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domingo, 1 de fevereiro de 2015

cotidianas #348 - O Anel




O homem atrás do balcão nem se deu ao trabalho de levantar a cabeça ao ouvir o tilintar da pequena sineta colocada no alto da porta para indicar quando alguém entrava em seu estabelecimento. Era mais um cliente ou mias um assalto naquela vizinhança podre e infeliz. Mas mesmo e em se tratando de algum cliente em potencial, na melhor das hipóteses seria algum 'chicano' querendo penhorar um ferro de passar, um relógio roubado ou algo do tipo. Por tudo isso, dirigiu-se ao 'possível' cliente sem aequer se dar ao trabalho de tirar os olhos da notação que fazia, com interesse proporcional aos artigos que as pessoas costumavam levar à sua loja de penhores.
- Sim, no que posso ajudar?
- Eu queria saber quanto o senhor me dá por isto aqui - disse o cliente passando um objeto por baixo do vão gradeado do guichê.
Se até então o velho Ben demonstrava um ar quase indiferente em relação a mais um negócio, a mera visão do objeto mostrado o fez erguer a cabeça e encarar com os olhos arregalados aquele homem à sua frente, um negro alto de barba grande e cabelo afro alto desgrenhado vestindo um agasalho esportivo sujo e resgado.
Tratava-se de um anel. Aquele senhor de cabelos brancos, calvície avançada e de óculos na ponta do nariz, via, recebia, barganhava, pagava micharias por todo tipo de anel todos os dias, mas um daqueles, ali na sua frente, o fez ficar praticamente petrificado.
- Isso é alguma brincadeira, moço? - erguntou descofiado o comerciante.
- Não, não, é sério - eu preciso de alguma grana. Com urgência, sabe. - respondeu o outro ansioso.
- Posso ver mais de perto - pediu estendendo a mão.
- Claro, claro. Pode sim - disse passando-o para a mão do dono do penhor.
Um rápido exame bastou para comprovar a autenticidade. O material, o brasão e como se não bastasse, a gravação na parte interna com a inscrição "Superbowl XXXIV".
- Onde conseguiu isso, moço? Eu não trabalho com mercadoria roubada se você quer saber, viu...
- Não, não. - preciptou-se o cliente - Eu ganhei. Eu ganhei isso aí. Jogando.
Só então o velho, dono do lugar, percebeu de quem se tratava. A barba, a sujeira e o cabelo que não recebia uma tesoura, por certo, há anos, não haviam lhe permitido identificar o personagem à sua frente.
- Ei, você é Carl Breennan, dos Hunters?
- Sim..., sou eu mesmo - confirmou baixando a cabeça claramente envergonhado.
- Ei, rapaz, você não pode fazer isso com esse anel.
- Eu sei mas... Eu estou precisando muito de dinheiro - disse olhando em volta como que para confirmar que não estivesse sendo visto - Andei me metendo numas encrencas por aí e tem uns caras... uns caras... Olha, me dá o quanto você puder, o quanto quiser. Eu preciso de alguma coisa. Pelo menos pra eles se acalmarem, saca? - completou, voltando a esticar o pescoço em direção à porta, novamente tentando se certificar que não o seguiam.
O velhote levantou-se então lentamente de onde estava, atrás do balcão, e dirigiu-se ao fundo da loja. O ex-jogador não conseguia ver perfeitamente porque o corpo do homem encobria sua visão, mas parecia que abria uma gaveta ou algo assim.
O negociante, concluindo o que fazia, deu meia volta e retornou ao balcão, onde olhando piedosamente para o rapaz, passou pelo vão do guichê um maço de notas. Tinha uns mil dólares ali.
- Olha, filho, é tudo que eu posso conseguir.
- Está ótimo, está ótimo - disse o grandalhão com um brilho infantil nos olhos - Pode pegar o anel, pode pegar.
- Não. Pode ficar com ele - surpreendeu o velho Ben - É seu. Você ganhou e ganhou com muito esforço. Considere isso uma retribuição de um fã.
Os olhos do negro, que há pouco cintilavam de alegria, agora brilhavam com lágrimas contidas.
- O senhor deve ser um torcedor muito fanático dos Hunters. - disse, um pouco, para disfarçar a emoção.
- Você pode não acreditar mas eu torço pro Seagulls. É, você já nos deu algumas surras. - riu.
- Mas então...? - questionou intrigado.
- É uma espécie de agradecimento por ter-me permitido ver um dos maiores jogadores de todos os tempos.
Percebendo alguma hesitação do atleta em aceitar o 'presente', o senhor tratou de aliviá-lo de qualquer dúvida:
- Está tudo bem, está tudo bem. Vá. Pode ir.
O jogador foi em direção à porta, abriu, fazendo tilintar novamente o sino, e voltou-se ainda uma vez. Pensou em falr mais alguma coisa mas apenas dirigiu ao comerciante um olhar que falava por si só.
Carl Brennan saiu da loja de penhores com o sério intuito de resolver sua situação, enfim. Não era o total da dívida, é verdade, mas aquilo já serviria para tranquilizar seus credores.
Brennan caminhou convicto até a esquina, porém, assim que bateu os olhos  num rapazote tipo latino de camisa xadrez, calças frouxas abaixo da cintura e lenço vermelho dobrado amarrado à testa encostado num poste viu desvanecer sua decisão.
Sabia perfeitamente o que o garoto fazia ali.
Mudou o rumo.
Dobrou a esquina.
 Aproximou-se do garoto e sem cerimônias, sabendo de que negócio estariam tratando, perguntou:
- O que tem aí, amigo?
- A melhor da cidade, campeão. A melhor da cidade.


Cly Reis

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