Fernanda Isse é graduada em Moda com especialização em Gestão de Pessoas, mestranda em Processos e Manifestações Culturais e acadêmica em Artes Visuais. Desenvolve desenho e pintura em diversas formas desde a infância na Fundação Municipal de Artes de Montenegro. Integra o Atelier Livre da instituição sob orientação da artista Loíde Schwambach desde 2009. Já participou de diversas mostras coletivas e individuais pelo Rio Grande do Sul. Atua como educadora, figurinista e comunicadora nas áreas de Moda e Arte. Também é integrante do Conselho Municipal de Cultura de Montenegro.
Seguimos
com a listagem de filmes essenciais para entender o cinema brasileiro
das décadas de 60, 70 e 80. Começamos com os gloriosos e
revolucionários anos 60, do qual extraímos, de um universo numeroso
e profícuo, 20 joias. Agora, no entanto, como diz a gíria popular,
“o buraco é mais embaixo”. Nos anos de chumbo, com o
afunilamento dos direitos sociais e políticos advindos com o AI-5,
de 1968, o cerco fechou para qualquer cidadão que quisesse se
expressar ou simplesmente dar-se ao direto de pensar diferente do
sistema vigente. Torturas, desaparecimentos e perseguições
aumentaram. E claro que a classe artística, incluindo quem fazia
cinema, foi uma das maiores prejudicadas nos anos 70. Toda a geração
de cineastas e autores advindos com a explosão criativa dos 50/60,
acuados ou exilados, mal conseguiam levantar recursos para produzir
aquilo que pensavam – claro, se aquilo que pensavam não concordava
com o que os militares queriam.
Resultado?
Perda de espaço para o cinema norte-americano e europeu e, no
próprio mercado interno, para as famigeradas “pornochanchadas”,
as malditas produções baratas e mal-acabadas financiadas pelo
governo não eram nem pornôs nem chanchadas e que serviam
basicamente para entreter o povo com o que ele mais gosta e odeia em
si: a malandragem e a sacanagem.
O
minguamento do cinema de autor foi perceptível: nos anos 70, a
grande cabaça do moderno cinema brasileiro, Glauber Rocha, produziu
na Espanha, Itália, Cuba, Portugal e Congo, menos no Brasil. Nelson
Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni e vários
outros não conseguiam estabilizar um nível de produção digno,
oscilando entre filmes ótimos a fracos. E pior: às vezes, faziam
filmes até bons, mas cuja qualidade técnica comprometia tanto que
restaram inviáveis de se assistir.
No
entanto, era muito talento e coragem para que nada desse certo. De
tudo que se produziu na década, 15 longas podem ser considerados,
cada um por um motivo, obras essenciais para o, àquela época, ainda
mais combalido e combativo cinema brasileiro no século XX. Tanto é
verdade de que foram cineastas vitoriosos que todos os títulos
elencados são obras de nomes da geração anterior. Nota-se um
aperfeiçoamento da linguagem metafórica do Cinema Novo e um
amadurecimento do cinema popular, bem escrito e com olhos para todos
os públicos. Em contrapartida, há um adensamento da linguagem
transgressora do cinema marginal e que o coloca ainda mais à margem
do mercado. Então, entre mortos e feridos (literalmente), os 15
filmes essenciais para entender o que é cinema brasileiro nos anos
70:
1 -
“Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (70) – O cinema
underground do Sganzerla avança brutalmente neste filme
altamente transgressor e simbólico, onde ele mistura metáforas do
terceiro mundo, chanchada, rádio Nacional e cinema de poesia.
Anárquico, louco e ainda assim engraçado por conta do maravilhoso
Jorge Loredo como Zé Bonitinho, que “ancora” toda a
(não)história. Memorável sequência com Luis Gonzaga tocando
enquanto Helena Ignez e Loredo encenam.
2 -
“Copacabana Moun Amour”, Rogério Sganzerla (70) – O cara
tava tão inspirado que fez dois filmes essenciais em apenas 365
dias. Devaneio intelectual na Rio de Janeiro em época de ditadura,
numa referência metafórica ao fim da civilização, à nouvelle
vague (principalmente Resnais de “Hiroshima Moun Amour”) e,
claro, ao cenário político brasileiro. E a trilha é algo de
genial, composta especialmente por Gilberto Gil, que a mandou do
exílio em Londres, e que virou um disco clássico da carreira do
baiano.
3 -
“São Bernardo”, Leon Hirszman (71) – Adaptação do livro
do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história,
mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande
fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos
latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles
filmes impecáveis em narrativa e concepção. E o Leon, comunista
como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado
quanto à reforma agrária.
4 -
“O Doce Esporte do Sexo”, Zelito Viana (71) – Filme de
episódios com ninguém menos que Chico Anysio, na época, no auge de
sua criatividade como ator e escritor. Dirigido por seu irmão,
Zelito, é um bom exemplo de que já se faziam comédias mesmo numa
época de produções pobres como foi os anos 70, considerando que
hoje se faz esse gênero às pencas no Brasil com ótimas produções
mas nem de perto com a qualidade de texto de “O Doce Esporte...”.
5 -
“Como Era Gostoso o Meu Francês”, Nelson Pereira dos Santos
(71) – Nelson Pereira teve dificuldades nos 70 de produzir com a
qualidade técnica que ele sabe, mas esse aqui saiu perfeito. Comédia
bizarra sobre antropofagia cultural e canibal. Uma fantasia que põe
Hans Staden em cores modernistas e que evidencia uma série de
lacunas de nossas cultura e civilização. Ganhou Brasília e foi
indicado ao Urso de Ouro em Berlim. Engraçado e profundo.
6 -
“Vai Trabalhar, Vagabundo”, Hugo Carvana (73) – Outra ótima
comédia, primeiro filme do Carvana atrás das câmeras – que se
pôs na frente também, pois ele mesmo faz o hilário Secundino
Meireles, personagem principal que retrata o brasileiro consciente
com a situação do País mas de saco cheio com a miséria moral e
política. Trama inteligente, crônica da sociedade da época. Venceu
Gramado. Trilha original linda do Chico Buarque. Um barato.
7 -
“O Marginal”, Carlos Manga (74). O Manga produziu pouca coisa
pra cinema depois dos 60. Esse é o único de ficção dele dos anos
70, mas toda sua experiência de cenas de aventuras nas várias
chanchadas que dirigiu desde os anos 40 estão aqui, adicionado a um
teor psicológico superconvincente e bem conduzido. Música original
de autoria de Roberto e Erasmo, um luxo. E o Tarcisão tá ótimo.
8 -
“Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (76) –
Provavelmente a melhor adaptação de Jorge Amado para a tela grande
e o melhor brasileiro da década. Por 34 anos foi recordista de
público no cinema brasileiro, levando mais 10 milhões de
espectadores às salas de exibição. Fotografia, roteiro, trilha e
atuações memoráveis. Cheio de cenas inesquecíveis, como a da
morte do Vadinho e os diálogos entre Wilker e Sônia Braga. Um
clássico vencedor de Gramado e indicado ao Globo de Ouro de Filme
Estrangeiro.
9 -
“Xica da Silva”, Cacá Diegues (76) – Também sucesso de
bilheteria. Cacá emendou uma sequência de ótimas produções nos
anos 70, talvez o cineasta que melhor tenha produzido de todos os
remanescentes do Cinema Novo. Este é um “épico à brasileira”.
Zezé Mota encarnou super bem Xica, o grande papel dela no cinema.
Mais uma vez, a trilha do filme do Cacá se destaca: a música
original é do Jorge Ben.
10
- “A Queda”, Ruy Guerra e Nelson Xavier (76) – Ruy Guerra,
outro comunista irrefreável como o Leon, co-dirige com o também
ator Xavier um pequeno episódio de um operário que morre na queda
de um andaime, história que usa pra gerar toda uma crítica
político-social. Trilha do cineasta (que também era compositor) em
parceria com ninguém menos que Milton Nascimento. Urso de Prata em
Berlim e Margarida de Prata pela CNBB.
11
- “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando
Senna (76) – Quer filme mais “marginal” do que um com cara de
documentário anárquico, rodado com câmera na mão, usando vários
atores amadores nativos, Pereio cheirado e fumado até as guampa,
proibido pela censura e que só foi exibido pós-Abertura, 6 anos
depois de finalizado? Filme que inspirou muito Fernando Meirelles.
Palavras dele.
12
- “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco
(76) – Lembro que assisti esse filme pequeno e me deixou com medo,
de tão tenso que é. Policial bem realista, com Reginaldo Faria
estupendo no papel do assaltante de bancos em crise de identidade,
mas que não tem como sair daquele círculo vicioso. Forte pra
caralho. Melhor Filme na Mostra Internacional de Cinema São Paulo,
além de levar vários Kikitos em Gramado (Ator, Ator Coadjuvante,
Fotografia e Edição).
13
- “Chuvas de Verão”, Cacá Diegues (78) – Filme pequeno
com cara de conto. Delicado e atípico em tema, pois aborda o amor na
terceira idade. Interessantes as ligações com a vida social
brasileira e do choque de culturas do velho e do novo. Uma joia que
levou prêmios em Brasília, Rio e São Paulo.
14
- “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (78) – Embora não goste do
Jabor, pretensioso e “intelectualóide” reacionário, esse aqui é
muito legal. Durante a obra de uma antiga casa no subúrbio carioca,
a sociedade brasileira (a qual se transformaria na classe média
atual) aparece como uma “fauna”: caricata, preconceituosa,
mal-resolvida. Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo geniais.
15
- “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (79) – Demarca o fim da
segunda fase de Cacá, com referências do Cinema Novo mas mais
amadurecido. Ao mesmo tempo que reflete com crueza a vida de pessoas
pobres e sem perspectivas, também ressalta a beleza e a magia
intuitiva de artistas mambembes. Daqueles filmes feitos na hora certa
e pela pessoa certa. Um registro sociocultural e político de um
Brasil florescendo e que veio a dar naquilo que somos hoje. Destaque
de novo pra trilha, não só as músicas originais do Chico Buarque
mas também os “bregas”, que tocam aqui e ali e funcionam tri
ambientais.