André cruzou a avenida movimentada de onde trabalha, enfiando-se entre os carros como fazia junto a outros vários pedestres todos os dias a ponto de nem preocupar-se mais com o perigo de não respeitar a faixa – era mais fácil chegar a seu destino assim. Podia pegar uma condução no ponto logo ali, na esquina, sem precisar cruzar a via, mas, horário de verão, costuma empreender a esta época uma caminhada de uns 15 minutos até sua casa, bairro logo ao lado. Carteira com menos relatórios que o normal, sapatos de couro curtido que já podia considerar confortáveis, temperatura amena, economia de dinheiro, maneira de evitar o trajeto alongado do ônibus, desculpa ecologicamente correta, nada melhor para fazer, ninguém a se reportar; tudo contribuía. Então, banalmente, foi.
Ao chegar à calçada oposta, percebeu uma mancha de tinta sobre as pedras portuguesas do calçamento a qual nunca tinha reparado. Amarela. Estranhou (afinal, trabalhava ali há sonolentos 6 anos e nunca tinha sequer batido o olho...). Mas seguiu em marcha. Ficou com a interrogação daquela imagem: espatifada, como que resultante de um tubo cheio de tinta emborcado. Intencional? Sem querer? Deixou “pra lá”, afinal, podia ser que estivesse ali até a mais tempo que ele, e ele é que nunca tivesse percebido, quem sabe, por sempre alcançar um trecho da calçada além da mancha – talvez, meio metro adiante, o suficiente para, tendo em vista seu olhar acostumado a apontar para uma direção só, jamais ter notado. “Sei lá”, disse a si mesmo.
Nem bem completou esse raciocínio desaproveitável e avistou, vindo em sua direção, um senhor falando ao celular. O aparelho, totalmente lambuzado da mesma tinta amarela, porém fresca de recém-derramada, escorria pelos dedos, chegando-lhe até a boca. Alguns pingos entravam lábio adentro, outros trilhavam em direção ao punho do paletó. De um amarelo cítrico, oleoso, brilhoso, pendendo levemente para o esverdeado. Aquela mesma tonalidade do chão. No entanto, viu que o homem mantinha a conversa normalmente, e André pôde até escutar que se tratava de um diálogo com a esposa, pois conseguiu ouvi-lo dizer quando passava: “não, mulher, o cartório pediu mais uma pepelada...”. Admirou-se daquilo... mas não se conturbou, afinal tinha mais o que fazer: chegar em casa. E seguiu a passo moderado, naquela nenhuma solenidade.
Mais adiante, no seu trajeto insosso de tão corriqueiro, um jovem cantava uma garota, ambos de pé em frente ao (provavelmente) prédio dela. Na calça dele, à altura da panturrilha, a tinta, já seca, tingia uma das pernas, formando uma incompreensível imagem abstrata que contrastava com o jeans de estilo moderninho. Ela parecia estar “na dele”, pois sorria e mexia no cabelo enquanto o rapaz macaqueava-se à sua frente, dança da sedução caricatamente sincera. A mancha, incompatível àquela cena, não parecia afetar em nada o cortejo. Ao som de uma gargalhadinha dela, André virou a cabeça e, na mesma quadra, viu uma senhora idosa passeando com um poodle, bem faceiro, tanto que a tinta amarela que pingava de sua boca, no lugar da saliva, não lhe tirava a satisfação de estar na rua com sua dona naquele fim de tarde nem com o provável gosto azedo que produzia. Irracional (decerto, por isso), o cão nem percebia, assim como a dona que, talvez pela velhice, talvez pela mesma irracionalidade, também não.
E no resto do trajeto, ainda, mais daquela estranheza: um grupo de meninas, emanando tesão, aos gritinhos, jogava uma ridiculamente mal jogada partida de vôlei, em que a bola voava de um lado para o outro respingado a tinta, que cuspia pingos nos cabelos delas (nem se importavam!). Um mendigo, na sarjeta, embuchava-se com um pedaço de pão velho emplastrado daquilo. Também, um casal de orientais vinha no tradicional passo rápido e sincronizado dos orientais. Mãos dadas, empapadas, grudadas pelo viscoso amarelo-lima.
Aquilo tudo era muito estranho, de fato, e, embora não chegasse a incomodar, embaraçava sua cabeça um pouco. Não conseguia ligar uma situação à outra. Não fazia sentido... Porém, quase em casa, nem precisava mais pensar. Era chegar e apagar a memória do dia, como se acostumara, dormentemente, a proceder um dia após o outro: ao bater a porta do apartamento, o “para trás” morria.
Enfim, chegou. Depois de trocar cumprimentos de forma consensualmente banal com o zelador – que molhava as folhagens com tinta amarela a jatos de mangueira –, subiu pelo elevador, puxou a chave e: lar doce lar. Foi direto à cozinha. Na geladeira, abriu-lhe a porta e, ao destampar a panela guardada do dia de ontem, enxergou a porção restante do macarrão com frango coberta por uma espessa camada de tinta amarela. As horas de refrigeração já faziam com que, plástica, a tinta revestisse sua comida, formando um bloco compacto e gelado. André enojou-se de tal jeito que fechou a porta e foi direto para a sala zapear os canais da tevê. Sentou-se no sofá meio de lado, tal como caiu, de alça da carteira sobre o ombro, os tais sapatos semiconfortáveis calçados, calça ainda cintada; só a gravata ligeiramente afrouxada no gogó. Adormeceu rápido de uma exaustão que nem sabia que tinha, sem dar tempo de prestar atenção em nada na televisão. Na tela, a âncora da BBC noticiava em inglês na sua postura fria e inabalável que a crise no Oriente Médio mais uma vez afetara as bolsas de todo o mundo, enquanto a tinta amarela cobria totalmente uma das lentes de seus óculos, escorrendo lenta e em camadas até formar pingos graúdos, que salpicavam aos poucos o balcão, começando a formar ali uma poça.
de Daniel Rodrigues
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