"Um
homem chegado de terras longínquas,
aqui plantou raízes, a compor,
a tocar,
a inventar instrumentos, misto de músico e escultor,
de
filósofo e profeta,
uma das figuras mais extraordinárias da arte
brasileira."
Jorge Amado
“Sou
um descompositor contemporâneo.”
Walter Smetak
Uma
das coisas que mais queria ver quando fosse a Salvador, se esta ainda
estivesse lá, era a exposição de obras de um cara que tenho grande
admiração: Walter Smetak. O gênio da música microtonal que,
a partir de uma obra pautada pela originalidade, didática e
hermetismo, abriu caminho para toda a música moderna brasileira,
influenciando e ensinando diretamente figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, Rogário Duarte, Walter Franco, Gereba, Marco Antônio Guimarães, entre outros.
Já
apreciador de sua música e trajetória (gravou dois discos:
“Smetak”, de 1973, produzido por Caetano e Roberto Santana, e
“Interregno”, com o Conjunto de Microtone, de 1980), em 2008,
conheci em São Paulo sua neta, Jessica, jornalista como eu com quem
estabeleci saudável amizade. No final do ano passado, no que
confirmei minha ida à Terra de Todos os Santos , prontamente me
comuniquei com ela para perguntar-lhe se ainda se mantinham em
exposição as obras de seu avô. Um agravável “sim” recebi como
resposta, indicando que o material se encontrava na Galeria Solar
Ferrão, em pleno Pelourinho – quadras adiante de onde Leocádia e
eu nos instalaríamos.
O
Solar em si já é uma atração: um casarão construído entre o fim
do século XVII e início do XVIII (tombado pelo IPHAN em 1938) sem
os rebuscamentos da arquitetura colonial mas exuberante em dimensões:
quatro andares com longas salas e um terraço, um subsolo e um pátio
traseiro. Este abrigava três ricas exposições: a de arte africana
(do colecionador italiano Claudio Masella), outra de arte sacra (de
acervo pertencente ao artista plástico e também colecionador baiano
Abelardo Rodrigues) e a terceira, a que eu tanto ansiava ver:
“Plásticas Sonoras”, de Smetak.
Anton
Walter Smetak, ou somente “Tak Tak” – como era apelidado por
Gil devido à sua postura séria de educador europeu, mas também
numa alusão onomatopeica à sua procedência da terra dos relógios
–, era violoncelista, compositor, inventor de instrumentos
musicais, escultor e escritor nascido em Zurique em 1913. Fugido da
2ª Guerra, veio parar no Brasil nos anos 30. Sua primeira cidade
foi, por essas coincidências da vida, a minha Porto Alegre, tendo
atuado como professor da recém-inaugurada faculdade de música da
Universidade Federal do RS. Também na capital gaúcha, formou o Trio
Schübert, juntamente com outros dois músicos de descendência
europeia como ele, grupo de câmara com o qual se apresentava na
antiga rádio Farroupilha. Trocando informações com sua neta tempo
atrás, soube que ela estava escrevendo um livro sobre o avô
(“Smetak: Som e Espírito”) e me prontifiquei a pesquisar alguma
coisa nos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito da
Costa, aqui em Porto Alegre. Achei alguns anúncios
da programação da rádio em que o Trio Schübert se
apresentava em exemplares do jornal Correio do Povo de 1937. Embora
pequena, minha contribuição foi parar no livro como bem podem ver.
Porém,
como disse, minha contribuição foi pequena. Só podia, pois Smetak,
depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro iniciada em 1941,
encontrou-se como cidadão e pessoa no destino seguinte: Salvador.
Lá, a partir de 1950, casou-se, formou família e estabeleceu
residência (até sua morte, em 1984). Profissionalmente, passou a
integrar a Orquestra Sinfônica da Universidade da Bahia, onde também
lecionava música. Em um período de forte impulso à cultura em
Salvador, artistas do teatro, cinema, dança, artes visuais e, claro,
música, surgiam de todas as partes incentivados pelos programas
públicos. E a ida de Smetak para lá, a convite do maestro alemão
Hans Joachim Koellheutter, foi de uma química inusitadamente
acertada.
Adaptado
ao clima, à cultura, ao misticismo e às gentes da Bahia, Smetak
achou na calorosa Salvador um terreno fértil para expandir sua carga
erudita a serviço de uma nova visão musical-espiritual. Volta-se
para o experimentalismo, numa pesquisa que chamava de “Iniciação
pelo Som”, sob o impacto de estudos realizados na Eubiose –
corrente teosófica dedicada à ciência da vida focada na evolução
humana, levando em conta os planos espirituais da mente. Passa a
investigar o silêncio (tal como fizera John Cage), o som (a exemplo
dos modernistas da vanguarda europeia) e as suas relações com o
homem (numa visão que trazia para reflexão a cultura milenar
oriental).
Na
sala/galpão que recebe da Universidade, já nos anos 60, monta uma
oficina de ideias e objetos. É quando, para encontrar esse “novo
som”, passa a criar instrumentos, intitulados, justamente, de
“Plásticas Sonoras”. Para construí-las, Smetak empregou
cabaças, madeira, cordas, tubos de PVC, latas e qualquer material
que estivesse a seu alcance. Particularmente, acho maravilhosas essas
composições plásticas de Smetak, uma vez que unem com muita
propriedade e conhecimento o equilíbrio físico e espiritual que o
autor buscava, com uma precisão digna de um relojoeiro suíço, a
uma brasilidade profunda pela utilização de materiais típicos da
natureza local com outros reciclados (olha aí a mentalidade
sustentável de Smetak 40 anos antes de isso virar moda).
Além
dessa fusão tão distinta e original entre velho e novo nundos, as
Plásticas Sonoras, engenhocas de utilização não apenas visual mas
prática, ainda me impressionam por outro motivo: o bom humor. Vindo
de um homem refugiado de sua terra-natal, desbravador de um país
distante do seu, tanto em quilômetros quanto em emotividade, e cuja
formação foi pautada na rigidez do ensino europeu do início do
século XIX, não seria de estranhar que essas obras transmitissem
certo grau de amargura ou secura. Pelo contrário. Smetak, eterno
subversor da arte, na Bahia, reinventou a si através da música. Ele
uniu os microtons (comuns na tradição musical de países orientais),
Stockhausen, Cage, Ives e Obuhov e seu arsenal bachiano às
sonoridades e harmonias folclóricas brasileiras, buscando nisso
produzir uma música que ampliasse as percepções humanas a caminho
de um autoconhecimento amplo da alma. Algo de um exotismo e
imparidade apenas reduzidos pela larga aplicabilidade pedagógica que
teve. As Plásticas Sonoras, assim, são uma extensão de sua música
e filosofia, o que fica evidente nos títulos das peças: “Mulher
faladora movida pelo vento”, “Mr. Play-Back”, “Caossonância”,
“Piston Cretino”. De um humor que muito tupiniquim “original”
não teria.
Se a
Tropicália mudou a música brasileira no final do século XIX,
reverenciando as dissonâncias agradáveis da bossa-nova e o legado
tonal dos sambistas antigos, foi o lado avant-garde aprendido
com Walter Smetak que deu lastro para a ligação da Tropicália com
o modernismo, concretismo, neoconstrutivismo e atonalismo. Não foi
a orquestração de George Martin nem o exemplo composicional
engenhoso de Lennon/McCartney (pelo menos, não apenas). É Smetak
que está fortemente nos arranjos de Duprat, na divisão harmônica
de Tom Zé, no ”canto-de-ruídos guturais” de Caetano (como
definiu Augusto de Campos), na ênfase minimalista do Uakati, no
atonalismo de Walter Franco, na aproximação Brasil-Japão de
“"Refazenda"-Refavela” de Gil. Este último, sabiamente como lhe é
de costume, bem definiu a amplitude da obra do mestre e irmão:
“Smetak é um mergulhador de excelente performance e
vários records de profundidade no oceano da Dúvida”.
"Música dos Mendigos"- Walter Smetak
"Música dos Mendigos"- Walter Smetak
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"Plásticas
Sonoras", de Walter Smetak
onde:
Galeria Solar Ferrão (R. Gregório de Matos, 45, Pelourinho,
Salvador/BA)
quando:
Sábados, domingos e feriados, das 12h às 17h
visitação:
terça a sexta, de 12h às 18h
entrada:
gratuita
Anjo-soprador |
Bicéfalo |
Biflauta |
Bimono |
Caossonância |
Chori-viola |
Metástase |
Mulher faladora movida pelo vento |
O Peixe |
Pindorama |
Piston cretino |
Reta na curva |
São Jorge Tibetano |
Vidas I, II e III |
por Daniel Rodrigues
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