"Olho na Boca" - RODRIGUES, Daniel
grafite sobre sulfite com manipulação digital (15,5x13cm) |
Talvez
a vida seja mais importante quando estamos de olhos fechados. Para
bem e para mal. Talvez, se formos contar todos os milésimos e até
segundos de piscadelas, as horas de sono e as fechadas de olho
involuntárias que praticamos durante um dia inteiro, perceberemos
que passamos a maior parte do tempo de olhos fechados do que abertos.
Esse simples ato serve para situações tão díspares: surpresa,
frustração, dor, insegurança, incredibilidade, resignação,
esquecimento, choro, conquista, derrota, tristeza, cansaço,
concentração. Oramos assim. Saboreamos um prato gostoso assim.
Paqueramos assim, fechando um olho e deixando o outro aberto. Talvez
passemos, sim, mais tempo da vida de olhos fechados do que abertos se
formos ver (ver?). Quando nascemos, intercalando com os momentos de
mama, dormimos quase todo o tempo, mas, diz-se que, antes disso, na
barriga, passamos ali um bom tempo só de olhos fechados (fora que
deve ser de um escuro tão cândido que é quase como o de não abrir
os olhos).
De
modo a reter as sensações, daquelas importantes, fechamos os olhos.
Ouve-se música desse jeito. Quantas vezes já não o fiz, e sempre
repito, ao escutar o verso: “I’m So Sorry” de Morrissey em
“Suedehead”, ou o primeiro pronunciar de Lennon em “Dear
Prudence”. Até em filmes, em que se supõe manter-se
permanentemente de olhos abertos, há momentos em que,
inevitavelmente, os fechamos, tamanha a surpresa que nos acomete.
É-me assim na cena d’”A Fonte da Donzela”, do Bergman, quando
ela bate com a cabeça no chão e começa a fluir a água – para
ficar em apenas um exemplo do arrebatamento que nos provoca o cinema,
esse exercício lúdico de luz e escuro.
Cantamos,
todos, fechando os olhos. Sinatra, João, Cathy, Ibraim, Ramil,
Cobain, Cássia, Elis, Ella. Isso parece que nos faz sentir melhor os
sons que emitimos, não sei porque. Também dançamos,
invariavelmente, desse modo: selando as vistas. Seja sozinho, no meio
da pista ou em qualquer lugar, naquele ritualismo extasiante, ou
acompanhado, juntinho, sentindo um corpo no outro. Para isso, fechar
os olhos é fundamental, nem que seja para poder abri-los alegres
depois.
E
quando algo é sério, é fato: os cerramos, como para um gol feito
desperdiçado ou um gol adversário na hora mais indevida do jogo.
Beijamos, quando amamos, de olhos fechados. Às vezes, por longos
minutos, sem abri-los. Semicerrados, talvez, mas, de forma prática,
fechados. No êxtase, apertamos bem forte os olhos naquele prazer
intenso. Gozo não é gozo de olho aberto! Com tesão, antes do gozo,
é aquele fechar e abrir devagar, câmera lenta, curtindo a sensação
que te absorve.
Olhar,
portanto, torna-se a raridade, o menos comum. Por que não gastar,
então, esses lapsos do tempo, entre uma piscada e outra, para
enxergar? Tem o sol, o raio do sol, o verde da grama, o vermelho do
sangue, o movimento das gentes, os filmes bons e ruins, os telhados,
as letras dos livros, o traço do pintor, as bobagens coloridas da
tevê, os bichos, o rosto de quem se ama. O céu. Tanta coisa... Ver
tudo que é visível ou nem tanto. Ver o invisível. Digo-lhes: dá.
Pois,
por vários motivos que não só esses (talvez precise me concentrar,
achando o que quero na escuridão, para lembrar-me de mais), creio
que a vida toda seja mais importante quando estamos de olhos
fechados. Refleti sobre isso ontem quando, de olhos fechados, fui
beijado sobre minha pálpebra, num beijo dado de olho fechado em um
olho fechado, o meu. Meu globo ocular, faceiro de tanta emoção,
agitava-se por debaixo daquele beijo. Acho que os olhos têm um canal
direto com o coração (há de se estudar mais nossa anatomia).
Tomo-me
de paz ao pensar que esta pessoa que me beija tão solenemente de
olho fechado em meu olho fechado acompanhará todos os momentos de
olhos abertos (e fechados) da minha vida até o fim dela, quando,
enfim, os fecharei para sempre. A morte, penso, calando neste
instante os olhos levemente, é a confirmação de que, por todo o
tempo anterior a esta, recebemos luz. Mas que, no agora de quando
for, simplesmente, não mais. Escuro. A morte, essa não-luz, talvez
seja, por isso, a síntese.
Talvez
os cegos sejam os verdadeiros abençoados por Deus. Talvez.
Meu
último fechar de olhos, quando silenciá-los de vez, quero, por isso
tudo, seja com ela, absorvido na beleza do escuro que sempre me
acompanhou.
Lindo, Daniel!
ResponderExcluirque assunto lindo, que palavras delicadas. Parabéns!
ResponderExcluirDiz um adágio que "os olhos são as janelas da alma",talvez por isso que buscamos saber de nossa alma o significado para cada um desses momentos em que os fechamos, quando o fizemos de forma voluntária, e quando não, como no piscar, estamos buscando nos manter em estreito contato com ela (a alma). E então pode se concluir que a morte pode ser um encontro com o nosso "EU". E se, em vida, para varios momentos o fechar dos olhos, nos revela mais prazer, mais emoção, fazendo-nos buscar o sentimento, o que podemos esperar do cerrear definitivo dos olhos, senão a plenitude. Iara.
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