"Trama Sangrada" -
Rodrigues, Daniel
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Chegou em casa pelas seis e quarenta e cinco da tarde, como regularmente
chegava todos os dias. Entrou pelo portão frontal e passou pela primeira casa
em direção à sua, nos fundos. No estreito corredor lateral, nem percebeu o
cumprimento de dona Eulália, a vizinha idosa, boa gente e muito carente, que
logo, logo ia se recolher. Ela, sem atenção dos parentes, o esperava naquela
hora todos os dias para dar um simples “boa noite”. Mas aquele dia não era “todos
os dias” para ele: era um dia diferente. Era o dia em que, finalmente, acabaria
com aquela agonia.
A porta de madeira envelhecida e de pintura gasta estava entreaberta
como sempre. Empurrou-a com a palma e entrou. A mulher, como de costume àquela
hora, estava na pia, lavando louça. Ela não tirou os olhos da água, mas
obviamente percebeu a chegada do marido, já tão corriqueira e banal que não
merecia o esforço de um “oi”. Mas ele, ao invés de entrar e ir direto em
direção da térmica na mesinha para servir seu cafezinho tradicional, parou logo
depois da porta a olhar para a mulher. De pé, com o macacão sujo de graxa, mas
com as mãos limpíssimas e fedidas de querosene. Largou cuidadosamente a maleta
de ferramentas ao lado da pia e continuou ali parado, fitando-a com um olhar curioso
mas ao mesmo tempo desamparado e doentio. Não deu muito tempo e ela, notando-lhe
a falta de reação, parou a lavagem impaciente:
- Qué qui foi, hôme?! – rosnou-lhe. – Vai ficá aí parado
feito jerivá? Não me diz que tu já tá com aqueles piri-paque de novo?
- Qui piri-paque qui nada, mulhé! Joga essa boca pra lá! –
desviando o até então fixo olhar.
- Olha, Jair, eu já te falei qui se tu não cuidá dessa
pressão eu também não te cuido. Vai morrê tendo um tréco na minha frente
sozinho qui eu não vô nem te acudí!
- Não é pressão, Nilza. Pára de falá berstêra!
- Hum... se eu não te conheço – falou desconfiada, mirando-o
com a testa franzida e voltando-se de novo para a louça.
Calaram-se novamente. Ouvia-se apenas o latido insistente do
Bóbi vindo do pátio, que não parava desde que ele chegou. Os latidos o
incomodavam, mas, por outro lado, ele estava comemorando no seu íntimo pela
reação da mulher. Não pela grosseria, com a qual já estava acostumado, afinal
quem iria dar valor para um homem fraco, doente, sem instrução e que “mal
consegue botar arroz e feijão dentro de casa”? Ninguém, nem mesmo ele. Tinha
consciência de que era um fracassado (afinal, não era assim que seu pai lhe chamou
a vida toda enquanto esteve vivo: “fracassado”?). A comemoração era, sim, por ela
ter creditado que o seu comportamento diferente se devia à saúde. Que bom, pois
isso a despistava. A não-desconfiança da mulher (sempre muito atenta a todos os
movimentos dele, como se sempre antevisse o que ele ia fazer ou dizer), assim,
era menos um obstáculo para o que tinha em mente. Maria Cristina não voltaria,
porque tinha ido dormir numa amiga. Só faltava agora dona Eulália se recolher,
o que fazia todos os dias pontualmente às sete da noite, bem cedo, coisa de
velha. Mas ainda faltavam alguns minutos, e aquela postura estática era porque ele
estava uma pilha de nervos. Soava frio debaixo do macacão, meio inebriado, tão
nervoso que seus movimentos pareciam congelados, pois ainda permanecia de pé no
mesmo lugar de quando chegou. Como um jerivá plantado ali há séculos.
Ainda atida aos pratos, ela observou-o de canto, mais com a
sobrancelha do que com o olho, e soltou:
- Teu irmão Oswaldir que teve aqui mais cedo...
Silêncio dos dois. Dela, de expectativa pelo o que ele iria
falar, e dele, de total incômodo com o fato. Tanto desacomodou que o fez sair
daquela inércia e, finalmente, dar passos em direção à mesa da cozinha. Bóbi,
lá fora, seguia latindo. Parou de novo ali, em pé. Virou a cabeça e observou
pela basculante acima da pia a casa da frente: dona Eulália já tinha fechado a
janela. A luz ainda estava acesa, mas já havia fechado a janela. Bom sinal;
sinal de que em minutos poderia entrar em ação e acabar com aquela humilhação,
com aquela sem-vergonhice de uma vez por todas. Meu Deus, pensava, era muito
rebaixamento para um homem. Se ainda fosse com um outro... mas... o próprio
irmão! E dentro da sua casa! Que descaramento! O que dona Leni (“que-Deus-a-tenha”),
ia pensar daquilo? Seria muita tristeza para uma mãe, pensava, ainda mais para
ela, que teve a vida tão sofrida.
Ele entendia o porquê das risadinhas e piadas maliciosas dos
colegas e até de clientes na oficina. Claro que entendia! Mas fazia-se de tonto,
o que, porém, não diminuía sua dor. Não conseguia nem pensar nos dois na cama
se tocando, se alisando, se beijando, babando um no outro... Dava-lhe náusea, e
a pressão, que andava cada dia pior, subia nas alturas. Mas naquele dia ele
controlou a pressão com o remédio e segurou a ansiedade o dia todo, concentrado,
como um assassino frio e calculista. Agora, no entanto, seu estado nervoso lhe
traía. Suava feito um porco testa abaixo, costela abaixo.
- Esse cachorro não pára de latí... – disse ele baixinho num
tom assutado, como se tivesse sido descoberto pelo cão.
- É esse cusco duz’inferno! – praguejou ela. – Um dia ainda
jogo esse bicho no mato.
Mexeu no bigode e não respondeu nada para não dar
prosseguimento no assunto, num medo idiota de que a mulher fosse traduzir o
latido em palavras.
- Vai ficá com esse macacão gosmento a noite toda, hein? E não
vai tomá o teu café? Recém passei.
Depois de uma pausa, retomou:
– Teu irmão trouxe umas coisa da feira, umas fruta, uns
verde. Tudo coisa boa, de qualidade.
- Já te disse que não gosto que ele fique trazendo coisa
aqui pra casa. Já te falei, não te falei? Ele não tem nada que ficá trazendo
coisa aqui pra casa. Essa não é a casa dele! Tu não é mulher dele, ora essa!...
Se ele não se arranja c’as mulhé por aí, problema dele. Não sei purquê tu continua
aceitando essas coisa?
- Mas e eu vô negá coisa boa? Quem ouve falá até parece que
tem condições de trazê coisa boa pra casa! Rá! Um inútil que trabalha, trabalha
e mal consegue botá arroz e fejão dentro de casa! Teu irmão, não. Ele sim sabe
o que é bom, sabe agradá as pessoa. Sabe agradá uma mulhé... – disse essa
última frase num tom mais baixo, mas suficiente para que o marido ouvisse. – Ah!
E os istudo da tua filha, nem preciso te dizê, né?, qui sô eu que pago com as
custura e com a pensão da mãe. Se fosse dependê de um molerão como tu, rá!, a
gente tava era muito rúim, isso sim.
Ele ouvia tudo quieto, mas cuspindo ódio pelos olhos. Pensava
consigo que ela iria engolir todo aquele desacato e desonra que o fazia passar.
Cada palavra, cada insulto. Ela e o cafajeste do seu irmão iriam ver. Era isso
todo dia! Já tinha passado dos limites. Voltou-lhe à mente, no entanto, a
imagem dos dois juntos. Imaginou-os agora suados deitados no chão da cozinha, em
frente ao fogão, nus, engordurados. Podia ter sido ali naquela tarde, debaixo
de onde estava pisando agora... que eles... que eles... Não! Não conseguia nem
dizer pra si mesmo. Não podia mais aguentar! Aflito, verificou se dona Eulália
já tinha se recolhido. Sim: janela fechada e luz apagada. Passavam alguns
minutos das sete, então ela já caíra no sono. A filha, igualmente, não voltaria
naquela noite, pois ele teve o cuidado de ligar-lhe mais cedo quando,
emocionado, quase deixou escapar um ”adeus”.
A caixa de ferramentas permanecia ao lado da pia, pois
estava tudo ali, no lugar certo, como planejou. Arquitetara tudo: primeiro, quando
a mulher estivesse de costas, dava-lhe uma pancada forte com o alicate de pressão,
pesado o suficiente. Em seguida, enchia-lhe a boca com buchas de estopa para
não ouvirem os gritos. Depois usaria os dedos para esgoelá-la e amolecê-la. Por
último, cravava no seu olho a chave de fenda mais comprida que tinha. Sabia que
ia espirrar muito sangue e que ela iria se debater até desvanecer, sabia disso.
Mas tinha visto num filme que, quando se perfura o globo ocular com
profundidade em direção ao osso occipital, se atinge o cérebro, e, aí: adeus.
Por isso mesmo não tirava o macacão, já ensopado de tanto suor. Aliás, esses
pensamentos faziam suas mãos tremerem. Seu corpo todo se tomava ao mesmo tempo
de cólera e medo. Chegara, enfim, a hora. Mas, de repente, a mulher se vira pra
ele:
- Qué isso, Jair?! Derramou todo o café na mesa que eu
acabei de limpá! Imporcalhô tudo! Tu só sabe fazê porcaria, hein? É tão
abestalhado que não sabe nem serví mais o teu próprio café?!
Absorto, ele nem notara que a canequinha de metal já se
enchera daquele café escuro feito breu.
- Limpa essa imundícia com esse pano de prato. Faz alguma
coisa útil – ralhou, entregando-lhe um esfregão úmido.
Ele segurou firme naquele pano com as duas mãos, amarrotando-o,
fazendo saltar ainda mais as veias azuladas e já sobressalentes de seus braços pálidos,
magros e morrudos. De repente, sua bochecha esquerda começou a tremer
involuntariamente. Seu ser inteiro era um misto de inquietação, vergonha, medo
e horror. Chegava a enjoar. Não sabia o que sentir. Mesmo jamais tendo sido um
homem violento, teria que ter coragem para isso. Vinha matutando há meses: não
podia falhar agora. Não podia mais bancar o fraco, como a mulher, a sogra e até
os outros lhe diziam. Precisava provar o contrário, mostrar do que o “fraco”
era capaz. Provar que era um homem. Mas não conseguia controlar os nervos. Mal
articulava um pensamento lógico. Várias imagens, vários sons se misturavam em
sua cabeça: o Bóbi latindo, dona Eulália cumprimentando, a mulher e o irmão
trepando, o som do pingo da água preta no balde. Uma confusão total. Mas, enfim,
tinha que se controlar, pois aquela era a hora: era tudo ou nada. Então, decidido,
chamou-a firme e com rispidez:
- Nilza!
Imediatamente ela se voltou e o mirou de cima a baixo com
espanto e descrédito, o mesmíssimo olhar desabonador que dedicava ao Bóbi
quando pedia comida.
- Qui é, hôme?!... Vâmo: fala!
Ele hesitou, hesitou e disse:
- Ééé... Não. Não é nada, Nilza. Não é nada.
- Iiiih, tu tá é muito isquisito hoje, isso sim. Toma o teu
café que eu logo te sirvo a janta e depois tu vai é te deitá. Amanhã é ôtro
dia, si Deus quisé.
Sem retrucar, ele baixou a cabeça, esfregou a mão melada de
café açucarado no pano de prato e sentou-se infantilmente e quase sem forças à
mesinha. Deu um gole do café, que lhe desceu tão amargo que nem parecia já conter
açúcar.
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