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sábado, 22 de fevereiro de 2014

cotidianas #275 - Render as Armas


Um de frente para o outro à mesa, Fábio e Cibele almoçavam no restaurante da esquina, ponto que, aliás, vinha-lhes sendo um agradável abrigo todos os dias a aproximadamente um mês desde que foram destacados para trabalharem juntos. Mas aquele dia era diferente. A comida mal descia, o que, convenhamos, não era para menos. Mesmo assim, entre olhares falivelmente infantis, pois perceptivelmente chocados, uma vez que a dilatação das pupilas ainda expandidas os traía, tentavam empurrar algumas garfadas, que, estrategicamente, davam em intervalos espaçados, de modo a tornar o menos incômodo possível o incomum silêncio que dominava o almoço daquele dia. Embora se esforçassem com disciplina militar, não conseguiam esconder o espanto pelo ocorrido. Por isso, silêncio, que, depois de muitos minutos e empenho interior, Fábio quebrou:
- ‘Tá boa essa panqueca, né?..., perguntou, assim, meio sem complemento da frase, meio que só para falar qualquer coisa que desviasse a atenção do que ambos receavam falar.  
- É...  acho que ‘tá... ‘Tá! ‘Tá sim, claro, Sargento Mello, respondeu-lhe, convencendo-se imediatamente daquilo que não havia de fato raciocinado. Ele, então, completando, de maneira a não deparar-se novamente com o ensurdecedor silêncio da mesa, disse, todo idiota:
- É, tá boa mesmo...
Não adiantou. O silêncio voltou implacável, intransigente. Mesmo que, ao redor dos dois, o restaurante e o mundo funcionassem como todos os dias: gentes conversando alto e falando de boca cheia, garçons esfregando mesas com paninhos úmidos e ensebados, ruído de fritura misturado à voz da âncora do telejornal, carros passando na rua com a mão na buzina, solitários e acompanhados mascando a comida com os olhos fixados na tela do i-phone. Tudo transcorria como se nada tivesse acontecido. Curioso é que aquela balbúrdia, que, para eles, ambos vindos da pacatez do interior, geralmente era motivo de divertimento, naquele dia, atazanava-os um pouco.
Ela, no entanto, mais abstraída e audaz, arriscou sair da barricada:
- Capitão Rocha disse que fizemos o certo. Ele elogiou a nossa conduta. Até nos dispensou o resto do dia.
Fábio levantou a cabeça com surpresa, e respondeu com um olhar ainda mais pueril do que aquele que lhe lançava nos momentos de descontração das conversas durante as rondas. Porque Cibele, a Soldado Alves, era pessoa agradável de estar, educada e engraçada, mas tinha uma mania de, às vezes, fazer observações tão sinceras e espontâneas sobre as coisas que lhe deixavam, vira e mexe, com essa cara de bobo. Ele até relevava e se identificava com a atitude dela, afinal, isso faz parte do jeito meio xucro de gente do interior. Mas agora, além do fulminante olhar (o qual já havia sido motivo de comentário na ala masculina do pelotão: “castanho-escuro”, ressaltavam os mais empolgados), suficiente para encabulá-lo, ela ousava mais uma vez tocar num assunto delicado. Sentindo aprovação no silêncio dele – mesmo que de longe não fosse esse o recado que ele quisesse transmitir com tal atitude –, a Soldado avançou mais território:
- Capitão Rocha tem noção do perigo que nós passamos. Ele... sabe, Sargento... essa situação me fez lembrar de uma vez na praia, quando eu era criança.
Garfadas dos dois. Fábio, mudo, pondo-se numa inútil tática defensiva de quem teme onde vai dar aquilo. Cibele, depois de mirar o infinito, que dava na porta do banheiro, mastigando lentamente para digerir a comida e as palavras, rendeu o olhar castanho-escuro, fixou-o em Fábio e prosseguiu:
- Uma vez, quando eu tinha uns 6, 7 anos, a gente tava na casa da minha tia Eunice, irmã da minha mãe. A gente foi veranear na casa que a tia tinha na praia. Era uma praia de rio, água parada e bem morninha. Uma delícia. Eu, meu irmão e meus primos, a gente adorava aquilo, esperava o ano todo pra ‘tá junto e tomar banho no rio.
Fábio parou de comer. Apenas a escutava atentamente.
- Aquele dia, a mãe tirou da cesta um bolo de laranja que ela mesma fez. Lembro que tomei guaraná com bolo debaixo de um solzinho bem claro e ameno, falou, rindo-se toda por conta da lembrança gostosa. Depois de uma pausa, a risada foi morrendo até agravar novamente a expressão da face.
- Depois de comer, dei um beijo na mãe, outro no meu pai e outro na tia, que ‘tavam todos sentados lagarteando um do lado do outro nas cadeiras de praia, e fui correndo tomar banho. Mas sabe come é criança, né? Mesmo que sempre dissessem: “te cuida, não vai muito fundo”, naquela empolgação, naquela festa, a gente não se cuida, não tem jeito, e como dizem lá pra fora...
- “Águas calmas são profundas”.
- Isso mesmo, tu sabe. Não sei o que aconteceu que eu entrei demais pro fundo e me perdi deles dentro d’água, do meu irmão e dos meus primos, que tinham ido comigo brincar e tomar banho. Não dá pra ter clareza do que aconteceu, mas só sei que, quando vi, eu ‘tava longe da praia e meu pé não tocava mais o chão. Me desesperei. Eu ouvi de longe o Marquinhos, meu irmão, gritar, assustadinho: “cadê a Neneca?! Pai, cadê a Neneca?!”. Neneca era eu. Eu tava me afogando. Lembro que eu me bati, me bati e tomei muita água, porque eu não sabia nadar. Não lembro quanto tempo fiquei ali, mas tenho muito forte na minha lembrança que pensei naquela hora que nunca mais ia ver minha mãe, minha boneca, nem a minha professora, nem ia mais pegar o giz pra escrever no quadro-negro da escola, que nunca mais ia ver meu pai sair de casa todo lindo vestindo a farda pra ir trabalhar... sabe... tanta coisa que passa na cabeça numa hora dessas que, sei lá..., riu constrangida, voltando o olhar para a mesa, talvez contendo o choro (o que não deu para Fábio confirmar por causa da cabeça baixa dela).
- E como tu saiu? Porque, tu saiu, né? Se não, não ‘taria aqui, indagou Fábio, curioso.
- Meu pai, né, Sargento Mell...
- Fábio. Pode me chamar de Fábio. A gente trabalha junto faz quase dois meses e convive todos os dias, então, aqui fora, a gente não precisa mais dessas formalidades lá de dentro do regimento. Ainda mais depois disso, de hoje..., calou-se por um segundo, surpreso com o próprio ímpeto, mas retomou a linha numa brincadeira triunfal considerando seu natural acanhamento. – Eu prometo que também não te chamo mais de Soldado Alves, tá?
- Tá bem... Fábio. Fechado, rindo junto com ele, já mais descontraídos. – É, meu pai me salvou. Ele disse que eu tomei muita água, que ficou assustado achando que ia perder a única filha, todo mundo ficou assustado. Minha mãe só chorava, meu irmão e meus primos com os olhos arregalados de culpa. Tia Eunice não falava nada de tão apavorada, isso foi o que me contaram. Até que meu pai fez respiração boca a boca em mim e eu cuspi aquela água toda.
- Deve ter sido horrível.
- Que foi, foi. Mas bastou eu ficar melhorzinha pro meu pai dar umas boas palmadas em mim e no meu irmão e nos botar de castigo, cada um num quarto da casa (risos subservientes dela.). Brabo ele. Mas não tiro a razão. Não sou mãe, ainda, mas numa situação dessas, acho que faria o mesmo. Tem que disciplinar.
- Sim! Seu pai. Grande orgulho pra corporação, o Tenente-Coronel Alves. Pessoa muito correta e competente seu pai. Tive a honra de trabalhar com ele por um tempo, já te contei. Não dava moleza pra bandido nenhum, mas sabia falar até com eles, por isso era respeitado por todo mundo. Agora ‘tá lá ele, longe da cidade, aposentado, curtindo a vida boa, risos partilhados e orgulhosos de ambos. – Ele merece, ele merece. Exemplo pra gente o seu pai.
- Mas tua ação hoje também foi exemplar, Fábio. Acho mesmo. Se não fosse tu perceber o movimento suspeito dele e ter corrido atrás, ele teria arrombado o carro e sequestrado aquela senhora.
- Não posso chamar de “exemplar” o que eu fiz. Não. Eu não me perdoo por aquilo. Escorregar e cair na frente do sujeito?! E ainda levar um tiro que só não pegou em mim porque... sei lá, algum milagre desviou aquela bala de mim. Passou raspando... Tive muita sorte, muita. Ainda bem que tu ‘tava lá, e teve a felicidade de acertar ele na perna.
- Apontei a arma e mandei ele baixar a dele. Ele não atendeu, então...
- Tu fez o que manda a norma. Tu, sim, fez certo. É bondade tua, que é minha parceira, mas, não: não posso achar que agi bem. Eu podia ter morrido!
Falou isso e calou-se, percebendo a gravidade da palavra que acabara de pronunciar: “mor-ri-do”. Aquilo lhe saltou da boca, sem controle, como uma bala de pistola que dispara sem ser acionada. Tentou dar mais uma garfada da comida, quieto, mas já estava fria. Não vendo inimigo à frente, animou-se em continuar:
- Teve uma vez, lá em casa, também quando eu era pequeno, numa Sexta-feira Santa. Faziam, e fazem até hoje, a colheita da marcela nesse dia. Lembro que a vó Nina dizia, toda beata: “marcela colhida na Sexta-feira Santa é abençoada com as lágrimas da Virgem Maria”. Eu morava só com a mãe e a vó – te contei já isso, né? –, e elas iam fazer a colheita naquela noite, e eu ia junto. Eu ‘tava já pronto pra sair, até de sandália no pé. Só que, piá, acostumado a acordar cedo e dormir com as galinhas, até que todas as vizinhas do bairro se reunissem com minha mãe e minha vó demorou bastante. Foi ficando tarde, ficando tarde, e eu não aguentei. Caí no sono. Minha mãe ficou com pena de me acordar, porque já era tarde e ‘tava se armando uma chuvarada. Só sei que elas saíram. Minha mãe, com dois corações, mas saiu.
- E daí?
- Daí que eu fiquei em casa sozinho dormindo, até que começou a chover. Acordei assustado com a casa de madeira estremecendo com o barulho do trovão, olhei pela janela e vi aquele raio forte riscar o céu. Não demorou muito e a chuva desabou. Foi um baita temporal Chovia muito, e fazia aquele barulho alto da água caindo. E cada trovoada! Fiquei com muito medo. Eu tinha medo de temporal, e mais ainda porque não tinha ninguém perto. Não podia sair de casa, mas ficar sozinho também ‘tava me apavorando. Minha mãe disse, depois que voltou, que elas tiveram que parar um tempo dentro da igrejinha pra esperar a chuva passar, o que levou uma meia hora. Só que na minha cabeça de criança parecia que aquela chuva nunca mais ia terminar. Quando a mãe voltou eu abracei ela e chorei muito, e ela só dizia: “eu sei, filho, eu sei.” E, sabe, Cibele, eu pensei que... coisa boba isso que eu tô te contando... eu pensei que eu ia morrer.
Silêncio dos dois, porém agora noutra atmosfera.
- Pensei que a mãe não ia mais voltar e que, sei lá, sem ela, eu não ia mais saber viver... Tive medo de morrer hoje, Cibele. Tive sim. Como só daquela vez, guri, eu tinha sentido. Estranho eu ‘tá te dizendo isso... É engraçado que a gente entra pra corporação, mas nunca acha que essas coisas vão acontecer com a gente, de estar vivo num minuto e no seguinte quase estar morto. Morto, assim: morto. Tudo pode terminar tão rápido, desse jeito: pfff! Num sopro...
- É, tem razão.
- Essas coisas acontecem pra gente saber valorizar a vida. Sou um homem mudado depois disso que aconteceu hoje. Sou sim. Pode ter certeza. A gente não pode perder tempo, tem que aproveitar as coisas, porque, se não, elas passam. Simples assim: passam.
Lançou mão do copo de suco de laranja, mas desta vez não como bengala emocional, mas para dar uma merecida pausa depois de falar em quantidade e intensidade como nunca o tinha feito.
- Eu não vou comer mais. Tu vai?, perguntou a ela.
- Não, também não consigo mais comer.
- É, não desce mais, perdi a fome. Então... vamos?
A resposta veio num momento de entreolhares sérios e cúmplices, seguido de um aceno com a cabeça de “positivo” dela, suficiente para levantarem-se sem hesitação, pagarem dona Nelci no caixa e saírem pela porta do restaurante.

A casa de Fábio ficava dali a duas quadras.



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