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quinta-feira, 3 de junho de 2021

"Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez - ed. Record (1996)

 



"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara,
construídas à margem de um rio de águas diáfanas
que se precipitavam por um lei­to de pedras polidas, brancas e enormes
como ovos pré-históricos.
O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome
e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. (...)"
Frases iniciais de 
"Cem Anos de Solidão"


Me deparei há algum tempo atrás, na Internet, com duas curiosidades a respeito de "Cem Anos de Solidão" que me chamaram atenção e que, de certa forma, tem muito a ver com minha relação com esta obra. Uma delas é que uma pesquisa mostrava que "Cem Anos de Solidão" , publicado originalmente em 1967, era um livros que as pessoas mais mentem sobre terem lido, provavelmente para exibir algum status intelectual, mostrar boa bibliografia ou não sentir-se diminuído em uma discussão, dentro de determinado círculo ou diante de alguém que, eventualmente, venha a pôr à prova sua bagagem cultural.

Diante do resultado da pesquisa, já seria desconfiável se eu dissesse que li uma vez a obra-prima de Gabriel Garcia Márquez,  mas  mesmo correndo o risco de que duvidem de minha afirmação, uma vez que o número ao qual me referirei é, por muitos considerado uma quantia de mentirosos, devo dizer que, não apenas li, como o fiz sete vezes. Verdade! Juro!

Ah, não tem como resistir àquele início, àquelas primeiras frases! O que me leva à segunda curiosidade sobre a obra: outra lista, citava 10 ou 15 melhores, maiores, mais marcantes inícios de livro de todos os tempos. Estava lá o impactante começo de  "A Metamosfose" de Kafka, ("Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha ..."); a inconfundível introdução de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa ("Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade ..."); e, é claro, entre outros, o de "Cem Anos de Solidão". Se eu pegar esse livro e ler o primeiro parágrafo, eu, praticamente, não tenho como parar. Vou acabar lendo inteiro, de novo. Por sinal, quase aconteceu, de novo, agora, quando o folheei para refrescar a memória sobre algumas passagens e personagens. O que nos leva de volta à primeiro curiosidade.

A edição que tenho em casa, além de tudo,
tem belíssimas ilustrações do artista plástico
platino-brasileiro Carybé
Quem lê uma vez, precisa estar de novo em contato com aqueles personagens, aquele lugar, aqueles acontecimentos, reviver aquelas passagens. O colombiano, Nobel de Literatura, com muita sagacidade, concebe uma alegoria da formação da América Latina utilizando-se com criatividade e sutileza dos elementos intrínsecos aos nossos povos para montar um romance épico familiar inigualável. Estão presentes ali a valentia, a beligerância, o sangue-quente que serve para a batalha mas também para o amor, a sensualidade, a passionalidade, o respeito às tradições, o misticismo, e até a ingenuidade e uma certa inocência que, se fizeram de nós povos solícitos, receptivos,  hospitaleiros, mas também, muitas vezes facilmente engambeláveis. Simbolizada pela família Buendía, cujos nomes dos homens se assemelham, se ramificam e se repetem numa árvore-genealógica labiríntica, as características dos latino-americanos são desenhadas em cada personagem com traços mágicos e apaixonantes como a bravura irrefreável de Aureliano Buendía, persistente até o último  momento, mesmo diante de um pelotão de fuzilamento; a liderança mobilizadora de José Arcadio Segundo; a força e o apetite sexual de José Arcadio; a beleza hipnótica de Remédios, a bela, que levava os homens, literalmente, à loucura e até mesmo à morte, contrastando com sua pureza e inocência infantil; a experiência e sabedoria da anciã Úrsula, que mesmo depois de perder a visão conhecia o lugar de cada coisa na casa, dentre tantos outros pormenores que o autor desenvolve magnificamente, repletos de elementos simbólicos, ao longo da trajetória daquela casta.

Além disso, o autor nos apresenta figuras riquíssimas sobre os elementos de formação e desenvolvimento do continente com a dose certa de teor crítico e potencial reflexivo, tal como as contendas políticas e o surgimento de regimes autoritários; o galeão espanhol descoberto em expedição, muito além dos limites de Macondo, revelando-lhes, quase como uma nave extraterrestre seria para nós, que, para eles, eram os deuses navegadores; ou ainda exploração americana, simbolizada na Companhia Bananeira e na misteriosa chuva torrencial que, convenientemente, começa após a greve e ao massacre de funcionários na estação de trem, e que dura por anos impedindo investigações, persistindo até o fato ser esquecido. Isso tudo sem falar nos elementos "visuais" fascinantes, como as borboletas amarelas do apaixonado Maurício Babilônia, o tapete voador dos ciganos e outras "tecnologias" que encantavam os moradores do povoado; os peixinhos dourados do Coronel Aureliano, os bilhetes com o nome de cada coisa para que as pessoas não esquecessem os mais corriqueiros objetos e suas utilidades, na época da Peste da Insônia; a imagem do patriarca e fundador de Macondo, José Arcadio Buendía, já senil, amarrado a uma árvore atormentado pelo fantasma do homem que matara; e as altamente metafóricas formigas vermelhas que levam o último Buendía, extinguindo a extirpe e aquele povoado. Nessa parte, ainda nas últimas vezes, mesmo já conhecendo o livro de cabo a rabo, e mesmo depois de tantas releituras, não é incomum chegar à última página com os olhos cheios d'água.

Se "Cem Anos de Solidão" figura nestas duas curiosas listas, uma outra na qual é mais comum encontrá-lo, com muita justiça, por sinal, é a de melhores livros de todos os tempos. O que, nesse caso, não representa nenhuma surpresa. Quem já leu, provavelmente, não terá dúvidas em colocá-lo lá. Mas só quem já leu mesmo. Não vale mentir.


Cly Reis