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segunda-feira, 16 de março de 2015

A Menina da Casa Azul








Consegui sair bem – Prometi não voltar atrás e cumpri a promessa. (...) Graças ao povo soviético, ao povo chinês, tcheco-eslovaco e polônes e ao povo do México, sobretudo ao de Coyoacán onde nasceu minha primeira célula, concebida em Oaxaca, no ventre de minha mãe, que havia nascido lá era casada com Guillermo Kahlo – minha mãe Matilde Calderón, morena esbelta de Oaxaca.”
(Frida Kahlo, 1957)
Minha infância foi maravilhosa. Ainda que meu pai estivesse enfermo (sofria vertigens cada mês e meio), para mim constituía um exemplo imenso de ternura e trabalho (como fotógrafo e pintor) e, sobre tudo, de compreensão para todos os meus problemas.”
(Herrera, 1984)
Pés, para que te quero, se tenho asas para voar?”
(Frida Kahlo, 1953)



Frida Kahlo nunca deixou de ser a menina da Casa Azul. Filha de pais de origens étnicas diferentes: Guillermo, judeu-alemão, e Matilde, uma mestiça mexicana indígena. Frida viveu 47 anos sendo a criança modelo das fotos de seu pai. Teve uma vida de constante sofrimento corporal que a levou a crises emocionais também constantes, mas quem de nós não possui seus traumas e suas feridas? Em Frida estas vivências estiveram sempre presentes. Mas a existência de algumas pessoas passa encoberta pela grosseira vestimenta corporal humana, que morre junto com elas. Em outras, o corpo dilacera-se para mostrar o quanto forte e bela é a alma. Este é o caso de Frida.
Francisco Haghenbeck, Rosa Montero, Frederico Morais, eu e a torcida “pop” do mundo são admiradores de Frida Kahlo. Já perceberam quanto o pop tende a endeusar pessoas que aparentemente tiveram vidas “desajustadas”, “fora de padrão”, “incômodas” a quem se diz normal? Esta mulher, ainda hoje, 61 anos após seu desencarne, é comentada sob o viés humano do “coitadismo” e da maledicência, mas poucos se atentam que ela deixou uma obra que poucos de nós ousaríamos produzir se estivéssemos assim, em estado de “desintegração”, como ela se definia. Frida era uma legítima personalidade azul-índigo que não à toa, vazou os limites corporais e fixou-se nas paredes da Casa Azul, em Coyoacán, onde até hoje está parte da sua produção, parte das suas vivências íntimas e histórias imaginárias, transmitidas no meio das Artes por pessoas que nela se inspiram.
Admiro Frida desde que vi sua primeira obra e isso me basta, me inunda e me intriga. Sempre gostei do seu “estilo artístico”, talvez porque o Surrealismo sempre tenha sido uma escola que falasse o meu idioma mais interno. Sonho, distância e inconscientes, todos ali pulsando. O feminino sempre em evidência de maneira exposta, sem meandros e firulas. Sentindo tudo o que se passa e aquilo que perpassa o invisível, o mais íntimo.
Diferente da maioria das pessoas que fala sobre Frida só fui saber dos detalhes biográficos de sua vida anos após de ver a primeira reprodução de seus quadros. A mistura entre a biografia de artistas referenciais, a vida e a sua produção artística me deixam incomodada assim num primeiro momento. É claro que saber do contexto em que um artista viveu e quais foram suas trilhas humanas pode interessar, mas só em parte. A análise superficial e o grau de preciosismo é muito abaixo do que se tem sobre sua Arte se comparar com o demasiado excesso de comentários sobre sua vida, suas doenças. Com isso eu não compactuo, porque simplesmente não faz diferença para mim sua opção sexual, suas relações amorosas, sua escolha política ou quantas cirurgias e abortos passaram. A Arte vai além das humanidades: é algo oriundo d’alma de quem se coloca como um intermediário, um leitor atento de si e do meio em que está em prol dos outros. Interessa-me a Arte mais puramente genuína, os seus guardados, como por exemplo: a descoberta de um “diário”, a ideia da perda literária de um imaginário “livro de receitas” ou a grande concha-azul: a casa de Coyoacán.
Por isso, quando escuto algo sobre ela sempre me vem perguntas: “Quais os temas que Frida pintou que de forma surreal não percebemos num primeiro contato?” “Quais mensagens ela quis registrar com essas pinturas?” “É acaso a pintora reproduzir seus retratos incessantemente?” “Quais vestígios ela quis nos deixar com seus quadros e códigos do inconsciente?” “Quem de fato se aventura a mergulhar aí, neste universo particular da pintora?” Porque, convenhamos, discorrer sobre criticas padrão no mundo das Artes é algo que não cabe na escola surrealista.


Quem diria que as manchas vivem e ajudam a viver?
Tinta, sangue, cheiro. Não sei que tinta usar, qual delas gostaria de deixar desse modo o seu vestígio.”
(Frida Kahlo)




Ela costumava dizer: “Pinto a mim mesma porque estou frequentemente sozinha e porque sou o tema que melhor conheço”. Mas se formos mergulhar em sua história, a pintura é uma continuidade do gesto de seu pai fotografando-a. Ele, sua maior referência, era fotógrafo e retratista. Como filha, ela se transformou, assim, para sempre, em pintora de seus próprios retratos. A retratada reproduzindo incessantemente sua face, sua persona criada como primeiro plano de seu universo inconsciente.
Visitando a exposição “Frida Kahlo – As suas fotografias”, apresentada ano passado no Brasil somente no Museu Oscar Niemeyer/MON, em Curitiba, com curadoria do mexicano Pablo Ortiz Monasterio pude refletir sobre a forma como se fala e se transmite a história e a Arte de um artista após a sua ausência física.
Frida transitou sempre entre dois mundos: o real e o imaginário. Muito do que ela pintou está neste intervalo entre o que vemos registrado historicamente e o que é sentido como um bem individual da artista. As pistas de Frida são inúmeras e simbólicas. Canceriana literal, porque vivenciou uma relação direta com a imagem seja ela em movimento ou fixa, de natureza totalmente passional, Frida guardou as imagens de sua vida, acumulando cerca de 6.500 fotografias. Dessas, somente 241 foram selecionadas para o MON.


Por isso a morte é tão magnifica. Porque não existe, porque só morre aquele que não viveu”.
(Frida Kahlo)






A exposição tinha uma particularidade: não podia ser fotografada. Então o que guardo após a visita são as bagagens e as correlações que posso buscar dentro da minha alma feminina, como admiradora de Frida.
Chamou-me atenção para onde os olhares de Frida convergiam. A família, os amigos, os amores, a morte, a política e os animais. Vejam: somente temas comuns a todos nós, seres humanos daquele e desse século.
Muitas imagens eram do acervo familiar de seu pai, Guillermo. Frida e ele têm entre si essa sutil e intensa ligação. Um fotografou com a câmera e o outro com o pincel. Outras imagens, estas claramente guardadas e clicadas por Frida, são os seus olhares sobre temas de sua vida. Num jogo de esconde-esconde, por entre os meandros do pátio da Casa Azul e o que há lá fora. Vemos fotografias recortadas sem uma forma definida ou repetida. Recortadas sem uma edição consciente propositada, mas com foco, seja ocultando rostos, parte da cena e, muitas vezes, inviabilizando a percepção do que estava acontecendo ou quem eram as pessoas naquele momento do registro.
Voltando aos seus quadros, alguns nos deixam no limiar do intraduzível, do não dito, do não visualizado. Na vida e na Arte Frida mostrava-se em primeiro plano e escondia o que não interessava ou estava mais oculto, em plano de fundo. Cenas, bichos, cores faziam esse plano quase sempre muito detalhado um ocasional cenário para a sua posição central, de retratada. Aí ela assumia a figura do pai e o seu próprio ofício de forma sintetizada e interligada. Não esqueçamos que para os cancerianos, a família é sempre muito referencial, às vezes quase assume um papel simbiótico e interminável em suas vidas. Como se a criança estivesse sempre naquele momento onde tudo era melhor, era confortável e prazeroso. Como se o tempo tivesse congelado as emoções e nada após esse tempo pudesse dar certo, ser mais importante ou significativo.
Volto a dizer, porque ela destinou parte de sua produção aos retratos? Talvez para resgatar um pouco daquela vida normal até os cinco anos de idade quando a fotografia e o retrato a deixavam bela e em destaque na vida familiar. Quem sabe?
Frida foi dona de uma “mexicanidade” como exalta Frederico Morais (em seu texto “Frida Kahlo: Tudo é autorretrato”) uma mulher fruto desse misto entre culturas (a europeia e a pré-colombiana). Sempre exuberante em sua apresentação através dos vestidos, penteados, pratarias e referenciais estéticos tehuanas, claro, mas a história dessa obra diz muito mais e é comentada pela própria artista.

''Origem das duas Fridas. Lembranças. Devia ter 6 anos quando vivi intensamente a amizade imaginária com uma menina de minha idade. (...) Não me lembro de sua imagem, nem de sua cor. Porém sei que era alegre e ria muito. Sem sons. Era ágil e dançava como se não tivesse nenhum peso. Eu a seguia em todos os seus movimentos e contava para ela, enquanto ela dançava, meus problemas secretos. Quais? Não me lembro. Porém ela sabia, por minha voz, de todas as minhas coisas (...) Sozinha com a minha grande felicidade e a nítida lembrança da menina. Passaram-se 34 anos desde que vivi aquela amizade mágica e cada vez que a recordo mais ela se aviva e mais cresce dentro do meu mundo.”
(Pinzón, 1950, As Duas Fridas)


Frida foi uma mulher concha. Carregou consigo suas vivências e transpôs cada uma delas a seu jeito para as suas telas. Não foram muitas, dizem alguns - cerca de 200 pinturas, mas todas guardam uma força e uma vida incrível. Frida ao contrário do que muitos pensam nunca negou a morte, mas conviveu com a sua presença constantemente. Nos mostra em sua Arte que ela é muito real, mas que a sua alma é livre. Quem de nós em situação tão adversa produzira tanto? Quem de nós?
Deixemos de lado um pouco a vida dos artistas, isso não interessa tanto. Deixemos que a Arte venha com a força transformadora que o feminino possui. Vamos buscar o que de fato interessa na Arte. Este é o caminho, senão ficaríamos todos vivos e a Arte morreria. E sabemos que aquilo que acontece é bem o contrário: as pessoas passam, mas suas Artes boas ou más ficam através dos tempos. Cabe a nós selecionar as mensagens, desvendar os códigos, ir mais fundo e voltar nutridos dessa vivência. Uma forma de sermos muitos através do aprendizado dos outros que vivenciaram fatos que talvez nunca saibamos como são. Pistas certeiras do quanto se pode voar alto, quando estamos libertos, de asas abertas para sentir a vida do jeito que ela é.


(Frida Kahlo: 06 de julho de 1907/ 13 de julho de 1954 - Coyoacán/México)




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