Caetano e Gil, pura genialidade.
foto: Júlio Cordeiro
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“Gil é um rouxinol de grandes
mistérios”.
Caetano Veloso
“Eu faço música primeiro pra mim,
depois pra ele e depois pros outros”.
Gilberto Gil,
sobre Caetano
Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a
recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida.
Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na
doce e astral companhia das hermanas Leocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na
cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo
incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências
artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos;
a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a
poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias
entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário
sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um
marco só por sua realização.
Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada
na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório
escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos.
Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter
assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas
primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco
tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014
(Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993,
a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com
duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do
disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem
no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um
panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do
tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.
E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo
tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu
do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um
que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o
espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock
‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70,
na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que
aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de
identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show –
aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que
aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um
período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória
afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à
época), em 1966: “Coração Vagabundo”.
Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas
duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram
dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão
acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e
a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil,
magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et
Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir
Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/
Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”
Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a
bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os
vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando
da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de
Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram
a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar
uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.
Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show,
eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita
em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São
Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham
escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e
filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher,
como dizem os versos, “as camélias da
Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de
boicote do ex-Pink Floyd, Roger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando
da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando
as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico
de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces
meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo
do Leblon/ Brandir.”
Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
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Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma
complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez.
Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”,
talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe
superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com
seus traços árabes e folks. Enquanto
Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do
pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o
arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola,
o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral
de Gil. De arrepiar.
Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine
Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em
Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do
visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo
sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a
castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina
Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos
tão próximos dos irmãos portenhos.
Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova
“Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos
mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção.
Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus,
começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga
a voz e é aplaudido.
Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
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O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma
série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia.
Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de
esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às
repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos
deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”,
do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com
“Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao
tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a
gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto.
Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis.
Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê
reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do
show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso
2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos
acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No
embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.
Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô
Menino” é a única do set-list
composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente
desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de
louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São
João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A
crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na
mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das
melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil.
Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem
estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a
canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração
aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/
Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).
O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e
Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo
Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já
mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa
gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente
para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da
plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz
daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree
Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro
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Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando
Caetano, o “silêncio sorridente de Porto Alegre” de quem não quer
admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento
provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel
(muitos pensaram alarmados: “Nossa, um
estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela
polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se
dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista”
de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do
seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a
turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração
que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este
(que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista
brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver
algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela
cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre
não faz jus à sentença de que a “verdadeira
Bahia é o Rio Grande do Sul”.
De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se
repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio
que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas,
como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas
das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et
Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de
carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável
condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a
riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos,
na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.
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Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015
por Daniel Rodrigues
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