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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

cotidianas #186 - E tu?



Debruçado sobre o colo de minha amiga, divagava a respeito da louça. Branca. Contrastando com o preto do café. Eu dizia para ela, amiga, que, embora meu irmão tivesse uma xícara da mesma marca e mesmo tamanho, porém preta, não era a mesma coisa justamente por essa diferença cromática. Preto e branco não se distinguem quase dadas suas naturezas primárias, disso todo mundo sabe. Mas não é a mesma coisa. Pelo menos em relação a xícaras, e disso eu sei. Essa, a branca, por exemplo, não é uma xícara qualquer. Não! Nutro por ela um amor profundo, ensejado, tátil, vivo, quase uma devoção.
Mas retornando à divagação inicial, ressaltei para ela – amiga, é bom que se diga – o para mim significativo contraste do café amargo e negro que manchava a louça de branco ainda imaculado, coisa rara numa cozinha – local onde residia a xícara, para quem não sabe. Expus à amiga sobre a relação que via com o meu interior: eu sou “preto no branco”.
Minutos depois ela estava usando o meu pertence.
Aliás, todo mundo dentro da minha casa usa a xícara, até o meu irmão quando a preta está suja. E ela é nova, comprada há pouco, o que aumenta consideravelmente a frequência das bicadas em si. Deixo. Não sinto ciúme. Afinal, o pertence é meu, me pertence. Só eu e ela, xícara, sabemos dessa nossa afinidade. Disso tudo, uma coisa sim me preocupa: será esta xícara apenas uma, como se diz por ai, “paixão”? Porque, saibam, paixões me preocupam! São intensas, dolorosas, ferventes, patológicas algumas vezes. Fujo delas! Tamanho apego não seria porque essa xícara talvez fosse alguma ex-namorada apaixonada de outra vida que, decrescente em sua escala evolutiva, materializou-se recipiente nesta encarnação? Ou uma maldição de alguma ex que, nesta vida mesmo, tenha feito algum trabalho, encanto, simpatia, sei lá, para me amarrar a ela e, propositalmente, usufruí-la assim, tão limitadamente? Tenho tantas “ex” assim?... Preocupa-me, preocupa-me.
Mas enquanto eu não identifico o despacho nem concluo nada vou deliciando-me em sua aba, na curva do seu corpo em minha palma, em sua borda arredondada perfeita para a minha boca.
No entanto, ainda outra coisa me encuca: ela não tem nome. Pois saibam, tudo lá em casa recebe nome. O cardigan é o Joy; o aparelho de som é o Bass; o peixe de enfeite é o Webster;  o micro-ondas é o Predador e por aí vai. E logo tu, xícara, tão amada, significativa, imaculada (ainda) não te tornaste oficialmente alguém? Ainda és coisa? Provavelmente a confirmação do porque desse estado primitivo venha a, tristemente, revelar a mim aquilo que eu não queria mas, de certa forma, já previa: trata-se apenas de um amor passageiro. Paixão, como se diz por aí.
Tomara Deus ela me sopre ao ouvido em algum momento seu nome – em breve, de preferência; sussurrando, de preferência – para que eu possa, enfim, sagrá-la cidadã honorária da minha casa.


PS: Cito aqui Castro Alves, que só nestes versos substituiria meu limitado texto; “Dize tu, severa musa/ Musa libérrima/ Audaz...”


(Escrito originalmente em 1994 e revisto em 2012)

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