculo ou na péssima dos night clubs da zona. Não
importa, continuarão ecoando. Permito-me a uma leve correção ao
que outro compositor disse ao também homenagear o cantor: “Cauby,
Cauby!”. Estendo, com todas as honras, as salvas de Caetano a
ela também: “Ângela, Ângela!”.
Os
mitos nunca morrerão.
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa