Tudo aconteceu numa escaldante e misteriosa madrugada carioca no estúdio Somil, em Botafogo. A data é imprecisa. Ninguém sabe ao certo; só se tem uma vaga lembrança de que foi num final de semana de fevereiro de 1974. Os técnicos do som Ary e Célio, depois de uma sessão com Belchior, que gravava seu primeiro disco, organizavam as últimas coisas antes de fecharem tudo e irem embora. Mas eis que, no final da noite, imbica enviesado na frente do estúdio o famoso Fusca 71 roxo e verde de Neyde Zis . E quem ao volante a acompanhava? Ele: Tim Maia . Os dois, “maleixos” de uísque e sabe-se lá do que mais, já desceram cantando em dueto “Brother”, o gospel maravilhoso do mano Jorge Ben . Com seu barítono inconfundível, ele reforçava o agudo nos versos: “Prepare one more happy way for my Lord” como se tivesse tomado pelo espírito de um cantor de igreja norte-americano. Ela, por sua vez, usava seu timbre rouco capaz de atingir agudos impressionantes, destilando uma segunda voz cheia de swing e emoção. E quando chegava na parte: “Jesus Christ is my Lord, Jesus Christ is my friend” era um verdadeiro desbunde: os dois, em uníssono. De arrepiar. Soul music na mais pura acepção.
Ary e Célio se entreolharam, ao mesmo tempo com admiração por presenciarem aquele belo dueto, mas também segurando a gargalhada por acharem engraçadíssimo ver aqueles dois abraçados cambaleando com uma garrafa que passava de mão em mão. Mas o que não previam era que, naquela noite, Neyde Zis e Tim Maia não tinham enchido o saco para ficarem com as chaves do estúdio à toa. E o que os técnicos jamais imaginariam, depois de darem as costas e “lavarem as mãos”, era que, por exemplo, aquela versão de “Brother” que ouviram entre soluços embriagados seria, horas depois, registrada numa performance perfeita, com espontaneidade e técnica, desfechando a mais obscura e inspirada jam session já documentada na MPB: o clássico álbum “Neyde & Tim”.
O disco é o ápice da carreira da “Diva Black”, “A menina mulher da pele preta”, como a apelidara Jorge Ben , que a homenageara com a música que dá título ao primeiro álbum dela, de 1969. Depois de várias participações em trabalhos de parceiros – leia-se Cassiano, Tony Tornado, Hyldon e Bebeto, ou seja, só a nata da soul music brasileira –, ela, influenciada pela guinada pós-tropicalista do amigo Erasmo Carlos e do próprio Ben, grava o já muito bem comentado neste blog por Eduardo Wolff , "Dó-Ré-Mi-Fa-Sol-Lá-Zis" , considerado por Oberdan a principal influência da Banda Black Rio e o melhor disco brasileiro dos anos 70. E não só ele a idolatrava. Até artistas internacionais louvavam Neyde Zis, como declarou Isaac Hayes, em entrevista de 1997 a BBC, quando perguntado qual a melhor cantora black de todos os tempos: Aretha Franklin ou Billie Holiday. Negando ser nenhuma das duas, ele respondeu com seu vozeirão de Chef: “The best black woman singer lives in Brazil. She’s called Neyde Zis.”
“Neyde & Tim” não tem comparação, e pode ser considerado um capítulo à parte na carreira tanto dela quanto na do “Síndico”. A sessão foi quase ininterrupta, tudo ao vivo, apenas uma paradinha e outra para emborcar um gole de uísque, fumar unzinho e comer um pouco de goiabada – coisa que Tim sempre carregava consigo para a sobremesa. O disco abre com uma obra-prima composta por Gilberto Gil no exílio em Londres: “Nêga”, que não coincidentemente fez parte do repertório de uma outra jam que jamais existiria não fosse “Neyde & Tim”: o disco “Gil & Jorge Xangô Ogum”, confessa homenagem de Gil e do Babulina à dupla. Nessa versão, mais cadenciada e romântica que a original, o vocal fica por conta de Neyde, que carrega na sensualidade. Tim, responsável por toda a cozinha, entrecorta a linha melódica soltando versos que pareciam ter sido escritos por Gil para Neyde: “The tropical nêga” ou “This nêga is my”.
Hayes: "Neyde Zis é a melhor
cantora negra de todos os tempos."
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Sabe-se lá como, mas o Paulo Ricardo, o Rubens e o Serginho Trombone, que na época tocavam tanto na banda de um quanto de outro, apareceram por lá e gravaram a guitarra, o baixo e os sopros, enquanto Tim cuidava da bateria, do violão e de uma caxeta que trouxeram de um show em Niterói ocorrido horas antes. Neyde só se incumbia de emprestar sua voz. E era o que bastava. No máximo, um chocalho ou uns acordes de violão. Foi com essa formação que gravaram “Psychoblack”, um funk lisérgico de dar inveja a qualquer Parliament-Funkadelic; “Farofa”, baião eletrificado com uma bateria pesada cheio de groove; e “Retorno”, um samba-rock que captou o momento em que Tim reclamava do técnico de som que era... humm, ele mesmo. Todos – àquela altura já envoltos na fumaceira que tomava todo o estúdio –, caíram na gargalhada, e a música ficou uma das mais espontâneas do disco.
Ao todo são apenas 10 faixas de várias que a dupla tocou até as 7 da manhã do dia seguinte. Pelo menos foi isso que veio parar na mão do produtor Mariozinho Rocha, que finalizou a mixagem. Os LP’s impressos na época hoje são raridade, e valem uma fortuna no mercado alternativo. Sabe-se de colecionador no Japão que não vende seu exemplar nem por dez castelos de Osaka. Mas agora esta versão remasterizada com capricho no Abbey Road pode fazer com que mais pessoas possam dar o devido valor a uma das obras mais importantes da nossa música e, enfim, fazer justiça a uma artista infelizmente esquecida neste Brasil sem memória. Salve o “Gênio” Tim, claro, mas, acima de tudo, salve a “Musa” Neyde Zis!
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O impacto da noite de orgia musical e lisérgica foi tanto que, logo depois desta fatídica madrugada, Tim caiu em uma forte abstenção e a uma crise existencial que lhe levou a ler um tal de livro chamado “Universo em Desencanto”. O resto da história todos sabem no que deu.
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Poucos sabem, mas “Acenda o Farol”, gravada por Tim em 1978 no disco “Tim Maia Disco Club”, foi criada naquela noite. Quando os dois tiveram a delirante ideia de se dirigir ao estúdio da Somil, ambos vinham juntos de Niterói no tal fusquinha, que aprontou de furar um pneu no caminho. Tim, puto com o ocorrido, ao invés de ralhar, inventou uma música. Enquanto trocava o estepe lá fora, gritava para Neyde lá dentro do carro: “Pneu furou/ Acenda o farol/ Acenda o farol...”. A música foi gravada para “Neyde & Tim”, mas, infelizmente, perderam o único take porque puseram outra por cima (coisa de gente grogue). Tim só foi redescobrir a música anos mais tarde porque a encontrou escrita num papel amarrotado no bolso de uma calça que tinha usado apenas uma vez, ou seja, na histórica noite da gravação de “Neyde & Tim”.
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FAIXAS:
1. Nêga (Gilberto Gil)
2. Zismaia (Neyde e Tim)
3. Ogulabuiê (tradicional: ponto de umbanda)
4. Batuque (Neyde e Tim)
5. Farofa (Tim Maia)
6. Psychoblack (Tim Maia)
7. Kaxassa (Tim Maia)
8. Som (Ari, Célio e Tim Maia)
9. Retorno (Tim Maia)
10. Brother (Jorge Ben)
por Daniel Rodrigues