Antiperformance
por Fabrício Silveira
direto de Manchester (UK)
Andrew Fearn e Jason Williamson da retroporjeção punk da Sleaford Mods |
Não há quase nada
em cima do palco. Não há equipamento algum, além de um pedestal de microfone e
uma mesa de bar, lado a lado. É até um pouco estranho encontrar ali aquele
móvel rústico, com pernas dobráveis, trabalhado em madeira nobre. Sobre ele, há
um laptop fechado, discreto, quase
invisível, que se confunde aos desenhos e aos padrões cromáticos da toalha de
mesa. Ao fundo, espessas cortinas de veludo escuro. Em contraste, há uma forte
luz branca, opressiva e desconfortável. Este é o cenário. Não há mais nada em
cima do palco.
Dois sujeitos,
ambos na faixa dos quarenta anos de idade, surgem repentinamente. Com orgulho,
cumprimentam os presentes, gesticulando. Sorriem. Entre abanos, exibem os copos
de cerveja que trazem às mãos. São centenas de pessoas na plateia – cinco,
talvez seis centenas. É um público muito diverso e animado. Num primeiro
momento, é difícil especificar alguma faixa etária, reconhecer algum padrão
sócio-demográfico. Trocam, enfim, efusivas saudações. O espetáculo está para
começar.
Sleaford Mods é o nome da dupla – hoje, um dos mais
representativos e interessantes grupos musicais de toda a Inglaterra. As luzes
atenuam-se. Num passo para trás, curvando-se, levemente, Andrew Fearn abre o
computador pessoal, que se mostra então coberto de stickers e adesivos. Faz um sinal afirmativo para Jason Williamson,
alertando-o, à frente do microfone. Aperta o play.
Imediatamente,
ouvimos as bases pré-gravadas. São lo-fi
beats. São batidas cíclicas, duras e repetitivas. Há uma sonoridade
orgânica nas linhas de baixo. Há uma pulsação grave, que sentimos na espinha,
severa, que nos pressiona o peito. Máximo minimalismo.
Ao entrar em ação,
Williamson apresenta um inacreditável repertório de tiques e trejeitos
engraçados. Agitado, coça a nuca, fazendo as gotas de suor jorrarem da cabeça,
soltas no ar, desprendidas e visíveis, voando contra a luz. Ao cantar, lembra Johnny Rotten, pela impostação punk, o tom irritado, os olhos arregalados, como
se falasse contra a iminente ameaça de uma interdição, como o produto de uma
urgência absoluta. Gotas de saliva saltam-lhe da boca. As palavras vão juntas,
cuspidas, expulsas da garganta, quase à força. Parece tratar-se de uma discussão,
um agressivo bate-bocas.
Porém, as
aparências contrastam. São duas posturas, duas atitudes opostas à nossa frente.
Ocorre um "choque performático", um embate, uma anulação entre
performances. De um lado, um cantor nervoso, gesticulando sem parar, cuja fúria
se manifesta no modo como fala, na pronúncia que dá a cada frase, cada palavra,
muitas vezes produzindo sons extravagantes, risos forçados, interjeições, failed human beat boxes. De outro lado,
a encarnação da tranquilidade: o colega que aperta o play, entre uma música e outra, enquanto bebe uma cerveja e balança
o corpo junto às marcações rítmicas, despreocupado como um adolescente em
férias.
Andrew Fearn é um
anti-DJ, um "DJ-três acordes": aquele que carrega o computador até o
palco, ligando-o e nada mais. Apenas isto. Depois, basta certificar-se de que
tudo está em ordem, que os arquivos de áudio estão abrindo no momento certo, na
sequência imaginada. É a melhor profissão do mundo, poderíamos pensar. E ele,
de fato, está absolutamente relaxado. Descansa as mãos nos bolsos da calça. Volta
a beber. Tira fotos do público enquanto o show se
desenrola. Fala ao celular. Fuma. Checa mensagens e posts no Facebook. Poderia ser qualquer um, um cidadão ordinário,
apanhado ali por acaso ou distração. Ao seu lado, o amigo irado, cantando,
fazendo rimas e explodindo de raiva.
Os Sleaford Mods
lembram muita coisa, apesar de toda originalidade: Sex Pistols, Prodigy, gangsta rap, música eletrônica e garage rock desconstruídos, uma longa
tradição inglesa de canções de protesto e apego à rua. Em síntese, é uma nova
variação retroprojetiva do punk. Há um pronunciado acento político nas
composições. Slang em demasia. Para
um estrangeiro, é quase impossível compreendê-los. Mesmo assim, é agradável ver
o auditório cantar junto, como se entoassem hinos locais, cânticos de
celebração. Conforme me disseram, as letras falam de regiões e bairros
específicos, no norte da Inglaterra, especialmente em Nottingham, de onde eles
vêm. Falam de políticos e autoridades locais. Citam o dia-a-dia banal, o preço abusivo
dos produtos no supermercado, as piadas internas, as gírias de esquina.
Debocham da Família Real e dos hábitos londrinos. É uma apropriação do rap, feita por trabalhadores pobres e
politizados do norte inglês.
Ao final, o tom não
é festivo nem amistoso. Ao escutá-los, produz-se um sentimento estranho: de que
uma canção pop deve instruir à revolta, despertar a consciência revolucionária,
suscitar a vontade cívica de gritar ("–
Fuck off!") e ir atrás do primeiro político que aparecer, para
cobrar-lhe satisfações, com o dedo em riste, apontando-lhe o rosto.
Para eles – por
hipótese –, não há distância entre performance e vida cotidiana. Se houver,
trata-se de encurtá-la. A música deve ser o veículo de uma frustração, de repercussão
e alcance coletivos. Sleaford Mods é uma caricatura performativa da classe
trabalhadora, a manifestação de um descontentamento incontrolável,
profundamente enraizado. Antiperformance.
vídeo de "Tied Up the Nottz" - Sleaford Mods
Fabrício Silveira é jornalista (UFSM), mestre em Comunicação
(UFRGS), Doutor em Comunicação (Unisinos). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, em São Leopoldo/RS. É
autor dos livros “Grafite Expandido” (Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2012) e “Rupturas
Instáveis. Entrar e sair da música pop” (Porto Alegre: Libretos, 2013). É
bolsista CAPES de Pós-Doutorado Sênior no Exterior (processo n. 5939-14-3),
realizado junto à University of Salford, em Manchester, na Inglaterra (UK),
entre fevereiro e julho de 2015.